Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 1)

13/11/2015

 Por Atahualpa Fernandez - 13/11/2015

Leia também a Parte 2 e a Parte 3.

Quando determinadas teorias hermenêuticas e argumentativas essencialmente especulativas necessitam incontáveis páginas para serem compreendidas, talvez seja hora de rever ou voltar a desenvolver a teoria e a forma em que se discutem em público. Até então, o que teremos é uma clássica mentalidade de “torre de marfim”: um grupo de juristas acadêmicos que se encerram em uma habitação e, absolutamente seguros de si mesmos, convencidos que sabem mais que ninguém e completamente ignorantes do domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica, fazem proclamas ao mundo anunciando suas teorias com fórmulas e técnicas, conceitos e postulados, critérios e métodos "confusogénicos para cualquier ser humano". Parece que alguém necessita com urgência uma explicação sobre a «navalha de Ockham».

A interpretação representa um verdadeiro banco de provas para o jurista.  Não é por acaso que constitua, falando com propriedade, matéria de ensino: baixo o domínio ordenador da razão, é tratada como o campo dos conceitos cognoscíveis e distintos, de regras e critérios, mediante os quais um acervo de métodos com nomes elusivos, sombrios e incertos encontra sua aplicação rigorosa. É o lugar das técnicas e das formas de argumentação articuladas e reconstruídas sobre a mesa dos consumados agentes práticos do direito, em benefício de quantos preferem ver a tarefa interpretativa como uma atividade puramente racional, um artifício hermenêutico-metodológico constituído por um conjunto de noções e de instrumentos forjados para levar a cabo processos de decisões e conseguir resultados de maneira ordenada, justificada, controlada, acabada, ponderada, razoável, objetiva, imparcial, consciente e/ou, no limite do intolerável, neutra com relação à neutralidade.

Tomar decisões, por outro lado, é o resultado do ato de interpretar e usar a norma (princípios e regras) para orientar a conduta humana entre múltiplos cursos de ação possíveis. A decisão determina o modo em que o intérprete autorizado atua no mundo e seu grau de êxito em fazer frente aos conflitos da vida social. E embora a norma jurídica não estabeleça a forma das eleições individuais uma por uma, ao menos dispõe ou pode gerar mecanismos de processo de informação que se reproduzirão fiavelmente como resultado de classes particulares de eleições em casos e situações específicas – ainda que em muitas ocasiões as barulhentas narrativas engendradas por uma interpretação/decisão produzam um relato ou discurso muito pouco sólido, mas que se dá por verdadeiro ou correto somente pelo fato de que parece ter algum sentido.

A partir daí não resulta difícil inferir o porquê não interessa em absoluto o estudo dos limites, das restrições e dos condicionantes da capacidade humana de interpretar e de tomar decisões em si. Para quê? O que realmente interessa é a “ingestão” ou compreensão – ainda que aproximada e/ou defeituosa - dos critérios, regras, estratégias e métodos de interpretação e de tomada de decisão, considerando as situações e os casos concretos em que podem funcionar. Todo um instrumental de técnicas de interpretação posto à disposição do agente jurídico com a finalidade de: (i) obrigar a norma silenciosa a “falar”; e (ii) eliminar, camuflar, manipular e/ou subtrair qualquer solução, decisão ou resultado devido às perspectivas individuais, limitadas, singulares e particulares do sujeito intérprete.

Desse modo, para as principais teorias sobre a interpretação jurídica, o ato de manobrar o processo de tomada decisões “corretas” gira ao redor de um axioma onipresente: os seres humanos são racionais. Segundo esta concepção que constitui os cimentos de grande parte das teorias jurídicas contemporâneas, os intérpretes (nomeadamente os juízes) são ou devem ser (o que pressupõe que podem) racionais e objetivos em seus juízos de valor acerca da justiça da decisão. Quer dizer, atendidos determinados princípios, regras e critérios metodológicos, estão capacitados para examinar o melhor que podem todos os elementos pertinentes ao caso e ponderar, sempre de forma imaculada e aparentemente neutra, imparcial, razoável, prudente e não emocional, o resultado provável que segue a cada uma das eleições potenciais.

