Por Atahualpa Fernandez - 31/07/2015
“Cuando uno renuncia a sus sueños tiene que masturbarse con la realidad”.
Ennio Flaiano
É possível que o alto e descontrolado índice de criminalidade, violência e insegurança de que tem sido vítima a sociedade brasileira seja um fenômeno que não tenha a dimensão e a transcendência que parece. É possível! Também pode ser o contrário: que por razões nada difíceis de imaginar nossas instituições públicas não estejam dando a devida importância a uma situação cruel que assusta as pessoas e que mantém a sociedade em permanente sobreaviso, isto é, à tarefa de garantir a liberdade e a segurança dos cidadãos neste mundo incerto e ruidoso.
Sem descuidar o papel útil, em termos de utilidade mediática e de interesse político, dos discursos proferidos pelos governantes toda vez que surge uma vítima inocente da barbárie que experimentamos no cotidiano, tenho a sensação de que o atual modelo de Estado deveria tomar outro rumo completamente distinto. Entre outras coisas, porque em questão de “segurança pública” o Brasil se encontra – e sobre isso parece que há certo consenso - em um momento francamente deplorável, com uma enxurrada de propostas políticas e projetos legislativos (“redução da maioridade penal”, “multiplicação de leis em matéria criminal”, “rapidez da justiça”, “maximização do poder punitivo”, “endurecimento das penas”, etc...etc.) que mais se parecem a um grotesco e esquizofrênico evangelho de desesperação e estupidez de cúmplices impotentes.
Todo um conjunto de imposturas que, sendo parte do problema e não parte da solução, são próprias de uma verdadeira "anocracia" (anocracy), quero dizer, de um regime cuja característica é a combinação de um governo débil, politicamente instável, ineficaz, altamente corrupto e que não faz nada bem, ou, como prefere Steven Pinker, um "gobierno de mierda".
De fato, qualquer parecido com o que caberia chamar um Estado republicano brilha de maneira clamorosa por sua ausência. E o que salta à vista, por mais que insistam em negar as autoridades e as instituições responsáveis pela segurança cidadã, é a evidência de que, já faz algum tempo, alcançamos sobre essa questão uma situação de stress, reprovável e feia. Ademais, que isto esteja sucedendo de forma desenfreada supõe algo de tanta gravidade que deveria inquietar a todos. Porque é a própria sociedade em concreto a ameaçada e constantemente violada, com bem negras perspectivas no horizonte do futuro.
Sejamos sérios. Não é necessário estar geneticamente dotado de uma grande inteligência para perceber o grau de estancamento a que chegou o Estado, as nefastas consequências da atual situação de quebra das instituições e o desconcertante fracasso que cada dia suporta a dignidade dos cidadãos: basta com folhear qualquer jornal, ver a televisão ou passear por qualquer cidade brasileira. Notícias e números que gritam e inflam a larga e degradante estatística da criminalidade brasileira e que, por si sós, já deveriam ser suficientes para conscientizar do circular, vicioso e atroz desprezo estatal pelo reconhecimento e garantia dos direitos (e deveres) assegurados a todo e qualquer cidadão.
Repetindo a pergunta feita por Walter Benjamin ao referir-se a seu tempo: "¿Pero de verdad alguien puede dormir tranquilo?" À toda evidência que não. Não é fácil viver em uma sociedade em que se os governantes não logram encontrar ofensiva a dura realidade da violência e suas implicações, não é porque careçam de informação, senão porque se negam a enfrentá-la, porque animados pela covardia e respaldados pela indecência optam por ignorá-la de forma deliberada. Não pode ser fácil viver em uma sociedade em que a ideia de liberdade e segurança parecem ter perdido todo sentido de valor, ainda que dando por assentado que vivemos em um entorno social em que se pode dizer qualquer coisa das que não temos nenhuma prova (afirmações sobre Deus, a religião e crenças sobre a Bíblia, por exemplo).
Sabemos, ou ao menos intuímos, que as ruas estão cada vez mais perigosas e que a ilusão da desconexão entre liberdade e segurança é cada vez mais aguda. O único problema é que não existe propriamente liberdade sem segurança. A insegurança implica ela mesma uma falta de liberdade, tanto mais profunda quanto mais dramática seja essa insegurança. Por isso poucas palavras se pronunciam tanto; poucas dizem tanto e com tanto poder e eloquência que a palavra violência, que nada mais é, em última instância e em primeira, insegurança. E a insegurança é o efeito da violência sobre a liberdade dos cidadãos.
