Interpretação, Decisão e Representações Cerebrais: Hermenêutica Ingênua (Parte 2)

19/07/2015

Por Atahualpa Fernandez - 19/07/2015

Leia Parte 1 aqui

Hay cosas que sabemos que sabemos. También sabemos que desconocemos cosas, es decir, sabemos que hay ciertas cosas que no sabemos. Pero también hay cosas que desconocemos que desconocemos, aquellas que no sabemos que no sabemos”. 

Donald Rumsfeld

Lei e representações cerebrais

Em segundo lugar, e não menos importante, todo este contexto estabelece que os operadores do direito vivem das representações e significados que se passam na mente, isto é, que são processados em suas estruturas cerebrais. Um motivo mais para que o juízo ético-jurídico, baseado não somente em raciocínios, mas também em emoções e sentimentos morais produzidos pelo cérebro, não pode ser considerado como totalmente independente da constituição e do funcionamento deste órgão que, em uma primeira aproximação, parece não dispor de uma sede única e diferenciada relacionada com a cognição moral, o razoamento e o juízo normativo que dita o sentido da justiça, senão de uma rede de regiões cerebrais que se ativam ao mesmo tempo quando uma pessoa formula um juízo ou toma uma decisão.[1]

Pois bem, as representações são, literalmente, «re-presentações»: conformam a linguagem do cérebro e o cérebro pensa em função delas (e é muito provável que o cérebro já contenha representações inatas – E. Spelke). O conceito de representação procede da teoria kantiana do conhecimento segundo o qual a realidade existe para cada um em particular somente em sua imaginação; ou seja, é somente sua representação. O mundo que vemos é um mundo concebido através da construção feita a partir de estímulos físicos por uma maquinaria que é nosso cérebro: a realidade objetiva é “realidade” entanto que realidade humana percebida pelo cérebro humano.

Em neurociência se vem utilizando o termo representação de forma sistemática para aludir ao conjunto de correlatos neuronais que se dão em nosso cérebro do mundo exterior. Neste marco parece possível não somente aceitar a equivalência entre representação e padrão de atividade cerebral, senão também, e muito particularmente, intentar avançar no significado do conceito de representação com base no paradigma admitido pela neurociência. Isto é importante porque nos conduz ao conceito de estabilidade na atividade cerebral (recordemos a coalizão de neurônios e sinapses «egoístas» a que me referi anteriormente) como fator determinante da evolução dos padrões, por exemplo, no ato de compreender, interpretar e aplicar o direito.

Para seguir nesta direção é útil imaginar um simples experimento que poderíamos fazer com uns quantos operadores do direito, com similar preparo intelectual e formação profissional, interpretando uma lei. Suponhamos que lhes mostramos a todos um mesmo texto legal (que envolva um dilema moral ou ético-jurídico, por exemplo) e depois lhes pedimos que tratem de interpretar e compreender seus matizes. Em seguida lhes pedimos que expressem com detalhes a posição pessoal de cada um sobre o referido enunciado normativo.

Se realmente estes operadores têm semelhante preparação intelectual e formação profissional podemos supor que se expressarão de forma praticamente igual, a menos que o texto legal (ou dilema) contenha detalhes demasiado obscuros ou difíceis de interpretar. Por que? Pois pelo simples motivo de que estes operadores tiveram acesso a uma realidade tangível e objetiva do mundo exterior que se haverá armazenado como representação em seus cérebros em forma de padrões de atividade de distintas regiões cerebrais. Contudo, não há nenhuma razão de fundo que autorize pensar que as zonas cerebrais ativadas serão idênticas nos distintos intérpretes.

