Interpretação, discurso racional e metodologia jurídica: a indelével sombra da «criatividade» (Parte 1)

12/05/2017

Por Atahualpa Fernandez – 12/05/2017

Leia também: Parte 2Parte 3, Parte 4, Parte 5, Parte 6, Parte 7, Parte 8

«“¿Qué es la verdad?”, dijo Pilato, bromeando, y no se quedó a esperar la respuesta».

Francis Bacon

A filosofia da ciência se ocupa, óbvio é dizê-lo, da ciência, mas não desde qualquer ângulo, senão desde a perspectiva da racionalidade. Um dos supostos mais comuns nas ciências sociais normativas – mil vezes mais comum do que a primeira vista possa parecer – é o suposto de intencionalidade ou racionalidade dos sapiens. A filosofia da ciência se interessa primordialmente pela racionalidade “epistêmica”, pela correta eleição das crenças dos humanos.

Já os cientistas sociais (e muito especialmente os agentes do direito), em seus  supostos de racionalidade da ação humana, costumam ocupar-se da racionalidade de um modo mais global, abarcando: a) a racionalidade epistêmica (ainda que de um modo muito marginal); b) a racionalidade “prohairética” (a racionalidade dos desejos), que interessa a todo mundo, mas que deveria interessar particularmente aos filósofos morais e jurídicos; e – sobretudo – c) a racionalidade da ação propriamente dita (que tem que ver com a eleição de condutas, dado uns desejos, umas crenças, umas preferências e umas restrições).

Não sobra dizer que a ideia de racionalidade humana é controvertida, que o “racional” não é mais que um (reduzido) aspecto do pensamento/raciocínio jurídico e que cada ciência elabora ou adota uns modelos particulares de racionalidade (E. P. Haba). E embora não corresponda neste artigo apresentar um listado completo acerca das discussões que gera este conceito, direi que o termo racionalidade costuma aplicar-se a uma grande variedade de hipóteses e, ao menos, em três contextos diferentes. No primeiro, é usado para “explicar” decisões. Atribuir a condição de racional à decisão de um agente supõe a identificação das razões pelas quais esse sujeito tomou determinada decisão. A racionalidade aqui tem um caráter descritivo (das razões que levaram um indivíduo a decidir-se atuar). Em geral, o sentido explicativo da racionalidade costuma estar acompanhado de um sentido preditivo acerca das decisões futuras de um agente.

No segundo contexto, a ideia de racionalidade se utiliza para “avaliar” ações. Nesse sentido, dizer que uma ação ou decisão é racional ou irracional é estabelecer respectivamente um valor positivo ou negativo, de controle, dessa decisão ou ação. No terceiro contexto, a noção de racionalidade aponta a questões estritamente técnicas. Neste caso, o único que se postula é que dada uma eleição com um conjunto de informações, e tratando-se de conformar uma única ordenação do conjunto de alternativas, deve-se proceder de uma determinada maneira.

Agora: Em que circunstâncias é possível educar e controlar a racionalidade? Posto que todos entendemos mal as coisas mil vezes, como se deve entender o «controle de racionalidade» no contexto da jurisdição, isto é, aquele que faz referência à atividade do juiz-intérprete? Para exercitar um controle similar, a que tipo de racionalidade devemos fazer referência? Quais são nossas (racionais) expectativas quando contemplamos a ideia de criatividade na esfera da interpretação jurídica? Como tratar as doses de criatividade dos juristas requeridas nos (racionais) processos de criação, interpretação e aplicação das normas jurídicas? Ou, já que estamos, que papel joga a criatividade em uma prática que se pretende racional?

O problema remete às diversas concepções e contextos da racionalidade na filosofia e nas ciências. Mas, para o que aqui interessa, a questão está em saber se é possível pensar em uma específica racionalidade jurídica, compreensiva do conjunto das razões que podem fazer parecer «racional» (controlável ou educável) os resultados do processo de tomada de decisão.

Convém aclarar, antes de entrar em matéria, que a mesma ideia de uma racionalidade exclusiva incorpora problemas que de algum modo e medida interferem inclusive com o tema mais general da racionali­dade no campo da filosofia teórica e, mormente, da filosofia prática. No âmbito do direito, o conceito de racionalidade (a capacidade que permite pensar, avaliar, entender e atuar de acordo a certos princípios de “otimicidade” e consistência), seguindo o consenso dominante (nomeadamente no campo da hermenêutica e da argumentação jurídica), pode ser utilizado nas seguintes acepções: i) racionalidade lógico-argumentativa; ii) racionalidade dogmático-sistemática no interior da teoria geral do direito; iii) racionalidade relativa aos valores por tutelar, no duplo plano do sistema positivo e da política; iv) racionalidade respeito aos fins políticos por perseguir, uma vez mais no duplo plano do ordenamento positivo e da política; v) racionalidade do procedimento científico no sentido estrito, para a parte na qual a racionalidade se vale dos conhecimentos e das prognoses oferecidas pelas ciências empíricas e sociais; e, mais em geral, vi) racionalidade referente à adoção de uma ati­tude metodológica atenta às «condições de uma comunicação racional» em torno aos temas que relaciona a criação, a interpretação-aplicação e a eficácia das normas jurídicas. (G. Fiandaca)

Relativamente à argumentação jurídica (já que a hermenêutica não aporta soluções que o agente jurídico busca e se detém precisamente ali donde mais interessa em direito a teoria da interpretação, quer dizer, a de proporcionar pautas do correto interpretar, critérios de “racionalidade” e/ou “objetividade” interpretativa), o problema cardinal parece ser, hoje mais que antes, a eleição de meios e mecanismos metodológicos úteis, fiáveis, adequados e funcionais para a tarefa de dizer a justiça no caso concreto de forma legítima e eficaz, dirigidos a gerar discursos jurídicos (decisões) formal e/ou materialmente “corretos”, racionalmente controláveis e com potencial capacidade de consenso para a solução de determinados problemas práticos relativos aos vínculos sociais relacionais, ao exercício e aos limites do poder jurisdicional do Estado.

O pequeno inconveniente – apesar de que não há nada que admire mais dos juristas que sua capacidade para produzir mitos – é que a pretensão de proporcionar uma justificação exaustivamente racional (objetiva, correta e/ou verdadeira) da maneira com que os agentes jurídicos conduzem suas interpretações é ilusória. De fato, se nos baixamos dos céus de algumas teorizações hermenêuticas e argumentativas celestiais (que se contradizem escandalosamente), veremos que a interpretação jurídica, tal como a conhecemos, é uma atividade levada a cabo por seres humanos rodeados e atravessadas por pensamentos fundados em vieses cognitivos, inclinações pessoais e apofenias, em mitos culturais e valores sociais de grupo, em estereótipos tomados voluntária ou involuntariamente e em crenças, dogmas, teorias ou explicações falsas, mas amplamente divulgadas, admitidas e compartidas.

Assim que parece de uma arrogância alucinante pretender estabelecer um modelo de racionalidade segundo o qual a interpretação/aplicação do direito seja concebida como uma tarefa completamente neutra, racional e/ou objetiva, dissociada do pessoal, do criativo, do ideológico e do político, ainda que seja somente no sentido de reconhecer e proferir decisões destinadas a manter o statu quo ou de dar continuidade ao ordenamento. Sigamos.


 


Imagem Ilustrativa do Post: brain 51 // Foto de: affen ajlfe // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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