A opção preferida (“justa”) é aquela que melhor se adequa aos princípios, métodos, regras ou critérios de racionalidade, razoabilidade e objetividade por meio dos quais a “ponderada” decisão foi gerada. Esta sobrevalorada concepção da racionalidade jurídica está fundada na premissa de que, como humanos, estamos todos dotados de um elevado grau de sentido comum para prestar atenção às coisas que nos rodeiam, que nossa memória é mais consciente, controlável e fiel do que é em realidade e que a capacidade de racionalizar e/ou ponderar é um indicador fiável da precisão de nossos juízos.[1]

Sendo honesto, este tipo de postura já não tem absolutamente nenhum sítio na cabeça de uma pessoa sensata. Sejamos sérios e não nos entreguemos ao discurso hermenêutico ou argumentativo imperante como o alcoolátra à bebida. Por quê? Pois pelo simples fato de que a entranhada suposição da racionalidade jurídica é equivocada, não somente porque os agentes reais do direito não são tão racionais como se pretende (e tampouco funcionam como se o fossem), senão também pela circunstância de que: (i) simplifica ao extremo, artificializa e distorce a análise dos múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam nossas interpretações e nossas decisões; e (ii) elude a evidência de que a razão não cria valores, “sino que se configura en torno a ellos y los lleva hacia nuevas direcciones”. (S. Blackburn)

Como explica Enrique P. Haba, as teorias dominantes sobre a hermenêutica e a argumentação jurídica pecam não tanto por boa parte de quanto dizem, senão sobretudo pelo que não dizem. São “teorizaciones pseudodescriptivas – basadas en unas «intellectualist assumptions» – con respecto a los razonamientos jurídicos. Así ellas conducen a apartar la vista de los decisivos ingredientes de anti-racionalidad, legitimando los modus operandi tradicionales de los operadores del derecho positivo… Una «cirugía estética» frente a los razonamientos judiciales normales y sus consecuencias prácticas”.

É verdade, e o amável leitor (a) não tem por que sabê-lo, que no submundo da filosofia/“ciência” do direito e principalmente após a aparição do livro de Daniel Kahneman («Thinking, Fast and Slow»), alguns juristas (como por iluminação espiritual de um “caminho a Damasco”) começaram a perceber, já agora com base em provas empíricas que assim o sustentam, que o ato de interpretar/decidir poucas vezes é perfeitamente racional e que as emoções não podem considerar-se (ao menos globalmente) como um elemento perturbador da racionalidade. Por exemplo, há um grupo de juristas que escrevem sobre os limites ou as restrições do entorno que influem na tomada de decisões. Utilizando a noção de uma racionalidade limitada ou “impura” desde esta perspectiva, se dão conta de que um organismo não tem uns recursos nem um tempo ilimitados. Dadas estas restrições, a questão se converte em saber e propor qual é a solução/decisão “óptima” ou correta.

Há outro grupo que em lugar de centrar-se nos limites do entorno se centra nos da mente. Nele se incluem alguns juristas para quem o indivíduo soe adquirir uma informação limitada e às vezes toma decisões baseando-se unicamente em um ou dois critérios. Centram seus argumentos exclusivamente na relação entre as ilusões cognitivas e o estudo da tomada de decisões, donde se considera um prejuízo ou “erro” qualquer forma de conduta que dê a entender que a pessoa passa por alto determinadas informações ou só faz uso de poucos dados. Creem, diz Gerd Gigerenzer, “que la gente toma malas decisiones por razones apriorísticas, a causa de prejuicios, errores o falacias, y se centran en las limitaciones o restricciones mentales”. Nada obstante, estes autores não analisam as influências do entorno; quer dizer, não tratam de relacionar a mente com seu entorno.