Insegurança é a violência mirada desde os inseguros, ou melhor, desde os que se sentiam livres e se encontravam seguros, mas que já não estão. Insegurança é, em si, uma palavra que denota certa covardia moral: uma palavra dita desde a submissão e o medo a sofrer a violência dos que não respeitam a ideologia que diz que "não há que interferir arbitrariamente na vida dos demais", "não há que roubar", "não há que matar", "não há que sequestrar", "não há que causar dano"... A violência dos que não encontram mais solução que essa violência para formar parte de uma sociedade que “no los necesita – y se lo hace saber todos los días”(M. Caparrós). Assim que enquanto não comecemos a tratar como Deus manda e sem delirantes dissimulações o vínculo entre liberdade, insegurança e violência, não estaremos falando em sério.
Por que? Pois pelo simples fato de que sem segurança, a liberdade é uma quimera. A liberdade (e me refiro à liberdade republicana) é o contrário da submissão de qualquer espécie ou natureza. É livre quem não pode ser arbitrariamente interferido por outros; a possessão da liberdade requer não somente a ausência de interferência por parte dos demais nos espaços em que elegemos e tomamos decisões relevantes para nossas vidas, senão também a ausência de controle não justificado, isto é, ausência de dominação.
Por outro lado, não é livre neste sentido ou está minguado em sua liberdade quem, podendo ser interferido por outros, não se vê interferido de fato, por exemplo, por pura casualidade ou artimanha. Quer dizer, desfruto dessa "não interferência" só pela muito contingente razão de que, sendo um indivíduo relativamente privado de poder e estando rodeado de agentes que me dominam (agentes com poder de interferência arbitrária), sou demasiado cauteloso, renuncio a satisfação de alguns de meus desejos ou sou muito “astuto” e cuido de manter-me afastado ante a ameaça de problemas: procuro não sair de casa em determinadas horas, não paro em semáforos pela noite, não uso jóias ou objetos de valor em qualquer ambiente, não me detenho para atender estranhos na rua, etc...etc.
A liberdade, assim entendida, é um conceito disposicional: sou livre quando não estou baixo a mão ou potestade de ninguém, quando ninguém poderá – faça de fato ou não – imiscuir-se caprichosamente em meus planos de vida. Desfrutar dessa "não dominação" é estar em uma posição tal que ninguém tem o poder de interferir (arbitrariamente) sobre mim, sendo esta a medida de meu poder.
Dito de outro modo, falta de liberdade (de eleger, de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir) é a que tem o cidadão que apenas chega ao fim do dia e não sabe se amanhã conservará a sua vida; é a que sofrem todas as mães (e pais) que dependem da exígua caridade dos assaltantes e sequestradores de seus filhos. Falta de liberdade é a que sofrem muitas famílias brasileiras porque necessidades e desejos vitais para elas já não dependem de instituições que dão suporte a uma vida digna e segura. Falta de liberdade, enfim, é o que padece aquele que vive (ou sobrevive) com a permissão de delinquentes. Em suma: se tenho que pedir permissão a X para poder viver cotidianamente, minha existência material depende de X; se dependo da vontade de outra pessoa para poder sobreviver, não sou plenamente livre.
Por onde se vê, a sociedade brasileira, porque vive baixo o manto de um Estado monstruoso, impotente e imprestável, padece de um profundo e crônico problema de falta de liberdade. O que me leva a perguntar: Sabem nossos governantes governar? A resposta mais sincera disponível diz que não. Mas, sabem ao menos em que consiste governar? Repetir a negativa seria tremendo e espantoso. Nada obstante, parece ser esta a sensação que dão à sociedade, posto que não fazer nada para evitar ou se opor ao mal quando deve fazê-lo, se converte em grave e implacável injustiça, como outra qualquer que possa cometer um Estado corrompido.