Com toda segurança haverá um alto grau de correspondência no trabalho realizado por regiões cerebrais. Por exemplo, com toda certeza se haverá ativado o córtex cerebral ocipital quando os sujeitos visualizavam o texto legal, assim como o córtex frontal e o sistema límbico para poder levar a cabo a conduta relacionada com o processo de tomada de decisões. Mas se descendemos ao nível dos neurotransmissores e os potenciais sinápticos, que constituem a linguagem de comunicação dos neurônios (de modo que maiores quantidades de neurotransmissores liberados produzem maiores potenciais sinápticos), não há nenhuma razão para esperar que haja dois neurônios idênticos respondendo identicamente no momento da tarefa interpretativa. A demonstração mais simples disto é a redução ao absurdo baseada no fato de que não é previsível que haja dois cérebros, simplesmente, com o mesmo número de neurônios e conexões sinápticas que geram e determinam os processos cerebrais associados com a percepção, os padrões de pensamento e o sentido de ação (no caso, com o processo de interpretar, avaliar e decidir).

Um de nossos operadores pode ser jovem e outro mais velho, circunstância em que o processo de desaparição de neurônios já tenha iniciado. Cada um terá sua representação resultante de seu próprio padrão de atividade cerebral e das interações sinápticas produzidas pela experiência e pela história particular de cada cérebro (esta característica de câmbios se conhece com o nome genérico de plasticidade neuronal e pode estar na base da individualidade associada à experiência/aprendizado, dissociada do determinismo genético). Também é possível que ao realizar uma mesma tarefa em distintas idades se ativem circuitos cerebrais diferentes porque se seguem umas estratégias cognitivas distintas [2] – sem dúvida, é uma possibilidade, mas há muitas outras que se pode contemplar.

Nada disso quer dizer, evidentemente, que a realidade não exista objetivamente e que somente exista em nossa imaginação. Não! Significa, apenas, que nossas interpretações do mundo, a construção de nossa experiência subjetiva da realidade, estão ao serviço das narrativas baixo as quais opera nosso cérebro, narrativas que servem para que nos movamos pela vida com a convicção necessária para defender nossos pontos de vista (em certo sentido somos, além de escravos, os fabricantes dos significados e do sentido daquilo em que fixamos nossa atenção).

Isto implica que o problema hermenêutico-filosófico segue vigente porque não se trata tanto de se existe uma realidade, senão dos critérios de percepção,  interpretação e fundamentação dessa mesma realidade; isto é, dado que ninguém pode viver sua realidade (nem por certo interpretá-la) sem o concurso irrenunciável de sua atividade mental, detrás de dois cérebros distintos podem esconder-se mundos e formas de conceber e de sentir a realidade radicalmente diferentes: nossas percepções são o resultado de um processo neuropsicológico que combina o que percebemos com o que já pensamos, sentimos, sabemos, queremos e cremos, e ato contínuo utiliza essa combinação de informação sensorial e conhecimento já existente para construir nossa percepção da realidade.

Dito de modo mais simples (e jurídico): porque não há dois cérebros que sejam  iguais (nem sequer os de gêmeos idênticos), porque cada cérebro constrói a experiência subjetiva do mundo de maneira ligeiramente distinta dos demais cérebros, não há uma interpretação definitiva do que expressa qualquer norma, senão simplesmente uma interpretação dentro de nossas cabeças (uma construção pessoal), interpretação que se desencadeia através dos elementos externos que melhor estamos preparados para registrar. Depois, o problema que tem que afrontar o cérebro aqui é que os sinais procedentes do mundo (em nosso caso, da norma e dos fatos) não costumam representar uma mensagem codificada, senão que são potencialmente ambíguos, são dependentes do contexto e não vem necessariamente acompanhados de juízos prévios sobre seu significado. (G. Edelman)

Assim as coisas, e dado que as representações têm um substrato material que são os correlatos cerebrais ou padrões de atividade neuronal que se estabelecem individualmente (moléculas impulsadas umas contra outras pelas interações eletromagnéticas entre elas), pretender com uma única «teoría del todo» explicar toda e qualquer atividade interpretativa-decisória, todo e qualquer fenômeno hermenêutico, de modo completamente ignorante do domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica e sem a compreensão dos neurônios, das sinapses e do cérebro é tarefa estéril e uma enorme impostura intelectual.

