Interpretar e decidir: O que fazer com nosso cérebro? (Parte 2)

15/06/2015

Dentro das teorias jurídicas da interpretação e  tomada de decisão que nos rodeiam, só há duas opções: ou adotas os ideais dominantes acerca da racionalidade do discurso jurídico e te passas o dia controlando tua atitude e revisando tuas percepções…ou te passas ao lado escuro, abrindo as portas da cova para deixar que saiam os fantasmas da irracionalidade ou as bestas do decisionismo.

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Parte 2

Já não é nenhum segredo que nossa experiência pessoal contamina nossas ideias sobre como funciona o mundo. Todos fazemos extrapolações de nossa existência para poder entender o mundo. Na arte isto se considera uma vantagem, mas no direito se considera uma contaminação. As ideias são infecciosas, conformam nosso ser e tudo o que vivemos nos chega através da mente. A palavra chave está aí: a mente. O único que fazemos em nossa vida é descobrir o que é construído por nosso cérebro que,  “lejos de ser un órgano perfecto, es un kluge, un apaño, o más bien, un conjunto de apaños improvisados por la evolución para resolver diversos problemas de adaptación[…] De ahí la falibilidad del cerebro a pesar, paradójicamente, de su maravillosa capacidad intelectual: podemos resolver problemas de física o de matemáticas de una complejidad inmensa al mismo tiempo ser incapaces de solucionar de manera lógica un conflicto, de tomar decisiones puramente racionales, de no dejarnos llevar por los arrebatos emocionales, de no sernos tan vulnerables ante los prejuicios,  recordar dónde hemos dejado la llaves del coche…”.(G. Marcus)

Deixando a um lado as pressões externas e, portanto, as mais visíveis, o juiz é, como todos os humanos, um ser estritamente «condicionado», ainda que não chegue a ser um autômato «determinado». Todos nos sentimos livres e nos cremos responsáveis de nossas decisões e comportamentos. Vã ilusão, supina insensatez. Porque em grande parte – sem chegar ao determinismo absoluto – não fazemos senão responder a uns condicionamentos internos dos que não somos sequer conscientes. De ordinário, ainda que nem sempre, conhecemos as pressões políticas, mediáticas ou econômicas as que estamos submetidos; mas ignoramos a existência de outras mu­ito mais importantes que latem em nosso interior e que são geradas por nossa atividade neuronal sem saber como as produzimos ou o fazemos. Somos o resultado de vários processos concorrentes: uns psicobiológicos, que parecem os mais significativos, e outros sociais e culturais. Cremos atuar, em outras pa­lavras, guiados pela razão e de fato são os genes, o cérebro, a educação familiar, a cultura e o contexto social os que nos movem.

Ainda que só fora por isto, assim se explicaria que se as leis são as mesmas, as sentenças sejam diferentes porque diferentes são seus autores. Para entender a atividade judicial não basta com a análise das leis, das decisões, nem das pressões institucionais e/ou políticas: há que estudar a personalidade do juiz, que é donde conduzem e desde onde se (re-)elaboram todas as infor­mações e pressões, externas e internas, que terminam nos atos de aplicação do direito. O processo de realização do direito, na sua forma concreta de existência, exige sempre a participação integral da personalidade do sujeito que compreende.

Na pessoa do juiz concorrem informações procedentes do caso concreto e das normas, princípios, valores e ideologias (D. Kennedy), mas também de determinados impulsos internos (seu modo de pensar, suas crenças, seus prejuízos e seus [curto-] circuitos neuronais cognitivos e afetivos com todas as limitações que isto implica), que são os que, como qualquer ser humano, cabalmente integram sua personalidade e se prestam naturalmente a cínicas manipulações. Quem decide não é uma máquina senão um homem e, ademais, um ser humano singular, distinto dos demais.

Dito de modo mais simples (e jurídico): porque não existem dois cérebros   iguais, porque cada cérebro constrói o mundo de maneira ligeiramente distinta dos demais cérebros, porque cada cérebro difere funcionalmente no modo em que percebe, armazena, recupera e processa a informação, não há uma interpretação completamente neutra, impessoal e objetiva do que expressa a “norma”, senão simplesmente uma interpretação dentro de nossas cabeças (uma construção pessoal), interpretação que se desencadeia através dos elementos externos e internos que cada indivíduo (ou seu cérebro) em particular está melhor preparado para perceber, registrar e processar.

