Por Atahualpa Fernandez - 17/07/2015
“El hombre -déjeme ofrecerle una definición- es el animal cuentahistorias”.
Graham Swift
Por que em muitas ocasiões nossas narrativas sobre interpretação, decisão e racionalidade jurídica produzem uma teorização muito pouco sólida da que se depreende um relato que se dá por verdadeiro somente pelo fato de que parece ter algum sentido? Por que algumas teorias sobre hermenêutica jurídica, ao intentar explicar basicamente tudo, dão lugar a muitas conclusões absurdas e a uma série de conjecturas muito difíceis de comprovar com o rigor científico necessário? Por acaso não sabemos que a suposta plausibilidade de uma barulhenta narração não permite resolver adequadamente um problema?
Jonathan Gottschall (The Storytelling Animal) afirma com fina contundência que todos somos uns “cuentahistorias”. Somos um primata ao que poderíamos chamar Homo fictus porque, nos demos conta ou não, somos uma criatura do imaginativo mundo de “Neverland”. O país da fantasia é nosso lugar e antes de que morramos haveremos passado décadas ali; e a hipótese mais admitida para este nosso «instinto narrador» é a do simulador virtual: todos aceitamos que as histórias servem para evadir-se do mundo real, não são objetivas e em boa parte são um engano de nossa imaginação.
De fato, estamos tão acostumados e influenciados pelo poder das histórias que na grande maioria das vezes as aceitamos tal e como se nos aparece e não nos fazemos mais perguntas. Por exemplo, no contexto da fração pasmosamente pequena e distorcida do direito que nos transmitem continuamente está a fantasia de que os seres humanos são «animais racionais». Um conto que entrou em nosso crânio, tomou o controle de nosso cérebro e nos levou a criar (e reproduzir) uma imagem de nós mesmos baseada no mítico «ator racional», apenas influenciado por pequenos e circunstanciais inconvenientes emocionais. Esta sobrevalorada concepção da racionalidade jurídica está fundamentada na premissa de que, como humanos, estamos todos dotados de um elevado grau de senso comum para prestar atenção às coisas que nos rodeiam, que nossa memória é mais consciente, controlável e fiel do que é em realidade e que a capacidade de razoar, pré-compreender, compreender, ponderar, etc. é um indicador fiável da precisão de nossos juízos.
O único inconveniente é que esta entranhada narrativa de ficção é equivocada, reflete expectativas pouco realistas e constitui a principal causa do desgaste hermenêutico-metodológico de que padece o direito. E o mais expressivo sintoma deste acusado cansaço está relacionado com as críticas dirigidas à ideia mesma do ato de interpretar e decidir, do fenômeno hermenêutico em particular e do próprio conceito de racionalidade, procedentes não mais de teorias hermenêuticas encerradas em circularidades pseudocientíficas como evidência de exatidão, senão de critérios científicos, em particular dos provenientes das neurociências e das ciências cognitivas.
Um conjunto de novos conhecimentos científicos que silenciosa e lentamente estão minando a parafernália barroca dos discursos que pecam por sua ingenuidade e/ou incompletude (como alguns discursos hermenêuticos), sem valor para coisa alguma salvo para enredar-nos em qualquer tipo de delírios filosóficos: somos animais limitada e problematicamente racionais. Todos, sem exceção, tomamos decisões baseadas em uma racionalidade limitada ou «impura», não em uma racionalidade pura ou ilimitada de quem toma decisões como se fora um deus omnisciente.
A própria experiência consciente não é mais que uma fração do que sucede na mente e que não reflete todos os mecanismos que estão atuando e que são gerados por uma multitude de processos inconscientes. A afamada «pré-compreensão» não passa de um conceito esotérico para expressar o núcleo de uma das intuições ínsitas em nossa arquitetura cognitiva: a conata capacidade para interpretar («pré-compreender») os outros, para ler suas mentes, para ler o que há sob a superfície, antecipar acontecimentos e dar sentido ao que vemos (como esclarece Daniel Dennett, o cérebro humano é uma «máquina de antecipação», e «criar futuro» não somente é o mais importante que faz, senão que parece ser o traço definitório de nossa humanidade: a predição constitui a verdadeira entranha da função cerebral - R. Llinás).
