Por Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez - 11/09/2015
“Si tus ancestros fueron agricultores durante mucho tiempo, desciendes de gente que decidió que era mejor vivir de rodillas que morir de pie”.
G. Cochran & H. Harperding
Para lograr, dentro da filogênese humana, um conjunto mente/cérebro capaz de produzir, entender e utilizar o universo normativo como ferramenta para a adaptação individual dentro do grupo e do próprio grupo dentro de seu entorno há um elemento de fundamental importância que merece nossa análise: o da compreensão e antecipação das reações do outro.
Mas recordemos, primeiramente, algumas trivialidades: i) que vivemos graças a uma atividade fisiológica que podemos dirigir mediante conteúdos que vão mais além da fisiologia ou da cultura; ii) que pertencemos a dois mundos, o mundo do corpo/cérebro (dos quais emerge a mente) e o mundo das criações culturais fundadas na atividade neuronal (uma sincronia em rede), mas que a transcendem; e iii) que dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem maximizar nossa capacidade de predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade.
Ademais, são duas as capacidades humanas que funcionam como fatores particularmente determinantes na formação e transmissão do nosso universo moral-normativo [1]: a primeira, provavelmente compartida com outros animais, é a busca incessante de causas e efeitos; a segunda, o razoamento moral ou juízo social - insolitamente desenvolvida nos humanos -, que consiste na capacidade de pensar nas pessoas e nos motivos que lhes levam a atuar (quer dizer, a capacidade de possuir uma "Teoria da Mente" [2]).
Inteligência social
Dito isto, passemos diretamente ao que interessa, recapitulando antes algumas evidências básicas. A adquirição da identidade individual é um "logro", isto é, um estágio de um complicado processo que combina os programas ontogenéticos cognitivos do organismo com os distintos estímulos procedentes da vida social, da cultura em que cresce e prospera: a natureza do ser humano e, consequentemente, todos os seus pensamentos, sentimentos e ações, sejam ou não conscientes, provêm da complexa interação entre genes e ambiente. O mesmo que um entorno sem cálcio trunca no organismo humano o programa ontogenético que o haveria de levar ao desenvolvimento normal da dentição, uma vida social inexistente produz um ser sem articulação linguística e sem autoconsciência, sem vida anterior articulada; uma arquitetura cognitiva deserta de experiência e conteúdo, não um indivíduo no sentido que damos correntemente a esta palavra.
A compreensão interna é nosso direito desde o nascimento e nosso maior presente. Cada um de nós começa sua vida preparado pela natureza para criar o mundo dos demais a sua própria imagem. Para uma criança não há outra alternativa: não vê nos demais nem mais nem menos que os sentimentos que ele mesmo conheceu e, à medida em que se enriquece, o mundo que lhe rodeia se enriquece com ele. É a existência secular e o mútuo relacionamento na vida social que produzem o indivíduo; é "com" o outro e "por meio" do outro que o indivíduo se constitui: o conhecimento próprio ou o autoconhecimento vai unido em parte com o reconhecimento do outro.
A capacidade para autointerpretar-nos é inseparável da aquisição da capacidade para interpretar os outros, para ler suas mentes, para entendê-los e para entender-nos a nós mesmos como seres intencionais: é inata a nossa necessidade de atrair o olhar e o reconhecimento do outro que, nessa condição, já não ocupa uma posição comparável à nossa, senão contígua e complementária. Como seres reflexivos e marcados por uma incompletude constitutiva da espécie é somente no trato de uns com os demais quando temos que pensar, sentir, recordar, amar, odiar, calcular e sopesar as coisas; quer dizer, em que a empatia, a cooperação, o egoísmo, o altruísmo e a competição fluem com maior naturalidade.