Hermenêutica ingênua e o «princípio da mediocridade»

Sobra dizer que ainda não há uma resposta clara acerca de como tem lugar todo este processo, uma vez que, para tanto, haveríamos de ser capazes de determinar, se é que é possível, o limite entre percepção, a emoção, a memória e a cognição. Mas o fato de saber de onde vem nossas interpretações e decisões, de entender que as causas de grande parte (ou da totalidade) dos processos de pensamento não são conscientes - quer dizer, que tem lugar fora da consciência -, pode ao menos ajudar-nos a controlar suas razões e seus efeitos em alguma medida.  Porque apesar de que nos sintamos cômodos ao supor que podemos superar ou eliminar de nossos pensamentos determinadas influências das que não somos conscientes com esforço, vontade e/ou boas razões, o certo é que são muito difíceis (ou impossíveis) de evitar pelo simples motivo de que os processos neurofisiológicos são básicos.

Para tratar de aclarar a complexidade da questão podemos recorrer ao exemplo de nossos intérpretes. Quando viram o texto legal se puseram em marcha seus circuitos visuais, o que significa que uma série de sinais navegarou desde seus olhos através das vias nervosas correspondentes até o córtex cerebral ativando, na mesma medida, o sistema límbico. Com toda segurança todos identificaram que se tratava de uma lei porque previamente haviam visto objetos parecidos - quer dizer, dispunham de interações sinápticas modificadas ao efeito. E quando trataram de compreender os detalhes dessa lei em concreto tiveram que produzir-se novas modificações sinápticas para que suas respectivas percepções da realidade e suas características desvelassem as opiniões ou pontos de vista de cada intérprete. No fundo, um mero resultado (um produto emergente) de pautas de ativação neuronal das que sequer foram conscientes.

Agora: Quando foi suficiente? Em que nível o processamento de informação se torna significado, conhecimento, consciência? Quanto teve que modificar as interações sinápticas para que se estabelecera a representação dessa lei? Como se decidiu que era suficiente? Que papel tem a memória na tarefa de interpretar e decidir? Tem estes presuntos processos ou séries de processos algum aspecto de caráter universal, no sentido de que contam com algum componente nuclear comum capaz de determinar em cada indivíduo sua particular valoração do que é ou deixa de ser justo? Será possível algum dia descrever esse processo ou processos (ou os componentes chave) em termos mais objetivos? Cabe buscar sua origem em algum padrão idiossincrásico de atividade neural que contenha ao menos alguma sequência espaço-temporal identificável compartida por todos os indivíduos? A diferença do que parece ocorrer na base neural das faculdades artísticas (J.-P. Changeux; R. Vigouroux), existem algumas áreas neuronais cuja intervenção específica seja em certo modo crítica e universal no marco da atividade amplamente distribuída que muito provavelmente subjaz – como em todos os processos cognitivos superiores (R. Vigouroux) – ao fenômeno da experiência moral e ao ato de interpretar/decidir? Em que medida contribui a herança, a experiência pessoal, a história de aprendizagem, as emoções e os sentimentos de cada indivíduo no pôr em marcha ou na ativação desse suposto padrão funcional? Podem ser de utilidade as modernas técnicas de neuroimagem não tanto para a localização estrita da sede cerebral de tal traço de atividade, senão, mais bem, para a identificação da implicação diferencial de certos circuitos distribuídos? Não é possível que as emoções e os chamados erros, defeitos ou armadilhas cognitivas desempenhem algum papel importante na tarefa de interpretar/decidir que unicamente os cientistas e juristas não sabem ver?[[3]]