Ademais, somos prisioneiros de nosso corpo-cérebro; tudo o que pensamos ou experimentamos resulta da estrutura e do funcionamento de nosso cérebro. Este determina, condiciona e limita aquilo que percebemos e interpretamos: “qué información se toma, cómo se percibe, y cómo se interpreta, todo depende de la organización innata del organismo” (S. Pinker). E nada disso é (ou deveria ser) estranho ou diferente ao que à hermenêutica ou interpretação jurídica se refere, pelo simples fato de que os operadores do direito, sem exceção, não são menos pessoas de carne e osso que qualquer outro ser humano.
Então, por que nos limitamos a analisar a atividade hermenêutica somente desde um ponto de vista meramente descritivo, poético ou especulativo e não (também) a partir das funções mentais que se põe em marcha nas operações efetivas levadas a cabo na tarefa de interpretar e aplicar o direito (M. Troper)? Parece razoável supor que a tarefa interpretativa seja concebida como extra-cranial, enquanto a cognição e a emoção (produtoras da subjetividade) não o são? Estudar as tarefas interpretativa e decisória não equivale a estudar e entender o cérebro? Se queremos saber, compreender e explicar adequadamente o afazer interpretativo, por que não assumimos que o avanço nas técnicas para o estudo do funcionamento cerebral está proporcionando um fecundo caldo de cultivo que convida a querer conhecer não somente como funciona o cérebro, senão também a mente, os juízos morais e a tomada de decisões?
Já sabemos que as neurociências e as ciências cognitivas (entre outras áreas do conhecimento científico) estão começando a tocar questões que antes eram do domínio exclusivo de filósofos, psicólogos e juristas; questões sobre como a gente toma decisões e o grau em que ditas decisões são verdadeiramente «livres», imparciais, neutras, racionais, razoáveis, prudentes, ponderadas, etc. E embora não se trate de questões ociosas, muitos dos que trabalham no campo da hermenêutica jurídica continuam a dedicar-se ao que Lee Ross descreveu com muita lucidez como “«embotellador de fenómenos», porque elaboran sus teorías para que se adapten a lo que embotellan en ellas”. (D. Kahneman)
Sendo honestos, este tipo de postura já não tem absolutamente nenhum sítio na cabeça de uma pessoa sensata. Sejamos sérios. São os circuitos físicos situados no córtex pré-frontal e em outras partes do cérebro, e não os poderes ocultos de uma «pré-compreensão» (“prejuízo”, “causa primeira incausada”, “círculo hermenêutico” ou algo pelo estilo), os que condicionam e determinam o processo de interpretação e decisão jurídica [[1]]. É apenas a tabula rasa que faz com que uma anacrônica confraria de sofisticados hermeneutas ou jus-metodólogos creia e siga pregando que nossos instintos são “biológicos”, mas que o pensamento e a tomada de decisão são alguma outra coisa, que surgem «diretamente» de... bom, não sabemos exatamente de donde.
Que dúvida ainda cabe de que a interpretação e a decisão surgem da atividade eletroquímica de redes neuronais no cérebro? Por acaso não se interpreta e se decide com o cérebro? [2] A experiência de interpretar e eleger a decisão «satisfatória» não é uma ficção, senão algo a todas luzes orgânico: uma função do cérebro, uma consequência causada pela atividade fisiológica dos tecidos de um cérebro moldado geneticamente ao longo da história evolutiva de nossa espécie e aparelhado para pensar de certa maneira. Quer dizer, para poder interpretar e decidir, o cérebro tem que chegar a uma coalizão ou aliança de grandes conjuntos de neurônios («neurônios egoístas», «sinapses egoístas»), um nível de ativação e interação que representa a «melhor» interpretação de um determinado fenômeno (com frequência em competição com outras interpretações possíveis), e cujo resultado será uma decisão destinada a transmitir sua mensagem a um público específico em uma época e um lugar determinados. [3]
Por dizê-lo de alguma maneira mais desafetada, a interpretação jurídica, tal como a conhecemos, é uma atividade levada a cabo por cérebros humanos: cada um dos intérpretes do direito é um ser humano proprietário e propriedade de um cérebro, cada um deles tem algo diferente a comunicar; cada um, ao injetar sua peculiar e «somática» subjetividade no texto que interpreta, intenta transmitir sua visão de mundo (que há herdado ou adquirido) em suas próprias palavras e com o recurso de uma justificação razoavelmente convincente.