De fato, os seres humanos não podem sobreviver em nenhum lugar da terra à margem da sociedade: não podem sobreviver, quero dizer, em nenhum lugar da terra, de forma autônoma e separada, se carecem de uma profunda sensibilidade e capacidade de compreensão do outro. Assim como ensinam mesmo as mais laicas entre as ciências, é o outro, a sua mirada, que nos define e nos conforma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro.
O ser humano (um primata sem pelo e neotênico que evolucionou até converter-se em uma espécie que pode mirar seu próprio passado, reflexionar sobre a vida e imaginar o futuro), sem alteridade humana, não pode desenvolver suas promessas genéticas e sociais. Isto é o que pressupõe conceitualmente que a natureza humana, a arquitetura cognitiva de nossas mentes, seja constitutivamente social – quer dizer, que nossa condição e nossos respectivos estados intencionais (de primeira e de segunda ordem) estão vinculados e se agregam constitutivamente respeito às relações sociais. Somos "animais mentalistas" enraizados na passarela intersubjetiva da existência.
Pois bem, esta capacidade de auto-observação através do espelho alheio não somente é uma das bases da vida social humana e a essência do que significa em verdade autodenominarmos seres sociais, senão que é também um ponto crucial em alguns dos modelos matemáticos refinados da evolução dos agentes sociais. Por exemplo, M. A. Nowak e K. Sigmund ofereceram um modelo de simulação do desenvolvimento de grupos cooperativos em que a reciprocidade indireta nas ajudas se obtinha não tanto mediante a cooperação efetiva, senão graças ao fato de contar com uma imagem de cooperador (C. Wedekind). Voltaremos sobre este ponto mais adiante.
A maneira como foi possível fixar-se na evolução dos hominídeos a faculdade mental de identificação do outro como ser intencional somente pode ser esboçada de forma especulativa, mas já se assinalou que a necessidade de adaptar-se aos novos habitats abertos da savana africana mediante o uso de instrumentos de pedra em tarefas de caça poderia haver suposto uma pressão seletiva suficiente para estabelecer fortes tendências sociais e favorecer o ulterior avanço das capacidades cognitivas relacionadas com a comunicação e associação simbólica. Isso é tanto como dizer que as bases neurofisiológicas para a linguagem, o pensamento, a intercomunicação proposicional e a leitura da mente poderia haver aparecido (ou iniciado) não na etapa final da hominização, com o Homo sapiens, senão nos momentos iniciais dentro da espécie Homo habilis (P. V. Tobias).
À margem do acertado que possa ser o modelo da aquisição recente no gênero Homo de capacidades cognitivas próprias e distintivas, o certo é que dentro desse gênero e a partir, sobretudo, do Homo erectus, se produzem incrementos extra-alométricos do cérebro (superiores ao do próprio aumento do tamanho do corpo). Terrence Deacon precisou ainda mais esta hipótese apontando a certos câmbios no córtex frontal – já dentro do Homo sapiens – como responsáveis da aparição das complexas capacidades cognitivas humanas. A vida em grupos cada vez maiores contribuiu para o desenvolvimento de mais inteligência social, evoluindo os hominídeos como verdadeiros leitores de mente. No processo de hominização aumentou o volume cerebral (e com ele os neurônios disponíveis e os padrões possíveis) em relação com o volume corporal e se desenvolveram especificamente o cerebelo e o córtex frontal.
São muitas as teorias e os debates acerca do excessivo tamanho de nosso misterioso cérebro que, ademais de evolutivamente custoso e de ser o mais complexo dos objetos que se conhecem no universo (quer dizer, conhecido por si mesmo), não descansa nunca (nem sequer durante o sono), e cuja principal função consiste em recolher informação do entorno externo e do meio interno e processá-la de tal maneira que resultem respostas motoras adequadas e, em geral, condutas apropriadas para a sobrevivência e a reprodução do indivíduo.[3]
Grande parte dessas teorias sugere que os avanços tecnológicos e a fabricação de ferramentas impulsionaram a necessidade de um cérebro grande[4]. A pressão exercida pelo processo de seleção, segundo estas teorias, provém do entorno físico e de outros animais, sustentando que o cérebro humano necessitava ser mais sagaz que o de seus predadores e mais apto para enfrentar as dificuldades de um entorno particularmente hostil.
