Por Marcos Peixoto - 17/03/2016
Dispõe o inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal (grifei): “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Dois fatores desde logo sobressaem: 1º) as comunicações telefônicas são invioláveis, sendo esta uma garantia fundamental do cidadão; 2º) tal inviolabilidade não é absoluta, podendo ser limitada nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, advindo a limitação, tanto à inviolabilidade quanto à sua excepcional quebra, do próprio texto constitucional.
Ou seja: não é a lei que excepciona a inviolabilidade, é a Constituição Federal que o faz e, para que a exceção guarde consonância com a Lei Maior, há de ser feita nos termos e hipóteses da lei regulamentadora – que, no caso, se trata da Lei 9296/96.
Assim é que dispõe o artigo 5º (coincidência, não?) do referido ordenamento legal, em tormentosa e debatida redação (grifei novamente): “A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”.
Passemos desde logo à lição de Geraldo Prado, em obra seminal e pioneira[1] (grifos no original):
“35. (...) não são juridicamente válidas as interpretações relativas à restrição de direitos fundamentais que busquem a sua fundamentação em outra área, salvo na própria Constituição da República. O discurso jurídico-penal que se nutre de considerações acerca do controle da criminalidade é legítimo. Afinal de contas, é a Constituição da República que promete segurança a todos os indivíduos, sem distinção de qualquer natureza. No entanto, este discurso é inadequado quando se trata de configurar os limites ao exercício de direitos fundamentais. Estes limites estão dados na Constituição e se dirigem ao legislador de modo a conformar a sua atuação, bem como também são ditados ao juiz. Como assevera Perfecto Andrés Ibánez, "a Constituição impõe uma leitura crítica daquela (referindo-se à lei), mas tal leitura deverá ser intelectualmente honesta, rigorosa no uso das normas do discurso racional e técnico-jurídico e dotada do máximo de transparência na justificação"
36. Nessa perspectiva o artigo 5° da Lei na 9.296/96 encontra a medida de sua racionalidade, ao dispor que o prazo da interceptação não poderá exceder a quinze dias, "renovável por igual tempo, uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova". É interessante observar que a expressão usada para delimitar o tempo de duração da interceptação por si só denota o caráter excepcional que a regulamentação de restrição ao exercício de direito fundamental há de ter. Utiliza-se a expressão "não poderá exceder". É visível aí, ao nosso juízo, o caráter limitativo desse meio de captação de informações! Ao contrário de outras regras que fixam prazos em procedimento penal, na hipótese legal optou-se por indicação clara da natureza excepcional. Não poderá exceder significa o prazo final é esse, pois reconheço a gravidade dessa intervenção na esfera das comunicações do indivíduo investigado! É como se a lei explicitasse dessa maneira sua condição excepcional.
37. Quando confrontamos essa razão legal (razão significando fundamento ou base) com as marcas insuperáveis do estado de defesa - quebra do sigilo das comunicações telefônicas por trinta dias, prorrogável por mais trinta, uma só vez -, torna-se compreensível a impossibilidade de uma interpretação distinta que esteja em conformidade com a Constituição. E isso é ainda mais acentuado se entendermos o direito como criação do homem, consequência de sua história. A história brasileira dos estados de exceção é por todos conhecida e se quiséssemos ficar apenas com os relatos da República isso já seria o bastante para admitirmos a máxima cautela no emprego de limitações aos direitos fundamentais. O estado de crise permanente foi usado como argumento competente, durante longo período, para reduzir a eficácia de direitos básicos da cidadania e conspirar contra valores elementares da república e da democracia. Por isso os cuidados tomados na Constituição da República de 1988!
Irretocáveis fundamentos.
A lei que regulamenta a exceção constitucional ao direito fundamental à inviolabilidade das comunicações telefônicas estipulou, de maneira cristalina, prazos: quinze dias, prorrogáveis por mais quinze dias.
Não há palavras vãs na lei – este um princípio fundamental e elementar de hermenêutica, que aqui ganha maior relevo pois se trata de interpretar os limites que a própria Constituição Federal estipulou ao excepcionar uma garantia da cidadania, o que impõe seja a interpretação feita ao mesmo tempo de forma restritiva (ou quando menos taxativa) quanto aos limites às garantias, e ampliativa quantos aos limites à limitação das garantias.