«Processo» de interpretação/decisão e «percepção» do ato de interpretar/decidir
Mas, como o fazem? Como atua ou funciona o cérebro-mente na atividade interpretativa e como toma decisões? O primeiro que há que advertir é que não devemos confundir o processo de interpretação/decisão com nossa experiência do processo ou do ato de interpretar/decidir: igual que o calor como uma propriedade real dos objetos não é como nós o experimentamos (não é, nem tem muito que ver, com a sensação de calor), tampouco é necessário supor que nossas sensações enquanto estamos interpretando e tomando uma decisão são algo assim como uma «réplica exata» do que realmente está passando em nosso cérebro ao levá-las a cabo.
Nossa sensação de calor é como é, em parte porque nos serve para fazer algumas distinções úteis entre os objetos que nos rodeiam; de modo análogo, nossa percepção do processo de interpretação/decisão será como é, em parte porque nos resulta biologicamente útil ter uma percepção assim, mas não porque seja uma representação «totalmente fidedigna» ou «real» dos processos neurológicos que sucedem em nosso cérebro ao interpretar e tomar uma decisão (J. Zamora Bonilla). Daí que é conveniente não confiar demasiado nas descrições fenomenológicas do processo de interpretação e decisão propostas pelas teorias hermenêuticas de moda, se queremos averiguar «por que» o percebemos como o percebemos.
O que quero dizer é que, ao construir especulativamente esta experiência, ou esta representação, do processo de interpretação e tomada de decisão, os juristas avessos ou hostís à ciência o fazem criando, entre outras coisas, possíveis cursos de ação que existem apenas como cursos imaginários, e que somente existem em suas mentes. Se deixamos de lado as explicações vudus constataremos que há uma evidente brecha epistemológica, uma clara limitação do conhecimento das verdadeiras relações causais que se dão no interior do cérebro no ato de interpretar, uma autêntica indeterminação real dos processos cerebrais ou mentais relacionados com a tomada de decisões – ou seja, com as causas que não têm que com a «verdade» de nossas impressões ou sensações.
Tampouco cabe argumentar aqui que o «salto» que vai desde nossas razões para atuar até nossa decisão de atuar (e também o «salto» que vai desde nossa interpretação até nossa decisão) é algo essencialmente distinto aos vínculos causais que se dão no resto dos processos cerebrais, de modo que o primeiro não seria propriamente falando «relações causais», senão «razões». Ser racional consistiria, pois, em algo assim como estar «submetido» ao poder das razões em lugar do poder das causas.
A diferença aparente se deve, em parte, a que o ter tais ou quais razões para tomar certa decisão ou para sacar certa conclusão não costuma ser uma condição suficiente para que de fato decida ou conclua tal coisa; mas em parte também se deve a que nos dá a impressão de que a ordem das razões segue sua própria lógica, e teria que ser independente da ordem causal “por el que a nosostros nos ocurre que pensemos o decidamos de tal o cual manera - por ejemplo, que el resultado de una operación matemática sea uno determinado, tiene que ser independiente de las peculiaridades de los procesos cogitivos de quien la está resolviendo”. (J. Zamora Bonilla)
Nada obstante, esta aparência se deve simplesmente a que o que consideramos (por exemplo) a «razão» de nossa decisão, ou seja, a constatação de certos fatos ou valorações cuja percepção nos conduz a concluir que devemos ou nos convém fazer tal ou qual coisa, não é realmente mais que uma parte das verdadeiras causas pelas quais tomamos a decisão ou levamos a cabo a ação de interpretar. A interpretação e a decisão sucedem em parte a causa de que nos encontramos em um estado psicológico que consiste em admitir as razões ou premissas, mas também em parte devido a certas outras conexões neuronais de cuja atividade não somos conscientes.