Ademais, o problema que tem que afrontar o cérebro aqui é que os sinais procedentes do mundo (em nosso caso, da norma, dos fatos e dos valores) não costumam representar uma mensagem codificada, senão que são potencialmente ambíguos e dependentes do contexto, e não vem necessariamente acompanhado de juízos prévios sobre seu significado (D. Edelman).  Por isso que ler um texto necessariamente implica interpretá-lo[1]: nenhum significado é inerente e os textos não falam por si mesmos. O significado da norma é algo que imaginamos e elaboramos, seu sentido experimentado é sempre uma questão valoração pessoal. Nem sequer é possível descrever uma norma (valor ou conduta humana) sem interpretá-la, sem conferir ou dar um significado à mesma: não há descrição sem interpretação e a norma (valor ou ação)  é essencialmente interpretável; e não é que possa ser interpretada, senão que tem que ser interpretada para cobrar sentido.

Embora existam fatos, normas, valores e princípios dados e os intérpretes os apresentem dentro de um tecido narrativo que lhes dá certo sentido, o certo é que todo discurso jurídico parece estar desenhado para mascarar toda a exuberância irracional provocada pelo diálogo interno cognitivo-emocional do sujeito-intérprete[2]. O resultado final da tarefa interpretativa depende da perspectiva do intérprete: as normas jurídicas não são mais que fichas com as que jogar sofisticados jogos analíticos e/ou hermenêuticos. As normas possuem somente palavras e nenhuma representação de valor a priori. Quais os valores, sentidos e significados que devem ser ligados a estas palavras são problemas vinculados à tarefa do intérprete. E ele estabelecerá sempre aquilo em que ele mesmo crê (D. Simon).

Mas não basta com estabelecer estas afirmações, que qualquer profissional com experiência percebe de imediato. O que sucedeu como novo nas últimas décadas é o intento de estudar cientificamente este fenômeno, situando-o na arquitetura cerebral humana (nas atividades que transcorrem no cérebro de uma pessoa quando esta está interpretando e formulando juízos de valor) com o objetivo, quiçá, de atingir os seguintes propósitos: i) estabelecer a evidência de que é o cérebro, como uma máquina antecipadora, associativa, detectora de pautas e elaboradora de significado, que constrói o resultado de toda e qualquer interpretação, comparando automaticamente o contexto de suas experiências passadas com as percepções presentes e as expectativas de futuro; ii) analisar os múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam o momento final do processo de interpretação jurídica (isto é, a decisão jurídica); e iii) desenhar uma metodologia jurídica o mais amigável possível com relação às limitações próprias da capacidade cognitiva do sujeito-intérprete.

E é precisamente neste particular que as ciências da vida e da mente, ainda quando vão unidas a um programa reducionista (P. Churchland), podem efetuar ricas e esclarecedoras contribuições às atuais teorias hermenêuticas, particularmente no que se refere ao papel que as emoções, os prejuízos, as crenças e preferências pessoais, a vulnerabilidade psicológica, os condicionamentos ideológicos, etc., efetivamente desempenham na ativa e comprometida tarefa interpretativa levada a cabo nos processos de tomada de decisão: podemos tentar ser terrivelmente objetivos, mas o que não podemos é olvidar de algo muito importante acerca do que é ser um ser humano. Como seres humanos, todos sabemos que se sente de certo modo e desde dentro. E o juiz, como qualquer besta biológica de nossa espécie, tem sensações, pensamentos e sentimentos privados e por vezes inefáveis que têm lugar de algum modo em seu cérebro.

