Institutos do Modelo Português de Inspeção do Trabalho

16/07/2019

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

Desde o seu nascedouro a Organização Internacional do Trabalho (OIT) incluiu a inspeção do trabalho entre suas prioridades. A ideia era de que todos os países deveriam ter um sistema de inspeção laboral para assegurar a aplicação das normas de proteção ao trabalho persiste desde a origem da organização (RICHTHOFEN, 2006).

No início foi a pressão dos próprios empresários que levou o Estado a realizar as primeiras intervenções nas relações de trabalho; alertavam para os males do trabalho precoce de crianças, o que poderia tornar o mercado de mão de obra composto por homens fracos e doentes. Sob esse argumento, pediam a intervenção do Estado para a fixação de uma idade mínima para inserção no mercado de trabalho (MANNRICH, 1991).

A inspeção do trabalho é concebida como o principal meio pelo qual o direito do trabalho pode atingir seus objetivos. Para isso, é de fundamental importância o respaldo à legislação internacional, que influencia e vem influenciando os sistemas nacionais (MIGUEL, 2003).

Atualmente a Convenção 81, de 1947, segue sendo o instrumento de referência universal nessa matéria (BEAUDONNET, 2010).

A inspeção do trabalho evoluiu muito nas últimas décadas, provocando uma cultura organizacional de autoavaliação por parte dos empregadores, no intuito de se adequarem às normas trabalhistas, evitando a lavratura de autos de infração e a aplicação de multas administrativas.

A fiscalização das condições de trabalho e a aplicação das normas de proteção ao trabalhador são os atributos fundamentais a serem observados pela inspeção do trabalho no desempenho de suas funções.

Tais atributos se inserem no conceito mais amplo de proteção social dos direitos fundamentais (LOPES FILHO, 2018).

O auditor fiscal do trabalho se constitui num importante intérprete da lei, pois cabe a ele não só a função de zelar pelo cumprimento desta, mas também contribuir para evitar futuras contendas trabalhistas (MIGUEL, 2003).

Ainda mais em um cenário de reestruturação produtiva, a auditoria-fiscal do trabalho se revela peça fundamental cabendo-lhe a mediação entre o capital e o trabalho. A atuação da inspeção é o ponto de equilíbrio nesta seara, capaz de intervir no mercado de trabalho de modo a induzir o cumprimento da lei seja por ação direta ou de forma indireta (SANTOS, 2013).

Porém, é de fundamental importância que, além do viés repressivo, os papéis preventivo e educativo da inspeção do trabalho sejam ampliados cada vez mais, afinal, a percepção, inclusive do próprio Estado, de que esse sistema apenas atua repressivamente, pode gerar o seu encolhimento.

Diante da reformulação das relações de trabalho, na qual, aparentemente, se empoderam as partes (negociado sobre o legislado) visando reduzir a intervenção estatal a um mínimo necessário, a percepção apenas do viés repressivo da inspeção do trabalho revela que este mínimo necessário pode significar a diminuição do número de auditores e dos recursos colocados à sua disposição, desde a infraestrutura técnica e física, até mesmo de ordem administrativa (VIANA, 2011).

A inspeção do trabalho sempre esteve voltada para o trabalho subordinado, pois era a única forma de trabalho que necessitava de proteção legal, e, por isso, tutela estatal, sendo o auto de infração sua principal medida (MIGUEL, 2004).

No entanto, para assumir definitivamente o seu papel de auditoria fiscal do trabalho, ao invés de uma mera fiscalização de resultados estatísticos, ou uma simples busca idealista de proteção ao trabalhador através do auto de infração, temos que esses três papéis (repressivo, educativo e preventivo) são indissociáveis e representam a essência da inspeção do trabalho, que por sua vez segue alguns princípios basilares de sua atuação.

 

O Modelo Português

A ação da inspeção do trabalho tem sempre como objetivo a promoção do trabalho decente em todas as suas vertentes.