Portanto, a lei não disporia “não poderá exceder” (esta a expressão chave) “o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo”, se não quisesse que a limitação ao limite à garantia fundamental tivesse um prazo certo e determinado, qual seja, trinta dias. Não utilizaria, por outro lado, o numeral quinze se não quisesse estabelecer o somatório de quinze mais quinze como tempo limite às interceptações, que devem sempre ser excepcionais, e não a regra.
O caráter excepcional das interceptações, aliás, como se não bastasse estar claro no texto constitucional, vem expresso na própria Lei 9296/96 ao dispor:
"Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:
I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;
II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.
Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada."
Desta feita, o que à toda evidência querem tanto a Constituição Federal como a lei que regulamenta o inciso XII do artigo 5º é que as interceptações telefônicas não sejam feitas de forma ilimitada (o que implicaria numa ilimitada e inaceitável limitação a direito fundamental que, assim, tenderia a tornar-se letra morta em certas investigações). Por outro lado, querem que seja utilizada de maneira excepcional e limitada no tempo quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis, logo, como um pontapé inicial para a apuração de violações à lei penal.
Não colhe razão o argumento de que a gravidade de certas infrações imporia a possibilidade de interceptações ilimitadas, pois se trata de uma tautologia. Na verdade, a gravidade de certas infrações é justamente o que fundamenta a própria exceção à inviolabilidade das comunicações telefônicas criada pelo texto constitucional e regulamentada pela lei, ao dispor esta que não se admitirá a interceptação para a apuração de crimes apenados com detenção ou menos que isto. Logo, a gravidade do crime é pressuposto da interceptação em si, pressuposto da exceção, uma das razões de ser desta exceção, e não fundamento para uma ampliação à limitação ao direito fundamental em oposição ao texto constitucional e legal.
Leonardo Luiz Santos Cabette fornece subsídios importantes à presente discussão[2]:
"Malgrado as abalizadas conclusões em prol da possibilidade de renovações indeterminadas da interceptação, conforme acima mencionado, ousa-se discordar. Na realidade, considerar a possibilidade de renovações indeterminadas seria conceder uma "carta branca" ao magistrado para uma contínua intromissão na esfera privada das comunicações telefônicas das pessoas, para fins de investigação criminal.
Já de muito tempo remonta a lição de Beccaria de que "cabe exclusivamente às leis fixar o espaço de tempo que se deve empregar para a investigação das provas do delito, e o que se deve conceder ao acusado para sua defesa. Se o juiz tivesse esse direito estaria exercendo as funções de legislador".
Ademais, tratando-se de norma que restringe a esfera de irradiação dos direitos individuais, não cabe ao intérprete sua ampliação no sentido de estender a aplicação da restrição àquilo que o texto legal não determina expressa e induvidosamente.
O entendimento quanto à possibilidade de renovações ao arbítrio do juiz, conduziria à mesma conclusão nos casos de prisão temporária previstos no art. 2º da Lei n. 7.960/89 e no art. 2º, § 3º, da Lei n. 8.072/90, fato este plenamente inadmissível à consciência geral, mas que, em essência, não diverge do caso das interceptações. A redação dos dispositivos é bastante semelhante e os argumentos expendidos para a defesa de reiterações indeterminadas da interceptação teriam pleno cabimento, sob a alegação de que sempre que fosse comprovada a "extrema necessidade" para as investigações, poder-se-ia renovar o prazo de restrição da liberdade.
O que nos faz pensar, numa análise perfunctória, que se tratam de situações absolutamente díspares, é o fato de que a prisão temporária afeta diretamente a liberdade, o que torna a situação mais sensível ao espírito crítico e garantista. No entanto, o sigilo das comunicações e o direito à intimidade são valores de alto relevo, não menos prestigiado pelo sistema de garantias em que se baseia o Estado Democrático de Direito.
Chama ainda a atenção o fato de que a renovação da interceptação, em tese, seria de fácil comprovação no que tange à “indispensabilidade” do meio de prova, poia a partir do momento em que foi deferida inicialmente e, mesmo com ela, não se logrou a obtenção dos resultados colimados, claro se afigura sua necessidade prática à otimização das atividades persecutórias.
Ficaria, posta em segundo plano a "imprescindibilidade” como acima demonstrado, ao critério de cada juiz a delimitação considerada razoável e proporcional para o prolongamento da diligência.
Tudo isso ainda com uma agravante; porque além da interceptação ser medida por natureza tomada "inaudita altera parte", possui o caráter de "segredo de justiça" e toda sua operacionalização se faz com base na preservação do sigilo (Lei n. 9.296/96, arts. 1° e 8°, parágrafo único). Desse modo, o sujeito passivo da interceptação sequer tem a possibilidade de atacar de qualquer maneira sua realização durante esse período, pois nem mesmo tem ciência de sua ocorrência, diferentemente do que acontece com a prisão, onde, ao menos, poderá utilizar os meios e recursos para fazer prevalecer o seu ius libertatis.