Resumindo, entender e explicar parte de um todo está longe, muito longe, de pretender entender e explicar o todo. Não temos (tal com já assinalaram Spinoza e Hume) absolutamente nenhuma percepção consciente do vínculo causal e do processo que leva a nosso cérebro desde o estado que consiste em precatar-se da verdade de certas proposições, valorações ou interpretações e o estado que consiste em precatar-se da verdade de alguma das conclusões ou decisões que derivamos daquelas – e se bem se mira, a causa não constitui um elemento acidental ou eventual da tarefa interpretativa/decisória, mas um elemento que a determina desde o princípio e no seu conjunto; na prática, causa e razões não são dois atos separados e estanques, senão que constituem um processo unitário, um continuum, compondo uma indivisível e solidária unidade hermenêutica.
Dar-se conta desta «fenomenologia» da interpretação/decisão, compatível com a natureza física e biológica de nosso cérebro, implica assumir a evidência de que somos, ao fim e ao cabo, nada mais que uns pobres animais engendrados por obra e graça da evolução das espécies. Coisa que muito poucos juristas estão dispostos a admitir.
Notas e Referências:
[1] Já se derramaram rios de tinta para explicar algo assim de simples e assim de bonito: “Aprendemos a predecir nuestro entorno, y nuestro organismo se anticipa respondiendo adecuadamente a los eventos ambientales que están por llegar. Se adapta al ambiente anticipándose a él. Esta capacidad de predecir lo que ocurrirá a continuación es muy valiosa en la vida de cualquier animal, también en la especie humana. Un organismo que no sea capaz de predecir los eventos importantes de su entorno y prepararse adecuadamente para ellos morirá joven. Como es lógico, además, la respuesta anticipatoria del organismo se adaptará a la perfección a lo que el organismo espera que vaya a ocurrir. Si fuera un estímulo doloroso, por ejemplo, lo que el organismo espera que ocurra tras una señal determinada, se pondrá en marcha una reacción de miedo que hará que se produzca inmediatamente una respuesta de huida. Y lo mismo para otros estímulos biológicamente significativos (estímulos sexuales, frío, calor, drogas, medicamentos, cobijo, etc.). Todos ellos producirán una respuesta del organismo que, de manera automática, se anticipará a la llegada del estímulo biológicamente significativo utilizando para ello señales del ambiente que ayudarán a predecirlo (H. Matute). […] Pero los humanos somos el único animal que puede contemplar su futuro, el único que puede desplazarse mentalmente por el tiempo, prever una variedad de futuros y elegir el que causará más placer y/o menos dolor. Se trata de una adaptación excepcional que, por cierto, está relacionada directamente con la evolución de los lóbulos frontales” (D. Gilbert).
[2] De fato, toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo quanto fazemos, pensamos e sentimos, depende de nosso cérebro. O cérebro é a sede de nossas ideias e emoções, de nossos temores e esperanças, do prazer e do sofrimento, da linguagem, da moral, do direito e da personalidade. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo o seu esplendor, é sem dúvida em nosso volumoso cérebro. Lástima que nos recusemos a conhecê-lo melhor. (J. Mosterín).
[3] Nota bene: Se está começando a aceitar a ideia de que o cérebro humano não encaixa na visão burocrática de um sistema com um controle hierárquico e muito bem organizado onde tudo está em ordem: se parece mais a uma anarquia com alguns elementos de democracia. Quer dizer, dado que todos os neurônios estão presos no cérebro, são células encarceradas, estes neurônios competem entre si para sobreviver, para ter influência. E isto prepara o terreno para a cooperação e as alianças. Às vezes pode lograr um estado de estabilidade e ajuda mútua, uma espécie de frente único e em calma, e tudo marcha sobre rodas; mas também é possível que as coisas se torçam, que alguma aliança se faça com o controle e acabemos sofrendo obsessões, delírios ou outros transtornos. Parece que a mente normal bem afinada, quer dizer, a mente organizada, não é o estado mental básico, senão que é um logro que somente se alcança quando tudo segue com normalidade. Isto supõe uma arquitetura e funcionamento cerebral muito diferente e quiçá o segredo de nossa maior capacidade para a criatividade e a imaginação, para pensar com originalidade: uma organização mais livre e anárquica, e que o preço que pagamos por isso é a vulnerabilidade às ilusões, a incoerência de nossas emoções, a ocorrência de “sesgos cogitivos”, a debilidade da razão, etc...etc. (D. Dennett; Sebastian Young)
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
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