O direito não é, e jamais será predominantemente um sistema racional de pensamentos. Não pode sê-lo, porque consiste em eleições e decisões sobre distintas possibilidades de ordenação político-social para as condutas humanas. Estas decisões são  tomadas por primatas humanos, indivíduos que estão eles mesmos envolvidos – direta ou indiretamente, quando menos ideologicamente – em tais condutas. De fato, uma decisão não costuma resultar mais racional que a vontade, as emoções e o conhecimento de quem a produz. E os atores principais da atividade jurisdicional que determinam sua dinâmica não são precisamente uns “preferidores racionais”, nem uma confraria de sofisticados jus-metodólogos, senão indivíduos que basicamente respondem às orientações de seus genes e de seus neurônios, assim como de suas experiências, memórias, valores, aprendizagens, e influências procedentes do ambiente e da mentalidade comum. Os operadores reais do direito não são e nem tão pouco funcionam assim. Como disse Jerome Frank, também os juízes são “humanos”. E não poucas vezes – é possível agregar – até demasiado humanos…[3]

A imagem do intérprete inteiramente neutral, imparcial, por completo objetivo, despersonalizado, passa por alto da realidade. Todas as interpretações e decisões sobre o direito se inspiram no ponto de vista de alguém, na perspectiva de um ser humano único cuja recopilação de experiências passadas lhe serve como contexto, lente e trajetória para valorar sua experiência presente e, dessa forma, alterar o texto interpretado. Pese a muito que se possa desejar, não existe um ponto de vista “neutral”, e a mera possibilidade de que se possa “recuperar” (ou “institucionalizar”) a neutralidade, a objetividade ou a racionalidade pura é tão remota que resulta deprimente e tremendamente contrária a nossa marcada disposição para projetar a própria subjetividade no mundo: somos, definitivamente, uma idiossincrasia com patas.

Com efeito, os discursos interpretativos do direito, tal e como se produzem na realidade, estão constituídos por um conglomerado de heterogeneidades, isto é, são, nem mais nem menos, uma  “mezcolanza indisoluble” de toda classe de indistintos e sempre variáveis componentes, racionais e não-racionais, “de elementos teóricos y prácticos, cognoscitivos y creativos, reproductivos y productivos, científicos y supracientíficos, objetivos y subjetivos”(G. Radbruch). Ademais, o que percebemos afeta nosso estado de ânimo e nossa capacidade cognitivo-afetiva, e não há nenhuma garantia de que podemos fiar-nos de nossas percepções: quase sempre as pintamos com as cores de nossos sentimentos e fantasias; são nossas emoções as que dão sentido às experiências interpretativas ou, como dizem alguns filósofos, que lhes outorgam valor[4].

Quem se proponha intervir aí, portanto, não terá mais remédio que tomar em conta tudo isso, ou virar às costas à realidade. Ou consagrar-se a dissimulá-la mediante alguma teorização todo o convenientemente abstrata e pedante para assegurar-se de não perturbar la galérie… E é precisamente nesse contexto que as neurociências, com suas ferramentas e métodos de análise, parece ser claramente a disciplina que, a longo prazo, nos permitirá encontrar vias altamente sofisticada para entender as aptidões psicológicas específicas do ser humano à hora de formular juízos de valor, de interpretar, de justificar e de decidir.

É definitivamente necessário assumir e dar-se conta de que em todos os casos a interpretação e a aplicação do direito está causada por eventos cerebrais. Chegou o momento de começar a operar com o que já sabemos sobre o cérebro e como isto pode vir a influenciar o atual modelo teórico e metodológico da ciência do direito. Para tanto, o mais sensato é partir da premissa de que a capacidade moral e ético-jurídica é (ou deve ser) contemplada como um atributo do cérebro humano, circunstância esta diretamente relacionada com o problema da tomada de decisão humana em todas as suas dimensões. A compreensão do comportamento humano oferecido até agora pela neurociência é perfeitamente compatível com esta perspectiva.

Em outras palavras, os estudos provenientes das neurociências estão exigindo a gritos um novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas, uma reinvenção ou construção conjunta de alternativas metodológicas reais e factíveis, compatível com a dimensão essencialmente humana (neuronal) da tarefa de elaborar, interpretar, justificar e aplicar o direito. Enfim, um novo modelo hermenêutico-interpretativo que, mantendo uma relação mais amigável com o funcionamento do cérebro, nos proporcione instrumentos mais frutíferos e fascinantes de cultivar o direito do que essa espécie de hermenêutica jurídica “no vazio” em que todos nos acostumamos a comprazer-nos nos velhos tempos.