Portanto, a conclusão em relação à renovação das interceptações somente pode ser ponderada no sentido da possibilidade de uma única reiteração pelo período de 15 dias, totalizando o tempo máximo de 30 dias de intromissão insidiosa na esfera do sigilo das comunicações do indivíduo."
A jurisprudência pátria é vacilante a respeito do tema, ora se posicionando num sentido, ora em outro. Acórdão paradigmático é aquele proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus 76686/PR, assim ementado:
"Comunicações telefônicas. Sigilo. Relatividade. Inspirações ideológicas. Conflito. Lei ordinária. Interpretações. Razoabilidade.
1.É inviolável o sigilo das comunicações telefônicas; admite-se, porém, a interceptação "nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer".
2.Foi por meio da Lei nº 9.296, de 1996, que o legislador regulamentou o texto constitucional; é explícito o texto infraconstitucional – e bem explícito – em dois pontos: primeiro, quanto ao prazo de quinze dias; segundo, quanto à renovação – "renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova".
3.Inexistindo, na Lei nº 9.296/96, previsão de renovações sucessivas, não há como admiti-las.
4.Já que não absoluto o sigilo, a relatividade implica o conflito entre normas de diversas inspirações ideológicas; em caso que tal, o conflito (aparente) resolve-se, semelhantemente a outros, a favor da liberdade, da intimidade, da vida privada, etc. É que estritamente se interpretam as disposições que restringem a liberdade humana (Maximiliano).
5.Se não de trinta dias, embora seja exatamente esse, com efeito, o prazo de lei (Lei nº 9.296/96, art. 5º), que sejam, então, os sessenta dias do estado de defesa (Constituição, art. 136, § 2º), ou razoável prazo, desde que, é claro, na última hipótese, haja decisão exaustivamente fundamentada. Há, neste caso, se não explícita ou implícita violação do art. 5º da Lei nº 9.296/96, evidente violação do princípio da razoabilidade.
Ordem concedida a fim de se reputar ilícita a prova resultante de tantos e tantos e tantos dias de interceptação das comunicações telefônicas, devendo os autos retornar às mãos do Juiz originário para determinações de direito.
(HC 76.686/PR, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 09/09/2008, DJe 10/11/2008)"
Firmou de tal forma um paradigma este aresto que serviu de base como representativo da controvérsia para o Supremo Tribunal Federal reconhecer repercussão geral ao Recurso Extraordinário 625263/PR, interposto justamente contra aquele acórdão, ainda não julgado no mérito:
"PROCESSO PENAL. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 5º; 93, INCISO IX; E 136, § 2º DA CF. ARTIGO 5º DA LEI N. 9.296/96. DISCUSSÃO SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DE SUCESSIVAS RENOVAÇÕES DA MEDIDA. ALEGAÇÃO DE COMPLEXIDADE DA INVESTIGAÇÃO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. RELEVÂNCIA SOCIAL, ECONÔMICA E JURÍDICA DA MATÉRIA. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA." (RE 625263 RG, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 13/06/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-176 DIVULG 06-09-2013 PUBLIC 09-09-2013 )
Entender de forma diversa do que aqui se sustenta é abrir caminho para a diminuição da densidade dos direitos fundamentais e, em última análise, para o arbítrio e para a instauração do estado de exceção – aquele que, perdoem-me o truísmo, é construído de exceções aqui, outras ali.
De fato, alegando aqui e ali a necessidade de segurança e de combate ao crime se tenderá, aos poucos, a fragilizar de tal maneira o sistema de garantias que, dentro em breve, haverá doutrinadores sustentando a relativização da vedação à tortura – se é que isto já não está a ocorrer...
Viver numa democracia possui um preço, e este deriva do cumprimento da Constituição e das leis, que não podem ser excepcionadas quiçá contra os “inimigos” – até porque, sendo assim, num futuro próximo o “inimigo”, por algum motivo, por qualquer motivo, poderá ser você que defende a ordem e normalidade democrática.
Notas e Referências:
[1] PRADO, Geraldo. Limite às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 40/43.
[2] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Interceptação Telefônica. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 120/123.
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Marcos Augusto Ramos Peixoto é Juiz de Direito – TJRJ.
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