Decerto que as ferramentas representaram uma grande vantagem para acometer o inimigo e um cérebro maior poderia fabricar utensílios melhores ou facilitar a recoleção de alimentos, mas daí sustentar e concluir que o cérebro deve ser tão desmesuradamente grande como para levar a cabo este tipo de cometido vai uma gigantesca distância. Depois, se a complexidade cerebral é uma função da complexidade instrumental, então os modelos de evolução do conjunto cérebro/inteligência técnica não estão tratando de descrever a filogênese da inteligência, senão a evolução dos próprios instrumentos líticos.
Assim que o mais razoável é supor que algo distinto motivou o aumento do tamanho de nossa arquitetura cerebral, dado que a causalidade (mas sim a mera correlação) inteligência/capacidade de fabricação não está demonstrada mais além de toda dúvida razoável. Na verdade, as dúvidas existem e persistem. O tecido cerebral é, para dizer com a afortunada expressão de Leslie Aiello, demasiado custoso. São muitos os recursos biológicos e energéticos que há que investir para obter os grandes cérebros que a pressão seletiva impôs no Homo.
E se não é a complexidade instrumental a responsável de manter essa pressão, quer dizer, admitindo como acertada a hipótese de que a inteligência operativa, por si só, não é suficiente para justificar o alto custo da evolução de nosso cérebro (tampouco cabe pensar que o mesmo ocorrera de forma acidental), o problema então passa a ser o seguinte: A que tarefa cognitiva há que atribuir o êxito adaptativo dos cérebros que aumentam de tamanho e de complexidade, um êxito mais que evidente e necessário para justificar o incremento de um tecido cerebral tão custoso?
Outras teorias modernas (também várias e que não as glosarei aqui neste momento) sobre a evolução do cérebro humano mantêm que o principal estímulo ambiental seletivo para seu rápido crescimento pode haver sido as exigências de ter que tratar com a complexidade da vida social. Em vez de pensar que o cérebro humano se desenvolveu simplesmente para solucionar os problemas do entorno material, se lhe considera mais bem como um órgão social desenvolvido no interior do espírito coletivo de uma comunidade. Não como uma máquina calculadora generalizada, senão como provido de "módulos" para tratar com os distintos aspectos da vida social, ao igual que tem também "módulos" para a aquisição da linguagem ou para o reconhecimento facial.
Uma possível resposta foi antecipada por Nicholas Humphrey há algum tempo: os cérebros se tornaram grandes e complicados para poder entender as regras muito complexas de convivência social. Com um detalhe a mais: a aparição na filogênese de inteligências capazes de entender tais regras deve ter sucedido antes da separação das linhagens que conduziram respectivamente a Pan e Homo (nada nos autoriza a supor que a vida social dos chimpanzés e bonobos é simples).
Nesse sentido, uma das principais pressões que conduziu aos humanos a evolucionar na forma em que o fizeram foram os próprios humanos em sua dimensão social, isto é, que foi precisamente a necessidade de afrontar a complexidade do mundo social em que viviam o que os levou a desenvolver cérebros mais grandes (R. Dunbar). O córtex frontal alberga funções como a planificação e a tomada de decisões que parecem derivadas mais da necessidade de interagir com os membros de um grupo social complexo que da resolução de outros problemas relacionados com o meio ambiente (as mesmas razões às que aludia antes a respeito da necessidade de justificar o aparecimento de um tecido cerebral custoso se aplicam em maior medida ainda no que se refere a última expansão do córtex nos seres humanos de aspecto moderno).
