Interrupção legal da gestação decorrente de violência sexual contra crianças e adolescentes e a objeção de (in)consciência

21/05/2017

 Por Fernanda Ely Borba – 21/05/2017

Considerando-se que nesta semana foi celebrado no dia 18 de maio o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual Infantojuvenil e, em especial neste ano de 2017, estão em andamento as Conferências de Saúde das Mulheres nas esferas municipal, estadual e nacional, um tema que urge ser problematizado diz respeito à interrupção legal da gravidez decorrente de estupro de vulnerável.

Tal problematização ampara-se no entendimento de que os direitos sexuais e reprodutivos são, acima de tudo, direitos humanos. De acordo com Deslandes et al (2016, p. 866)[1], a violência sexual é reconhecida como uma violação dos direitos humanos e dos direitos sexuais, que impede crianças e adolescentes de usufruírem de uma sexualidade compatível com seu estágio de desenvolvimento, livre de discriminação ou coerção. Viola o direito reprodutivo de adolescentes de decidirem livre e responsavelmente sobre terem filhos (quantos e quando), bem como o acesso à informação e aos meios para a tomada desta decisão.

A interrupção legal da gestação em decorrência de estupro é parte integrante da política de atenção integral à saúde de crianças e adolescentes em situação de violência sexual, regulamentada pela Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes[2].

Não obstante a previsão legal para a interrupção legal e segura da gestação nos casos de violência sexual, não é incomum que o acesso a tal procedimento tenha que ser judicializado. O argumento da objeção de consciência somado ao reduzido número de serviços de saúde especializados no atendimento de situações agudas de violência sexual, acaba por levar muitas vítimas a baterem às portas do Poder Judiciário para ter assegurado um direito que já possui guarida legal para ser efetivado pelo Poder Executivo.

Se a violência sexual contra crianças e adolescentes é tema por demais nebuloso e envolto em mitos e preconceitos, a interrupção da gestação decorrente de estupro de vulnerável entorna o caldo da complexidade da situação. Segundo Deslandes et al (201, p. 866), o risco de gravidez decorrente de VS varia entre 0,5% e 5%, e pode representar uma segunda forma de violência. Esta realidade é ainda mais delicada quando as vítimas são adolescentes.

Em pesquisa sobre o atendimento à saúde de crianças e adolescentes em situação de violência sexual em quatro capitais brasileiras (Porto Alegre, Belém, Fortaleza e Campo Grande), as autoras supracitadas analisam que a oferta de serviços, sobretudo da interrupção legal da gestação, é comprometida por mitos, preconceitos, convicções éticas e religiosas dos componentes das equipes de saúde, bem como sofre pressão de movimentos religiosos conservadores (DESLANDES ET AL, 2016, p. 872).

Destacam a baixa adesão dos profissionais de saúde, que alegam “objeção de consciência”, evidenciando o confronto entre tal prerrogativa profissional e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Embora no Brasil o Ministério da Saúde tenha normatizado os procedimentos para a interrupção de gravidez por VS, como em outros estudos, observa-se, também, a interferência religiosa para coibir esse atendimento (DESLANDES ET AL, 2016, p. 873).

É preciso superar preconceitos, investir na formação e especialização dos serviços para o atendimento adequado e humano das sequelas da violência sexual.  Mais do que isso, romper com a moral conservadora que sacraliza a maternidade a qualquer custo, inclusive decorrente de um ato de violência. Importante priorizar não somente o vir a ser, mas a criança ou adolescente que foi violentada e deve ter os cuidados de saúde assegurados o mais rapidamente possível de modo a restituir-lhe direitos humanos que foram usurpados por meio da violência.

A peregrinação das vítimas para enfrentar as consequências da violência sexual, necessitando judicializar demandas que deveriam ser prontamente cumpridas no âmbito dos serviços de saúde, acaba por acirrar o processo de violação de direitos humanos, penalizando-as duplamente. Desta vez não mais na esfera interpessoal, mas por meio de um Estado ineficiente e de uma sociedade que ainda silencia frente à violência sexual contra crianças e adolescentes.


Notas e Referências:

[1] DESLANDES, Suely Ferreira; VIEIRA, Luiza Jane Eyre de Souza; CAVALCANTI, Ludmila Fontenele; SILVA, Raimunda Magalhães da. Atendimento à saúde de crianças e adolescentes em situação de violência sexual, em quatro capitais brasileiras. Vol. 20, n. 59. Revista Interface (Botucatu) [online]. 2016, pp.865-877.

[2] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3ª ed. Brasília (DF): MS; 2012.


Fernanda Ely BorbaFernanda Ely Borba possui graduação (2004) e mestrado (2007) em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É Assistente Social do Poder Judiciário de Santa Catarina desde o ano de 2008, lotada no Fórum da Comarca de Chapecó/SC. Atualmente é aluna do curso de pós-graduação lato sensu Abordagens da Violência contra Crianças e Adolescentes, promovido pela PUC/RS. Integra o  Núcleo de Pesquisas Sobre Violência (NESVI/UNOCHAPECO). Participa da União Brasileira de Mulheres (UBM) sediada em Chapecó/SC. Compõe a Associação Catarinense dos Assistentes Sociais de Poder Judiciário de Santa Catarina (ACASPJ), exercendo o cargo de presidente do Conselho Fiscal (triênio 2017-2020). Estuda o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes desde o ano de 2002, quando passou a integrar o Núcleo de Pesquisas em Violência do Departamento de Serviço Social da UFSC (NEPEV/DSS/UFSC). 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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