No seu decurso, o auditor promove a melhoria das condições do trabalho, adotando o procedimento mais adequado à situação concreta, de acordo com os critérios legais respectivos e tendo por base os princípios da legalidade, imparcialidade, proporcionalidade e igualdade no tratamento das diversas situações.

O auto de infração, porventura lavrado, não constitui um fim em si mesmo; ao revés, antes deve ser entendido como uma ferramenta cuja adoção se destina exclusivamente a assegurar a consecução da função de inspeção do trabalho (REIS, 2009). Deve ser entendido como meio através do qual o auditor procura garantir a melhoria das condições laborais nos locais de trabalho objeto da sua ação.

No entanto, além dele, as autoridades administrativas do trabalho, para cumprir o seu mister, podem ainda se utilizar de: notificações para a apresentação de documentos; notificações de débito do FGTS e contribuição social; interdição ou embargo; dentre outras espécies de atos administrativos.

Chama a atenção, na inspeção do trabalho de Portugal, a gama desses atos de que dispõe o inspetor do trabalho daquele país (AUTORIDADE PARA AS CONDIÇÕES DE TRABALHO – ACT, 2015).

Cumprindo o seu papel repressivo, mas sem esquecer do preventivo e educativo, a inspeção portuguesa, seguindo os parâmetros estabelecidos pela OIT, antes de lavrar o auto de infração propriamente dito, pode se utilizar da recomendação, da advertência e do auto de advertência.

A recomendação é um procedimento de natureza não punitiva, utilizada pelos inspetores do trabalho quando encontradas omissões por parte dos empregadores, não tipificadas na legislação como infração, traduzindo numa atividade de conselho sobre a melhor forma de cumprir a lei.

A adoção da advertência deve levar em consideração o comportamento do infrator e a eficácia esperada quanto aos resultados e prioridades da ação fiscal, podendo ser adotado sempre que:

a) A infração consista em irregularidade sanável da qual não resulte - já consolidado e de forma irrecuperável - um prejuízo sério para os trabalhadores ou para terceiros, para a administração do trabalho ou para a seguridade social;

b) Não existam indícios que permitam inferir na existência de conduta dolosa quando do cometimento da infração.

Caso as medidas já mencionadas não sejam atendidas, devem ser adotados os procedimentos coercitivos, onde temos o auto de advertência. Ele é aplicável relativamente a infrações classificadas como leves e das quais ainda não tenha resultado prejuízo grave para os trabalhadores, para a administração do trabalho ou para a seguridade social.

Deve conter a indicação da infração verificada, as medidas recomendadas ao infrator e o prazo para o seu cumprimento. Caso não sejam cumpridas as medidas recomendadas devem ser lavrados os autos de infração (autos de notícia) propriamente ditos.

O auto de advertência tem forte tradição na inspeção laboral em Portugal. Constituindo a sua primeira linha de intervenção, privilegiando a função pedagógica, de informação e orientação, e reservando a função sancionatória para uma intervenção subsidiária.

Porém, o campo de aplicação do auto de advertência é, na prática, exíguo, já que a opção está reservada às infrações classificadas como leves e das quais não tenha ainda resultado prejuízo grave para os trabalhadores, para a administração do trabalho e para a seguridade social.

O auto de advertência tem uma natureza peculiar, representa um sinal de uma presumida ilegalidade nas práticas laborais.

Ainda assim, sua aplicação suscita várias questões nas cortes portuguesas, como dos requisitos da opção pela sua lavratura em alternativa ao auto de notícia (auto de infração propriamente dito), acarretando consequências bem menos gravosas para os empregadores, podendo-se questionar como se pode decidir entre a função pedagógica e a função sancionadora da autoridade administrativa.