Dito de outro modo, da vida em grupo dos primatas resultou a necessidade (evolutiva e adaptativa) de processos cognitivos especializados para competir com êxito na complexidade de nosso estilo de vida social: as relações sociais implicam a construção e a verificação de complicadas hipóteses, predições ou conjecturas, uma inteligência social para mover-se pelo labirinto da vida social, na qual o ser humano tem que antecipar as ações dos demais, calcular as jogadas e contrajogadas das relações interpessoais. E a evidência para realizar esses cálculos é efêmera e cambiante, muda continuamente por nossas próprias ações; cada movimento admite um ramo de possíveis respostas dando lugar a árvores complexíssimas de decisões.
A inteligência necessária para navegar pelo mundo social, que requer até a última gota do poder cerebral que possuímos, é incomparavelmente maior que a que se necessita para tratar com o mundo físico, ou inclusive com os depredadores (é deveras mais difícil, desde logo, poder predizer o comportamento dos demais que o calendário anual - que, por si mesmo, se repete sistematicamente com o passo dos séculos). Aqui residiria a função biológica da consciência, tema que trataremos na próxima semana.
Notas e Referências:
[1] A combinação destas capacidades gerou certas características da função mental que formam parte, por exemplo, da crença ético-jurídica: nossa capacidade para fazer abstrações e deduções causais, e para inferir intenções não percebidas. O que implica, entre outras coisas, que o direito se torna possível quando o impulso de encontrar e inferir explicações causais se combina com a capacidade – e a propensão – de nossos cérebros de subministrar níveis avançados de cognição social. Juntas, estas duas capacidades permitem gerar complexas ideias culturais que vão desde pôr multas aos condutores por haver cruzado com o semáforo em vermelho até a justiça. E uma vez que a sociedade usa leis para encorajar as pessoas a se comportar diferentemente do que elas se comportariam na falta de normas, esse propósito fundamental não só torna o direito altamente dependente da compreensão das múltiplas causas do comportamento humano, como, e na mesma medida, faz com que quanto melhor for esse entendimento da natureza humana, melhor o direito poderá atingir seus propósitos.
[2] Rememoremos: a «Teoria da Mente» (ToM), expressão atribuída a David Premack e Guy Woodruff, se refere à habilidade para compreender e predizer a conduta de outras pessoas, seus conhecimentos, suas intenções e suas creenças. Trata-se da capacidade de poder pensar em outras mentes, de reconhecer que os outros têm mente com pensamentos e sentimentos como os nossos e, a partir de engenhosas hipóteses sobre como opera a mente de outras pessoas, antecipar suas condutas. Segundo a teoria dos sistemas intencionais que anunciou Daniel Dennett (para quem não se trata de uma “teoria”, senão de um talento, de algo parcialmente instintivo), os seres humanos são organismos excepcionais porque a evolução construiu nosso cérebro de tal modo que é inevitável que adotemos uma “postura intencional” quando discorremos sobre os demais: “La postura intencional es la estrategia de interpretar la conducta de una entidad (persona, animal, objeto, lo que sea) tratándola como si fuera un agente racional que determina su “elección” de “acción” mediante una consideración de sus “creencias” y “deseos”. [...] La estrategia básica de la postura intencional es tratar la entidad en cuestión como un agente con el fin de predecir y de este modo explicar, en cierto sentido, sus acciones y movimientos”.
[3] A enorme quantidade de neurônios do cérebro dos craniados, sua intrincadíssima e em grande parte ainda desconhecida microestrutura, a multiplicidade insondável de suas conexões sinápticas e a pluralidade de neurotransmissores dão lugar a um jogo combinatório com potencialidades de complexidade quase ilimitada. Não é de estranhar, portanto, que suas possibilidades de codificação e de processamento da informação sejam praticamente inabarcáveis.
[4] Não olvidemos que o uso de ferramentas supõe umas destrezas cognitivas espetaculares, tais como a faculdade de antecipar o objetivo a lograr, com frequência invisível ou distante do lugar donde se prepara ou se usa o instrumento.
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.
Marly Fernandez é Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.
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