Simplesmente não o sabemos. Parece não existir no cérebro nenhuma área específica (e se houver a neurociência ainda não conseguiu descobrir) em que a neurofisiologia misteriosamente se torna psicologia. O que há é um padrão de ativação cerebral que pode implicar um número considerável de estruturas cerebrais e que em algum momento é suficiente como para que o sujeito-intérprete possa compreender o objeto interpretado: um trabalho que envolve múltiplas e distintas regiões do cérebro (não necessariamente conectadas por simples trajetos sinápticos ou sinapticamente distantes) contribuindo harmoniosamente para o todo (ou envolvidas em aspectos complementares da mesma tarefa: de cada região, segundo suas possibilidades; para cada uma, segundo suas necessidades – M. Rose).

Ademais, seguimos sem entender como se produzem os fatos mentais mais triviais. Não sabemos o que ocorre no cérebro quando interpretamos, tomamos uma decisão ou quando aprendemos um número de telefone. Nem sequer acabamos de entender para que serve dormir ou sonhar. A informação topográfica de que dispomos não proporciona conhecimento algum sobre os mecanismos subjacentes nem permite averiguar ou compreender o que ocorre no cérebro, senão somente onde ocorre. Como explica Patricia Churchland, "nem sequer sabemos como codificam a informação os neurônios; e isso é muito não saber". Em muitos casos, continua, “la variabilidad natural de la macroestructura no predice nada sobre la función del cerebro (quiero decir, en oposición a las causas de un disparo, por ejemplo). Todavía es más interesante que la variabilidad estructural a menudo no prediga nada sobre microestructura, que es dónde se encuentra la acción. O como lo diría un mercenario político: Es el cableado, estúpido. ¿Los escáneres cerebrales pueden apreciar el microcableado? No. […] Hagamos un brindis por la variabilidad, la adaptabilidad y el cableado del cerebro. Y mientras fluye el Chardonnay, celebremos todo lo que sabemos sobre el cerebro”.

Mas a circunstância de que desconheçamos ou de que ainda não saibamos responder a muitos interrogantes não é, nem nunca será, motivo suficiente para que as teorias hermenêuticas não tenham em conta as evidências e os fatos já estabelecidos. Qualquer discurso hermenêutico que se limite a estabelecer sinistras combinações léxicas, conceituais, filosóficas e/ou meras tendências sociais para fundamentar seus argumentos resulta «tan útil y eficaz como una cucharada de miel», com um grau de ingenuidade ou rigor científico muito cercano ao zero absoluto e regido pelo que P. Z. Myers denomina «o princípio da mediocridade».

Compreender como se realizam as conexões dos neurônios, as interações dinâmicas entre regiões múltiplas do cérebro ao estabelecer as redes que levam aos juízos morais - como no caso de alguns experimentos estéticos já levados a cabo (C. J. Cela-Conde et al.) [[4]] – ou buscar entender a mente do sujeito-intérprete para ver o mundo tal como o percebe é necessário para ter uma ideia, ainda que limitada ou aproximada, das verdadeiras causas que nos levam a interpretar e decidir [[5]].

O realmente novo já está aí fora e negá-lo parece ser de um cinismo atroz e/ou de uma estupidez imperdoável e irredimível. O compromisso de compreender cientificamente a arquitetura e o funcionamento cerebral humano (as atividades que transcorrem no cérebro de uma pessoa quando esta está interpretando, decidindo ou formulando juízos de valor), de dirigir-se para dentro do cérebro e buscar ali os substratos neuronais responsáveis de nossos juízos morais, de nossas emoções, de nossos pensamentos, de nossas interpretações e decisões pode resultar efetivamente útil se o objetivo de tal empresa estiver voltado  (i) a estabelecer a evidência de que é o cérebro, como uma máquina antecipadora, associativa, detectora de pautas e elaboradora de significado, que constrói o resultado de toda e qualquer interpretação, comparando automaticamente o contexto de suas experiências passadas com as percepções presentes e as expectativas de futuro, (ii) a analisar os múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam todo o processo de interpretação-decisão jurídica, e (iii) a desenhar uma metodologia jurídica o mais amigável possível com relação às limitações próprias da capacidade cognitiva do sujeito-intérprete.

