Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 2)

20/11/2015

Por Atahualpa Fernandez - 20/11/2015

Leia também a Parte 1 e a Parte 3.

O verdadeiro problema das teorias hermenêuticas e da argumentação jurídica é que levam o intérprete a pensar que sabe algo que em realidade desconhece. E dado que há maneiras alternativas de interpretar o que encontram na norma, os intérpretes parecem ser bastante adictos a encontrar as justificações e argumentos que lhes convêm para afilar, limar e alterar seletivamente a mensagem normativa: não tanto pelo uso indiscriminado, etéreo e vicioso da festejada “ponderação”, mas principalmente por meio de uma diarréia argumentativa incessante. 

Assim as coisas, pese a explosão de publicações sobre o tema, a insistência dos manuais e o fervor das ideologias, as teorias hermenêuticas e da argumentação jurídica são mais uma «metáfora» do que não se compreende e do que “não se pode falar”: o cérebro humano, as relações causais que se dão no interior do cérebro no ato de interpretar e decidir, e que não têm que ver com a «verdade» de suas especulações, abstrações ou teorizações[1]. De mais a mais, parece que um dos grandes pecados do desgaste hermenêutico-metodológico presente no direito está no fato de que não há interpretação independente do intérprete: toda «decisão» nos chega através do prisma da interpretação humana. Não só não há decisão sem interpretação, sem o elemento humano para conferir ou dar um significado à mensagem normativa, senão que a norma é essencialmente interpretável. E não é que possa ser interpretada, senão que tem que ser interpretada para cobrar sentido: o bom uso da norma (princípios e regras) inclui a arte da interpretação e os cômodos silêncios sobre a psicologia da tomada de decisões somente servem para ocultar a evidência de que toda interpretação está condenada à irracionalidade.

E o mais expressivo sintoma desse desafortunado cansaço está relacionado com a falta de uma profunda revisão do conceito mesmo de racionalidade, procedente não mais de argumentações ou teorias hermenêuticas encerradas em circularidades pseudocientíficas como evidência de exatidão, senão de critérios científicos, em particular dos provenientes da boa neurociência e das ciências do comportamento e da cognição humana. Já não se pode entender a racionalidade humana pelos ideais da onisciência, uma racionalidade ilimitada ou uma imagem de nós mesmos baseada no mítico “agente racional”, apenas influenciado por pequenos e circunstanciais inconvenientes emocionais. Em nosso cérebro a irracionalidade e a racionalidade jogam de modo nem sempre discernível e nossa própria consciência não distingue claramente entre sentimentos e pensamentos.

Pese o muito que se possa desejar interpretar e decidir objetivamente, nenhuma pessoa é dona absoluta de sua razão, porque os seres humanos são uma desordenada coleção de “módulos” emocionais que afetam e alteram de maneira decisiva o entendimento, e cujo acesso imediato, automático e não consciente a um vasto armazém de memórias é constantemente utilizado como base de decisão. Temos uns poucos “módulos” para processar a lógica e a busca racional de objetivos, mas são lentos, energeticamente custosos e raras vezes empregados (D. Kahneman). A razão sozinha, para o bem ou para o mal, não basta nem é suficiente para interpretar, justificar, aplicar ou superar as exigências e imposições de normas, princípios e valores “sagrados”. Por outro lado, as emoções, as intuições morais, os sentimentos, as memórias, as percepções e as sensações de cada indivíduo não são “cegas oleadas de afeto”, senão peças que outorgam razões para interpretar e que servem como elementos condicionantes da aplicação do direito: «el sentimiento [es] un componente integral de la maquinaria de la razón»; ou existe emoção ou não existe decisão. (A. Damasio)

Ademais, dito seja incidentalmente e de passagem, quando interpretamos e decidimos não obramos exclusivamente no mundo dos princípios, dos valores e das normas, senão também, e fundamentalmente, no das situações vitais. Nossa percepção e sensibilidade do mundo são as de animais. De animais inteligentes, certo, mas o foco de interesse e a natureza dessa inteligência são muito limitados. Apesar de nossa inigualável capacidade de representação para criar fantasias tais como “valores e princípios jurídicos”, “moral universal”, “dignidade” ou “justiça”, isto não está em relação direta com o que em nossa vida experimentamos, compreendemos, elegemos, decidimos e podemos, portanto, pôr em prática – quero dizer, nada ou muito pouco tem que ver com nossa práxis na vida diária, constantemente socavada por nossos instintos sociais, nossas emoções e intuições morais.

O que nos permite mover-nos pelo mundo, interpretar e decidir – inclusive no âmbito do jurídico - não é somente nossa venerada razão. Em grande medida, nossa forma de resolver problemas práticos e sociais – o que nos permite dilucidar e razoar – não se baseia na dedução, senão que se parece mais a um processo de “satisfação de restrição”. A generalizada e reconfortante ideia de que “sempre” é possível fazer com que nossas interpretações, razoamentos, justificações e decisões avancem cumprindo (exclusivamente) os protocolos, métodos ou critérios da estrutura formal da razão pura ou da lógica formal (que prescinde ou elimina as emoções) é uma ridiculez.