Em definitiva, nem juiz Hércules, nem Júpiter, nem Hermes… Simplesmente «juiz primata», um primata com toga dotado de um cérebro construído deficientemente pela evolução e uma mente desenhada para interpretar, decidir ou justificar qualquer coisa.


Notas e Referências:

[1] Contudo, supomos que muitos ainda fomentem uma concepção muito pouco elaborada acerca do processo de realização do direito, a saber, que o objetivo de interpretar um texto é, simplesmente, deixar que este “fale por si mesmo” para descobrir o significado inerente a suas palavras. Mas para que isso ocorresse, para que fosse perfeita, a linguagem empregada pelo legislador teria que, entre outras coisas: i) não ser ambígua (salvo, talvez, quando o legislador pretende ser ambíguo a propósito); ii) sistemática (em lugar de idiossincrásica); iii) estável (de modo que, por exemplo, os legisladores fossem capazes de comunicar-se claramente com os destinatários das normas e/ou seus intérpretes autorizados); iv) não redundante (para não perder tempo e energia); v) ser capaz de expressar de forma concisa e convincente todos e cada um de seus objetivos e/ou finalidades. Em resumo, cada palavra se utilizaria de uma maneira constante e desembruscada, cada frase seria limpa e desenturvada como uma fórmula matemática; uma norma com essas características seria totalmente analítica e mostraria à simples vista a estrutura lógica dos fatos (princípios e valores) asseverados ou negados.

[2] Nesse sentido, por exemplo, Duncan Kennedy sustenta que “una «hermenéutica de la sospecha», o búsqueda de las motivaciones ideológicas escondidas en las sentencias judiciales que se presentan a sí mismas como técnicas, deductivas, objetivas, impersonales o neutrales, ha sido durante los últimos cien años la característica más importante de los debates norteamericanos sobre la decisión judicial. En el discurso jurídico, la evidencia de esta imputación de motivaciones casi nunca  es flagrante, en el sentido de que implique una admisión de intención. En las sentencias judiciales, los jueces siempre “niegan”, en el sentido común del término, que estén actuando por motivos ideológicos. Esto es, afirman explícitamente que el resultado – el desenlace que le dan a un caso al elegir una particular resolución para una cuestión de derecho o de definición de ciertas normas en lugar de otras – fue alcanzado siguiendo procedimientos interpretativos impersonales que excluyen la influencia de sus ideologías personales. Obviamente, se trata de una convención y dice poco sobre lo que “realmente” está sucediendo.[…] Todos quieren que sea verdad que no sólo es posible sino también habitual que los jueces juzguen desproveídos de toda ideología. Pero todos están al tanto de la crítica, y todos saben que la teoría ingenua del imperio de la ley es una fábula, y aquellos que lo saben sospechan que las versiones sofisticadas de la filosofía del derecho contemporánea no son mucho mejores”.

[3] O fato de que os pressupostos sobre a racionalidade dos juízes e o comportamento real dos seres humanos se mostrem tão desajustados é obviamente problemático. O perigo de pensarmos que não passamos de tomadores de decisões racionais é que isso nos impulsiona exatamente na direção deste tipo de comportamento. Este modo de pensar solapa nossa natureza e faz com que criemos uma enganosa sensação de controle, “abolindo” nossas emoções. Como explica Robert Frank, “aquilo que pensamos sobre nós mesmos  e sobre as nossas possibilidades determina as nossas aspirações”. Ironicamente, uma perspectiva puramente racional, neutra ou objetiva está longe de ser a melhor alternativa. Ela limita nossa visão a ponto de fazer-nos relutar em nos envolvermos e/ou assumir os fatores emocionais que condicionam nossas decisões. Daí a certeira advertência de James Boyle: “Los realistas fueron quines nos hicieron ver que los jueces, para ponerse los pantalones, meten primero una pierna y después la otra, como todo el mundo”.

[4] A racionalidade e a lógica seguramente ajudam a interpretar e aplicar direito, e não se deve subestimar a importância de transformar nossos vagos instintos em um conjunto explícito de argumentos jurídicos. Mas nossas emoções e intuições morais, sem as quais não seríamos capazes de valorar, existem muito antes que os teóricos e filósofos do direito propuseram os primeiros métodos para orientar a interpretação jurídica.


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