E uma vez que a ciência trata todo o tempo de estender os limites do que se conhece, os estudos procedentes das (boas) neurociências e das ciências cognitivas não somente proporcionarão  um câmbio na imagem que temos do mundo e de nós mesmos - rebaixando o orgulho de determinados juristas empenhados em criar a história imaginária de uma hermenêutica ingênua e/ou acéfala -, senão que também constituirão uma oportunidade para refinar, estabelecer ou reinventar novos parâmetros hermenêuticos e critérios metodológicos a partir da construção conjunta de alternativas reais e factíveis, devidamente assentadas sobre cimentos mais firmes e empiricamente consistentes.

O que “devemos” ou o que “podemos” fazer e o que nos “cabe esperar” seguem sendo perguntas da filosofia que agora há que responder com a ajuda da boa ciência para saber de forma mais acabada, psicologicamente aceitável e neurobiologicamente realista o que é e em que consiste interpretar e decidir.


Notas e Referências:

[1] No que respeita ao razoamento jurídico, provavelmente o trabalho mais ilustrativo seja a investigação de Oliver Goodenough sobre as áreas corticais associadas ao razoamento legal  e a intuição moral. O trabalho começa recapitulando o clássico debate entre uma aproximação teorética ou “pura” à ciência do direito (que ele ilustra mediante o pensamendo de Langdell) e a aproximação mais sociológica ou “impura” do realismo jurídico de Karl Llewelyn e outros. A juízo de Goodenough, para dirimir debates deste tipo há que recorrer  às investigações neurocientíficas: “Los avances en neurociencias y otras ramas de la biología del comportamiento proporcionan nuevas herramientas y la oportunidad de volver a las preguntas clásicas en la base del pensamiento jurídico”. Como se realizaria isto? Goodenough assume a teoria modular do cérebro e mostra uma série de estudos segundo os quais nosso  pensamento sobre a justiça “tem lugar” em uma área cortical distinta da que se ativa no pensamento associado à aplicação do direito a partir de regras. Portanto, assinala, o pensamento baseado na justiça é independente do razoamento baseado em regras. O que mostraria, segundo o mesmo autor, que ao pensar na justiça nos ajudamos de um algoritmo não verbal —como um programa de computador — que está definido por uma mescla de marcas genéticas, herança cultural  e experiências pessoais. Pelo contrário, os sistemas de pensamento baseados na palabra, tais como o sistema legal, acionam um módulo meramente interpretativo do cérebro: “En actividades como la redacción de contratos, leyes o reglamentos, el módulo de interpretación sirve para procesar los materiales legales a través de uma fórmula basada en la palabra, [empleando] la lógica estructural implícita del sistema desarticulado en el que se genera la norma [legal]”. Em suma: o melhor modelo neurocientífico do juízo normativo disponível  parece sugerir que o raciocínio jurídico implica um amplo recrutamento e emprego de distintas redes neuronais, diferentes sistemas de habilidades mentais (relacionados tanto com o pensamento racional como emocional) e fontes de informação diversas.

[2] Um indivíduo com mais idade e experiência seguramente acumula um repertório de pautas que lhe permite identificar, classificar e categorizar situações de imediato, e saber com rapidez que é o que deve fazer e que decisão tomar. Na verdade, lhe permite emarcar e avaliar o caso concreto e este marco lhe diz que detalhes são importantes. Sabe o que pode passar por alto e em que deve centrar sua atenção. A experiência lhe diz quais são os objetivos importantes para que possa decidir em consequência (uma decisão intuitiva, entendendo por intuição sua maneira de utilizar a experiência acumulada). Quer dizer, “tomada de decisões baseada no reconhecimento” (G. Klein).