O inconveniente destas (inovadoras) propostas que emergem timidamente na atualidade é que nenhuma aproveita com profundidade aquilo do que se aproveita a mente humana, ignorando explicações alternativas:

(i) que a mente está imersa no entorno, que os limites da mente estão relacionados com os do entorno, que esses limites se unem, e que para entender devidamente a conduta humana é necessário ter em conta estas duas restrições;

(ii) que, conquanto reconheçam o papel das emoções, sentimentos, prejuízos, ideologias, etc...etc., a experiência de interpretar e eleger a decisão «correta» ou «satisfatória» não é uma ficção, senão algo a todas luzes orgânico, uma atividade mental associada a um estado biológico: uma função do cérebro, uma consequência causada pela atividade fisiológica dos tecidos de um cérebro moldado geneticamente ao longo da história evolutiva de nossa espécie e aparelhado para pensar de certa maneira[2]; e

(iii) que as ilusões, os prejuízos, as falácias, os defeitos, as emoções e/ou os erros (cognitivos) de juízo podem ter (ou melhor, seguramente tem) um valor adaptativo, isto é, que quiçá desempenhem algum papel importante que os juristas, furtivos devotos de algum tipo inescrutável de racionalidade, não sabem ver.

Depois de tudo, a quem lhe gostaria ser julgado por um «psicopata com toga»?


Notas e Referências:

[1] Não analisarei aqui os problemas relacionados com os inconvenientes, os limites e a natureza essencialmente subjetiva da “ponderação” como técnica hermenêutico-argumentativa. Admito, contudo, que a ponderação consiste fundamentalmente em um processo (subjetivo) de valoração das razões para interpretar a norma de uma ou de outra maneira, no contexto de suas interpretações possíveis. Porque, e aqui está o dado decisivo, nem os princípios, nem as normas e nem os valores pesam ou valem “em si”, nem as circunstâncias do caso pesam ou valem “em si”; o respectivo “peso” e/ou “valor” dá o juiz  intérprete, ao sopesá-los, ponderá-los e interpretá-los.

[2] Nesse sentido, por exemplo, H. Bennett e G. A. Broe analisam o papel das emoções nos processos de tomada de decisão judicial, avaliando uma decisão da Suprema Corte de Austrália no caso Markarian v The Queen. Partindo de uma crítica sobre a teoria jurídica tradicional, segundo a qual se presume que os juízes não têm emoção operativa sobre os litigantes e seus respectivos ou que, em todo caso, as emoções devem ser suprimidas de forma ativa – o que reflete uma sabedoria de sentido comum, não comprovada, de que a emoção distorce o raciocínio jurídico exigido pela função judicial -, Bennet e Broe argumentam que, em contraste com esta presunção, contudo, as recentes investigações da neurociência demonstram que a emoção é suscetível de desempenhar um papel fundamental de facilitador na tomada de decisão jurídica através da participação do córtex pré-frontal ventromedial, em particular no que se refere às áreas do direito quando as circunstâncias pessoais, sociais e morais são consideradas, áreas que incluem o direito penal e a decisão condenatória. Como assinala A. Damasio, a tomada de decisões implica, a nível cerebral, uma rápida representação mental da série de possíveis situações e das consequências vinculadas a tal decisão e nesse processo se ativam os componentes emocionais das alternativas avaliadas, jogando estas assim um papel importante na eleição da decisão mais vantajosa. «En las sociedades humanas – diz Damasio – existen convenciones sociales y normas éticas por encima de las que ya proporciona la biología. No obstante, a pesar de que esas convenciones y normas se transmiten a través de la educación y la socialización, las representaciones neuronales de la sabiduría que encarnan se hallan inextricablemente ligadas a la representación neural de los procesos biológicos reguladores innatos. Y la ligazón cerebral está formada por conexiones entre neuronas».


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: Wonder how much of the World is Concrete Now? (Percentage) / The Cement Boogeyman is Gonna Choke Your Kid then Sell the Body // Foto de: Surian Soosay // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ssoosay/7149407083

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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