Insistimos sempre nos mesmos equívocos!!!

04/10/2015

Por Haroldo César Náter - 04/10/2015

Estamos, por certo, atravessando uma fase muito importante da história da ordem político/jurídica brasileira. Não é a primeira vez que isso acontece, tampouco será a última, entretanto é a fase que estamos vivendo e isso é o que interessa neste momento. Uma fase que tem acarretado transformações profundas e relevantes na natureza do nosso agir, do agir do nosso povo, bem como, não como uma consequência desejada dessas transformações, mas como efeitos colaterais delas, mudanças no agir institucional dos organismos de poder do Estado que, em última análise são formados por pessoas que, também se encontram afetadas pelas mesmas transformações de agir humano. Ensina o filósofo Hans Jonas[1] que “certas transformações em nossas capacidades acarretam uma mudança na natureza do agir humano. E, já que a ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza modificada do agir humano também impõe uma modificação na ética”.

Essas transformações são extremamente relevantes para o desenvolvimento da nossa maturidade política e definição do nosso destino enquanto sociedade que tem entre seus fundamentos a preservação da dignidade da pessoa humana, evitando-se, assim, provocações estruturadas no discurso falacioso e cansado da maximização da repressão como panacéia para as mazelas supostamente produzidas pelo também cansado discurso da impunidade como fomento ao crime. Há que se observar atentamente tais transformações e agir com muita responsabilidade. Fato é que esse novo agir humano demanda uma ética fundada na responsabilidade, ética que preserve as conquistas alcançadas pela humanidade e que evite que riscos concretos sejam efetivados transformando-se em realidade e, consequentemente, desconstruindo modelos que asseguram a sua própria existência. Enfim, necessitamos de uma ética distinta daquela que até então vigorou, o que pressupõe a mudança, também, das variáveis que a estruturam, pois sem alteração das variáveis não se alteram os resultados.

A necessidade de uma ética da responsabilidade é imprescindível para essa fase que o Brasil atravessa e que, ao mesmo tempo tem, de um lado, colocado em inegável risco garantias e direitos conquistados, laboriosa e arduamente, através dos tempos, pela inegável evolução da perspectiva mundial acerca dos direitos humanos [em especial no que se refere ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, ambos “ultima ratio”(prefiro as expressões “eximia ratione” ou “motivo eccezionale”) no combate aos gravíssimos desvios de condutas que acontecem no dia a dia das sociedades pós-modernas] e, por outro lado, também tem proporcionado condições para a efetivação de um sério, profícuo e cauteloso debate (registre-se: que ainda não começou a ser travado com responsabilidade no Brasil, diante da existência de personalidades intocáveis que não estão preparadas para a dialética e que se ofendem quando argumentos comprovadamente científicos desmentem suas esdrúxulas teses) acerca da maturidade alcançada pelas nossas instituições jurídicas e políticas, encarregadas de dar efetividade à ordem jurídica nacional, pois, afinal, ao menos no campo do Direito posto (ou seria pressuposto?), vivemos numa República Federativa Democrática de Direito. Não se pode flexibilizar ou relativizar garantias processuais penais e direitos individuais para justificar a ineficiência do estado na tarefa de diminuir a “criminalidade” e a sua comprovada eficiência em aumentar a criminalização.

As atuais condições de tempo e pressão brasileiras se encontram perfeitamente adequadas à difusão de propostas às vezes oportunistas, às vezes infantis, às vezes confusas, às vezes ultrapassadas e, na maioria do tempo, propostas que cumulam todos esses vícios em uma só ação ou manifestação. Mais do que nunca há que se ter cautela com as ações dos empresários morais de ocasião, que numa cruzada messiânica difundem idéias sem qualquer fundamento científico, como se o fossem capazes de solucionar “ad aeternum” o problema da criminalidade em nossa sociedade.

A pergunta que fica é: quem é o protagonista dessa perspectiva de mudança? O protagonista dessa face decisiva da história brasileiro não é um indivíduo real, tampouco um grupo de indivíduos. É sim uma figura imaginária, um ser criado pelo inconsciente coletivo que com seu exército de paladinos da verdade absoluta, veio para promover a redenção e livrar a sociedade brasileira da escravidão à corrupção em que se encontra submetida. Um ser cuja chegada era muito esperada e desejada, mas que nunca chegava por que ainda necessitava ser inventado. A crença nesse ser salvador, como que uma ilusão messiânica, empresta-lhe qualidades que não são naturais aos seres humanos (onisciência/onipresença/onipotência – tudo sabe, está em todos os lugares e, por isso, tudo pode), transformando um ser de carne e osso em um super-homem, emprestam-lhe a suprema sapiência e o transformando, ainda, em um ser infalível, justificando, mais do que ninguém, ser chamado de excelência. Os efeitos da percepção que se tem desta figura imaginária são tão deletérios posto que acabam por obnubilar as mentes, inviabilizando a elaboração de qualquer análise crítica, fundada na razão, que se pretenda fazer, justificando qualquer ação, por mais desarrazoada que seja, posto que com gênese na fé. A fé não precisa ser justificada, basta-se a si própria. Aliada à promoção que os meios de comunicação de massa fazem de tão pura e sublime figura, torna-se praticamente impossível questionar as suas ações, o que faz com que até os seus superiores o temam e não se atrevam a questioná-lo, pois tal questionamento os transformaria em hereges perante a comunidade, pois nessa histeria coletiva quem não está a favor desse ser idealizado só pode estar contra ele e pois, se ele quer o bem da sociedade, quem discorda minimamente que seja deste ser, indubitavelmente deve querer o mal desta mesma sociedade.