Neste sentido temos interessante acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa:

“Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

TRL de 04/10/2006 (José Feiteira), proc. n.º 5113/2006

Sumário:

O art. 19º nº 1 do RGCOL, bem como a Lei n.º 99/2003 de 27/08 que introduziu no nosso ordenamento jurídico o actual Código do Trabalho, conferem ao Sr. Inspector do trabalho a faculdade de levantar auto de advertência. Contudo, a atribuição de uma tal faculdade, não confere ao senhor inspector do trabalho um poder discricionário no sentido de dispor de um livre arbítrio entre perseguir ou deixar de perseguir o infractor em termos contra-ordenacionais, apenas lhe confere discricionaridade entre poder optar pelo levantamento de um ou de outro dos referidos autos o que “pressupõe a prossecução do objectivo que está subjacente à mens legis” e, ainda assim, condicionada à verificação de determinados pressupostos” (CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS, 2014, pág. 159).

 

Conclusão

O papel da inspeção do trabalho não é ainda totalmente conhecido, e, portanto, não é bem compreendido, e, por isso, pouco reconhecido. Mesmo sendo avaliada apenas pela sua intervenção policialesca, o seu objetivo primordial sempre foi a promoção de medidas de apoio social.

O papel de policiamento social foi bem definido até a segunda guerra mundial, visando salvaguardar as primeiras conquistas do progresso social. Porém, com o advento da Convenção 81 da OIT alterou-se essa concepção significativamente, ao se estabelecer que o papel preventivo e de aconselhamento (educativo) são tão importantes como o repressivo.

Ultrapassando o antigo conceito de meramente uma polícia do trabalho, temos que a inspeção do trabalho é um instrumento de desenvolvimento tanto econômico como social.

 

Notas e Referências

AUTORIDADE PARA AS CONDIÇÕES DE TRABALHO – ACT. Referencial da atividade inspetiva. Lisboa, 2015. EDITOR: ACT- Autoridade para as Condições do Trabalho. EDIÇÃO: junho de 2015. ISBN: 978-989-8076-90-8 (web pdf).

BEAUDONNET, Xavier. Derecho internacional del trabajo y derecho interno: manual de formación para jueces, juristas y docentes en derecho. 2. ed. Turín: OIT. CIF, 2010. 248p.

CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS. Contraordenações laborais – jurisdição do trabalho e da empresa, coleção formação inicial. Lisboa, 2ª edição, 2014.

LOPES FILHO, Abel Ferreira. Manual de Direito Administrativo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2018.

MANNRICH, Nelson. Inspeção do trabalho. São Paulo: LTr, 1991.

MIGUEL, Antônia Celene. O Fiscal do Trabalho: entre a lei e o mercado – Grupo de trabalho no XI Congresso Brasileiro de Sociologia. 1 a 5 de setembro de 2003, UNICAMP, Campinas, SP.

________. A inspeção do trabalho no governo FHC. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos como parte dos requisitos para a obtenção do título de mestre em ciências sociais, 2004.

REIS, Jair Teixeira dos. Processo administrativo do trabalho. São Paulo: LTr, 2009.

RICHTHOFEN, Wolfgang Von. Inspeção do Trabalho: Um Guia da Profissão. Tradução de Luís Pinto. Revisão técnica Antônio Fonseca, João Fraga de Oliveira. Lisboa: Coimbra Editora, 2006. Disponível em: < http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---safework/documents/publication/wcms_344230.pdf>. Acesso em 12 nov. 2017.

SANTOS, Maria Roseniura de O. Efetivando a legislação laboral: a fiscalização do trabalho como instrumento de desprecarização do mercado de trabalho. Pesquisa realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação da Universidade Católica de Salvador (USAL), como requisito para obtenção do grau de Mestre em Políticas Sociais e Cidadania em 2013.

VIANA, Nildo. Inspeção do trabalho durante o regime de acumulação integral. Universidade Federal de Goiás – UFG, Revista Sociologia em Rede, vol. 1, num. 1, Jan./Jul. 2011.

 

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