Internet como mercadoria: a colonialidade primeiro como tragédia, depois como farsa - Por Jorge Alberto de Macedo Acosta Junior

26/01/2018

Coordenador: Marcos Catalan

Repetição significa o processo de mascaramento das relações sociais historicamente constituídas entre os seres humanos. A repetição consiste num fenômeno fundamental para a reprodução da sociabilidade capitalista, pois neste tipo de sociabilidade se faz necessária a coisificação do ser humano e do que nasce de sua atividade. Para sinalizar o alerta da repetição do ingresso ao poder – ou poderíamos chamar de golpe de Estado – da família Bonaparte em 1851, Karl Marx utilizou a seguinte frase: “primeiro como tragédia, depois como farsa”[1]

O modo sociabilidade da sociedade não se alterou desde lá. A repetição faz parte da realidade contemporânea, com mecanismos de mascaramento mais densos ainda. O que pretendo refletir é sobre o golpe que se aproxima do acesso à internet, relacionando-o com o direito e a sociedade de consumo. Mas antes disso, uma breve explicação do motivo da sociedade capitalista necessitar de um processo de repetição para mascarar as relações históricas. 

A orientação da sociedade capitalista é a transformação de tudo e todos em mercadoria[2]. A necessidade constante de valorizar qualquer instância da vida para proceder a acumulação deste valor. Acontece que este processo de transformação da vida cotidiana em mercadoria resulta na destruição da própria vida cotidiana, trata-se de uma lógica autodestrutiva realizada pelo ser humano; sem que este se aperceba de sua própria destruição. Eis aí a necessidade da repetição, do mascaramento, de ocultar o golpe. 

Mas como essa (contraditória) lógica destrutiva pode alcançar a rede mundial de computadores? 

A internet tornou-se essencial para a contínua reprodução do capitalismo em nível mundial, é sua capacidade de diminuição do tempo de comunicação que permite acelerar a realização da mais-valia e da lucratividade do investimento do capital. Introduzida na lógica dos negócios a interatividade proporcionada pela rede mundial de computadores influencia sobremaneira na valorização das mercadorias. Ao reduzir o tempo da circulação ao limite de zero, ou próximo a este limite, a internet se torna a infra-estrutura necessária para a acumulação e reprodução da lógica da mercadoria, como exemplo poderíamos citar o mercado online[3]

Diante da necessidade de redução do tempo da circulação do capital, o acesso à internet, por uma questão lógica, facilitaria que os indivíduos assumissem o papel de consumidores e contribuíssem para a reprodução da sociedade capitalista. Entretanto esta obviedade lógica é negada pela lógica da mercadoria, nem mesmo o acesso dos consumidores à redução do tempo da circulação é lhes dado fora desta lógica. Assim, a necessidade do acesso à internet que alimentaria a própria reprodução do capital só pode ser satisfeita na forma da mercadoria, o que resulta na exclusão de seres humanos da própria sociedade. 

Como homens e mulheres não compreendem a autodestruição de si e de suas atividades? 

Graças aos mecanismos de repetição. Da impossibilidade de compreender o processo histórico. Vejamos o caso da internet sob a perspectiva da tragédia instaurada e da farsa que virá. 

A tragédia da internet no Brasil tem suas origens na construção do atual modelo do setor das telecomunicações. A entrega da estruturação do setor para as multinacionais do ramo durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a privatização do setor guiou-se por meio da ideia de que a livre concorrência satisfaria não só a generalização do serviço, bem como, o desenvolvimento tecnológico no país[4]

A tragédia não está apenas na falácia da concorrência como programa governamental, mas também, pela aplicação de um modelo de privatização radical repetido dos vizinhos norte-americanos. Aqui a explicação teórica da tragédia acresce-se da relação de colonialidade do poder[5] em relação ao Brasil como país latino-americano, repetindo as bases institucionais do american way of life. O resultado da repetição do modelo das telecomunicações norte-americanas – bem como sua rede de transferência de valor e mais-valia de caráter histórico-estrutural – no Brasil é a exclusão generalizada da população que carrega a mazela da desigualdade social. 

Quando a internet consolida-se como serviço “adicional” a ser ofertado pelas operadoras de telefonia nas condições de desigualdades sociais, regionais e econômicas, as grandes multinacionais promovem e agravam uma desigualdade gigantesca quanto o acesso. O quadro de domicílios com acesso à internet apresenta uma exclusão de 46% da população brasileira[6]. A tragédia consolidou-se na lógica da mercadoria, infiltrada pela colonialidade do poder e, finalmente, cristalizada historicamente no ordenamento jurídico

Estabelecida a tragédia, pode-se antever a farsa. A Comissão Federal de Comunicações nos Estados Unidos aprovou um plano que permite aos provedores de serviço de internet bloquear e/ou diminuir o acesso ao conteúdo. Assim, sites ou aplicativos específicos poderão ter acessos restringidos ou priorizados. Trata-se da estratégia de eliminação do que não é rentável, isto é, do que não privilegia a transformação mercadológica. Após a tragédia da exclusão do acesso, virá a farsa que pretende destruir a pluralidade de conteúdo

A colonialidade da internet primeiro como tragédia, depois como farsa tem seus obstáculos. A repetição terá que enfrentar o princípio da neutralidade da rede consolidado no Marco Civil da Internet, lei N° 12.965/14. Em 2018 veremos no Brasil o embate entre o direito consolidado e a necessidade de rentabilização, o princípio da mercadoria. Será possível compreender os detalhes de como a roda do capital esmaga os acessos, a pluralidade e sua própria possibilidade de reprodução. 

A farsa vem com argumento pronto, necessidade de inovação e implicações significativas para a economia. A roda não vai parar até que sua autodestruição se complete, a destruição da internet é só mais um destes processos. O golpe está dado, a repetição se fará presente. A pergunta não é: “o que fazer para impedir a rentabilização da internet?”. E sim: como superar a repetição das tragédias e farsas da sociedade ocidental?

 

Notas e Referências:

[1] MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

[2] JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006.

[3] DANTAS, Marcos. Internet: praças de mercados sob controle do capital financeiro. Trabalho apresentado no GP Economia Política da Comunicação, XVII Encontro dos Grupos de Pesquisas em

Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Curitiba – PR, 05 a 09/09/2017.

[4] DANTAS, Marcos. A lógica do capital-informação: a fragmentação dos monopólios e a monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais. 2.ed. Rio de Janeiro: Contratempo, 2002.

[5] QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e américa latina. In LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociais, 2005, pp. 117-142. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf. Acesso em: 26 dez 2017. 

[6] COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL – CGI.br. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros – TIC Domicílios 2016. São Paulo. Disponível em http://cgi.br/media/docs/publicacoes/2/TIC_DOM_2016_LivroEletronico.pdf. Acesso em 22 janeiro 2017.

 

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