De tudo o que se tem divulgado por intermédio da grande mídia, chama atenção a campanha denominada de “As 10 Medidas Contra a Corrupção – Propostas do Ministério Público Federal para o combate à corrupção e à impunidade”. Com o devido respeito que merece a Instituição e seus doutos integrantes, tal proposta nos parece cumular todos os vícios apontados anteriormente (é oportunista, é infantil, é confusa e é ultrapassada) e mais alguns. Vejamos as propostas e as críticas que entendemos pertinentes:

tabelaTodas as dez medidas sugeridas já foram tentadas no passado e se mostraram ineficazes. Trata-se de uma pauta oportunista, impensada e infantil. Há 74 anos o Ministro da Justiça Francisco Campos, na exposição de motivos do Código de Processo Penal brasileiro propôs coisa semelhante. Vejamos uma pequena parte da exposição de motivos datada de 3 de outubro de 1941:

“De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha‑se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social.

Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico‑penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal‑avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de certos critérios normativos com que, sob o influxo de um mal‑compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, se transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal.

As nulidades processuais, reduzidas ao mínimo, deixam de ser o que têm sido até agora, isto é, um meandro técnico por onde se escoa a substância do processo e se perdem o tempo e a gravidade da justiça. É coibido o êxito das fraudes, subterfúgios e alicantinas. É restringida a aplicação do in dubio pro reo. É ampliada a noção do flagrante delito, para o efeito da prisão provisória. A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade, para ser um dever imposto ao juiz, adquire a suficiente elasticidade para tornar‑se medida plenamente assecuratória da efetivação da justiça penal. Tratando‑se de crime inafiançável, a falta de exibição do mandato não obstará à prisão, desde que o preso seja imediatamente apresentado ao juiz que fez expedir o mandato. É revogado o formalismo complexo da extradição interestadual de criminosos. O prazo da formação da culpa é ampliado, para evitar o atropelo dos processos ou a intercorrente e prejudicial solução de continuidade da detenção provisória dos réus. Não é consagrada a irrestrita proibição do julgamento ultra petitum. Todo um capítulo é dedicado às medidas preventivas assecuratórias da reparação do dano ex delicto.

Quando da última reforma do processo penal na Itália, o Ministro Rocco, referindo‑se a algumas dessas medidas e outras análogas, introduzidas no projeto preliminar, advertia que elas certamente iriam provocar o desagrado daqueles que estavam acostumados a aproveitar e mesmo abusar das inveteradas deficiências e fraquezas da processualística penal até então vigente. A mesma previsão é de ser feita em relação ao presente projeto, mas são também de repetir‑se as palavras de Rocco: “Já se foi o tempo em que a alvoroçada coligação de alguns poucos interessados podia frustrar as mais acertadas e urgentes reformas legislativas”.”

Percebe-se que o caminho proposto pelo MPF não representa nenhuma novidade e tampouco vai ajudar a diminuir o número de crimes que acontece no dia a dia da sociedade brasileira. Há que se ter responsabilidade antes de se propor o que quer que seja. De boas intenções o inferno está cheio (já dizia a sabedoria popular). Mais uma vez apenas o gozo pelo sofrimento do outro será o alívio das tensões sociais que a própria sociedade cria. Passados 74 anos ainda insistimos nos mesmos equívocos. Precisamos, mais do que nunca de uma ética da responsabilidade, especialmente daquelas pessoas e instituições que receberam do povo o poder que exercem. Vale lembrar, mais uma vez, o que preleciona Hans Jonas[2]: “A responsabilidade é o princípio primordial e norteador deste momento da história de utopias caídas e novos paradigmas levantados, no qual o ser humano busca desesperadamente categorias que o ajudem a continuar vivendo digna e que continue merecendo o nome de humana”.


Notas e Referências:

[1] Jonas, Hans; “O Princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica”, Tradução do original alemão Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez, Rio de Janeiro : Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, pág. 29.

[2] Idem nota anterior.


Haroldo Náter

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Formado em Direito pela PUC/PR e Filosofia pela UFPR. Professor de Direito Processual Penal e Estágio Supervisionado II nas Faculdades Opet em Curitiba. Doutorando em Direito pela Universidade de Buenos Aires - UBA. Advogado Criminalista atuando na defesa de seis réus na midiática operação "lava-jato".

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Imagem Ilustrativa do Post: Donna angry // Foto de: dead cat // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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