[3] Particularmente com relação ao fenômeno jurídico (tanto no que se refere ao seu aspecto ontológico como metodológico de interpretação e aplicação do direito) o problema da localização dos correlatos cerebrais que ditam o sentido da justiça suscita as seguintes questões: Qual a relação existente entre os resultados da investigação neurocientífica sobre a cognição moral e jurídica e as perspectivas teóricas do direito?  Em que pontos se podem enlaçar de modo presumidamente tão decisivo para que a neurociência cognitiva ponha em questão os resultados da compreensão e da realização jurídica? De que forma um modelo neurocientífico do juízo normativo no direito e na justiça oferece razões poderosas que poderão vir a dar conta da falsidade subjacente às concepções comuns da hermenêutica, da racionalidade e da psicologia humana? Que alcance pode chegar a ter essa perspectiva neurocientífica para o atual edifício teórico e metodológico da ciência jurídica? Ou, já que estamos, achará a neurociência as áreas ou redes cerebrais encarregadas da interpretação e da tomada de decisão ético-jurídica? Talvez nem sequer existam tais áreas específicas. A interpretação e a decisão obedecem a muitos fatores, tão diversos como a empatia, o momento, as circunstâncias, a ideologia, os princípios morais, a ética, as normas, a sensação de autonomia, o medo, a fome, a cultura, os costumes, o desejo, a madurez. A lista poderia ser interminável e nenhum destes fatores poderiam determinar de forma absoluta as decisões do ser humano. Em qualquer caso, dilucidar a dúvida por meio de métodos experimentais ou solucionar o problema com a ajuda de mecanismos empiricamente contrastáveis é algo que não podemos renunciar, sob pena de continuarmos a cometer os mesmos disparates filosóficos e hermenêuticos.

[4] No século XVIII, filósofos escoceses e ingleses (Shaftesbury, Hutcheson, Hume e Smith) começaram a discutir alternativas ao racionalismo. Defenderam que as pessoas têm um sentido moral incorporado que cria sentimentos agradáveis de aprovação às ações benevolentes e os correspondentes sentimentos de desaprovação para o mal e o vício (J. Haidt). David Hume (1751) em particular propôs que os juízos morais são similares enquanto à forma aos juízos estéticos. Os dois derivam do sentimento, não da razão, e logramos conhecimento moral por uma “sensação imediata e um sentido interno afinado”, não por uma “relação de argumento e indução.” O intuicionismo em filosofia e os enfoques intuicionistas em psicologia moral, por extensão, mantêm que em primeiro lugar se tem as intuições morais (incluindo as emoções morais) e estas causam diretamente juízos morais (J. Haidt, J. Kagan, J. Q. Wilson, R. C. Solomon). Esta posição concorda com que a boa neurociência nos ensina do cérebro (A. Damasio, J. Ledoux, M. Gazzaniga, P. Churchland), “o que é particularmente interessante porque vários autores (por exemplo, T. Jacobsen) já postularam a eventual existência no cérebro de mecanismos compartidos pelos juízos estéticos e morais (isto é, entre a apreciação moral e estética sensu stricto). Portanto, a coincidência entre as redes cerebrais morais e estéticas poderia ocorrer” (Camilo J. Cela-Conde et al.).

[5] Outra maneira igualmente produtiva de investigar a mente seria fazê-lo desde a perspectiva da «cognição corpórea», que se baseia na ideia de que muitos pensamentos ou processos cognitivos não somente estão relacionados com o que sucede no cérebro, senão que também respondem a sensações físicas e a informação do corpo e de sua interação com o entorno. Se trata de uns processos cognitivos básicos que são muito similares aos de outros animais. Como assinala, Simone Schnall, “nos gusta creer que nuestra inteligencia nos hace muy especiales, pero procesamos el mundo que nos rodea de una manera muy parecida a como lo hacen otros seres vivos”.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Brain nebula // Foto de: Ivan // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/47476117@N04/8394780999/

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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