Os métodos, sejam quais forem, se dirigem às faculdades racionais dos homens. Mas, por muito corretos que uns métodos sejam (suponhamos que sim) desde o ponto de vista intelectual, isto não basta para presumir ou afirmar que serão adequados àqueles indivíduos (à vida emocional e em geral à personalidade ou ao caráter) que estão chamados a aplicar esses métodos. De fato, para que determinados métodos sejam seguidos tem que dar-se ao menos uma das duas condições seguintes: (i) ou que o conhecimento e a prática metódicos sirvam também para promover determinadas crenças e/ou fins fundeados na vida emocional do sujeito em questão, e que este seja consciente disso; (ii) ou que, em todo caso, esses métodos não se oponham a ditas crenças e/ou fins se não é para favorecer outros que o próprio sujeito considere igualmente importantes. Em qualquer dos dois casos, a vida emocional do intérprete dispõe, em última instância, de uma espécie de “veto” sobre o pensamento metódico.

A resolução de problemas e conflitos jurídicos é um assunto prático que ocorre no interior da mente, no qual muitos fatores interagem, competem e restringem a decisão que estabelece o cérebro. Algumas restrições se priorizam sobre as demais; alguns fatores serão conscientes, outros não; alguns podem ser expressados, outros não. Por norma geral, a tomada de decisão é um assunto de restrições e satisfações, e quando se desenvolve bem, quando os métodos coincidem com as crenças e/ou objetivos do sujeito, podemos afirmar que prevaleceu a racionalidade. (P. Churchland)

Desde esta perspectiva, as modernas teorias hermenêuticas, de interpretação e de argumentação jurídica não nos informam absolutamente nada sobre o "equipamento mental" que dispomos para levar a cabo a tarefa de interpretar e decidir. Simplesmente:

(i) silenciam (cínica e descaradamente) sobre a circunstância de que, como seres humanos normais, tudo o que pensamos ou experimentamos resulta da estrutura e do funcionamento de nosso cérebro, e que toda “información que se toma, cómo se transforma, y cómo afecta las decisiones del organismo (es decir, la forma en que el organismo percibe, interpreta y decide), todo depende de la organización innata del organismo” (S. Pinker);

(ii) pecam com gravidade ao ignorar ou relegar a um segundo plano a  influência concreta dos múltiplos fatores (inconscientes e irracionais, inatos e adquiridos) que intervêm no ato de interpretar/decidir, construídas que estão a partir de premissas alheias a qualquer escrutínio empírico-científico minimamente sério, carentes da menor autoconsciência com respeito à realidade neuronal que nos constitui e dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana;

(iii) descuidam da evidência de que qualquer conduta humana, toda experiência humana, incluída a própria experiência hermenêutica, tem um "substrato" neurobiológico, e que, como tal, em tema de atividade interpretativa, é necessário perguntar-se acerca da relevância e utilidade que os métodos jurídicos podem ter sobre a desejada racionalidade, objetividade e neutralidade dos intérpretes autorizados - uma vez que estas, se existem, não são mais que a conclusão de um processo incessantemente influenciado por mecanismos inconscientes que condicionam, mais do que imaginamos, nossa maneira de pensar, interpretar, razoar e decidir; e

iv) ao renunciar uma maior e estreita aproximação com as teorias e investigações que se desenvolvem em outros âmbitos do conhecimento científico, não somente não oferecem mecanismos que permitam analisar adequadamente nossas capacidades, debilidades e limitações ao levar a cabo as operações de compreensão, interpretação e decisão jurídica, como tampouco proporcionam qualquer modelo empiricamente consistente e contrastável para avaliar os resultados e impactos dos argumentos que servem de fundamento para suas teorias no que se refere às nossas intuições e emoções morais (tanto as culturalmente formadas como, em particular, as de raiz biológica).

Dito de outro modo, já não é legítimo nem digno negar, à vista das provas existentes, que toda interpretação consiste em eleições sobre distintas possibilidades que tem lugar de algum modo no cérebro do intérprete, em uma mente que sempre está “llena de remembranzas irrevocables y de pensamientos impensables, que toman parte en todos sus juicios como fuerzas que no se pueden destruir” (O. W. Homes). Uma evidência que, por si só, já seria suficiente para recomendar que as interpretações e decisões deveriam levar sempre a seguinte advertência: “Os pontos de vista expressados não são necessariamente os da racionalidade a que dou culto”.


Notas e Referências:

[1]https://www.researchgate.net/publication/280096511_Interpretao_Deciso_e_Representaes_Cerebrais_Hermenutica_Ingnua_%28Parte_1%29


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: Wonder how much of the World is Concrete Now? (Percentage) / The Cement Boogeyman is Gonna Choke Your Kid then Sell the Body // Foto de: Surian Soosay // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ssoosay/7149407083

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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