Talvez seja bom recordar a respeito algumas trivialidades. A primeira, que se governa sobretudo por meio da participação e compromisso integral dos dirigentes das instituições públicas estatais. A segunda, que somente com instituições permanentemente atuantes, vigilantes e eficazes é possível viabilizar o florescimento e o crescimento de comunidades éticas. A terceira, que a ausência de segurança por detrás da apatia política e/ou desinteresse institucional condena a liberdade cidadã à ruína e à miséria. Enquanto olvidemos essas verdades, enquanto as administrações não contarem com sistemas próprios de uma democracia apresentável, enquanto continuarem a responder aos delitos internos com represálias indiscriminadas contra (e unicamente) determinados coletivos, o fracasso do Estado estará garantido e a pergunta sobre “o que fazer com nossa falta de liberdade” será pura metáfora.
E se continuarmos a dar essa situação por normal, se não fazemos nada para corrigi-la, se fechamos nossos olhos ante tantas coisas feias, talvez já seja hora de economizar os gastos que se investem em segurança pública porque, de uma maneira ou outra, não servirão de grande coisa. Assim que deveria preocupar, e muito, a atitude de nossas instituições e governantes quando continuam a insistir em um modelo de Estado que não trata de defender nossa liberdade, de proteger-nos frente aos abusos, a corrupção e a inércia dos poderes públicos, de prevenir e condenar com eficácia a ação delitiva, de inviabilizar qualquer forma de existência indigna ou de desmedida criminalidade, de tutelar e garantir a inviolável segurança de todo cidadão, de educar e formar bons cidadãos, de incluir os excluídos... Enfim, de atuar como agente construtor de uma comunidade de seres humanos livres e iguais, unidos por uma comum e consensual adesão ao Direito e em pleno e permanente exercício da cidadania.
Do contrário, continuaremos a menosprezar a liberdade real de boa parte da cidadania e a limitar nossa indignação a “ocasionais” acontecimentos trágicos, sempre matizados por uma retórica de cosmética, inoportuna e inútil. Não tem nenhum sentido seguir falando de "liberdade" ou «não dominação» sem considerar as condições materiais indispensáveis para garantir a segurança dos indivíduos que pertencem a uma comunidade política. Se as pessoas não podem articular seus planos de vida, se não podem levá-los à prática de uma maneira efetiva e contínua, se não são respeitadas como um fim se si mesmo, a cidadania plena resulta impraticável – parafraseando a Charles Darwin, se a miséria de nossos cidadãos “é causada não por leis da natureza, mas por nossas próprias instituições, imenso é o nosso pecado”.
O ato de governar carrega consigo a disposição e a obrigação de reconhecer que enquanto houver indivíduos vivendo baixo o temor gerado pela total falta de segurança e com a permissão de outros, liberdade, dignidade e cidadania não são para eles sequer meras possibilidades humanas. Empregar estratégias de evasão e distração para evitar ou fugir da evidência dos fatos e/ou eludir a responsabilidade de remediá-los não passa de um pérfido recurso para distanciar-se das virtudes de um bom governante, como o sentido da justiça, o compromisso ético-político e o dever de pôr às pessoas no centro de tudo o que faz. (K. Annan)
Claro que, como existem incontáveis formas de caminhar pelo mundo, sempre haverá aqueles para quem em realidade não lhes importa em absoluto este tipo problema ou que simplesmente preferem deixar as coisas em seu santo lugar e não se queixam. Que somos seres com um talento extraordinário para cambiar nosso ponto de vista sobre as coisas com o fim de poder sentir-nos melhor em relação com elas (D. Gilbert), com uma habilidade fascinante para negar a realidade (A. Varki & D. Brower) e com uma capacidade insólita para acostumar-nos a qualquer coisa são ideias que todos conhecemos e que se repetem constantemente na vida diária acerca de muitos aspectos.
Estamos dotados de uma mente que tem mecanismos para bloquear o que nos dá espanto, uma mente que intenta racionalizar tudo quanto nos ocorre para poder adornar a realidade, antecipar o futuro e sentir-nos mais seguros: é uma questão de sobrevivência. Por isso que para algumas pessoas não lhes custa muito habituar-se ao mal (R. Baumeister), perguntar-se, “bajo el hacha del asesino, si no es también él un ser humano” (B. Brecht) ou diminuir a resposta emocional ante a perda da liberdade e a violência a que estão potencial e repetidamente expostas. Pessoas que, por dizê-lo de alguma maneira, quando desertam de seus melhores desejos e legítimos interesses, aprendem a masturbar-se com a realidade. Neste caso, pior para todos.
Afortunadamente, existe também outra classe de gente: a dos que não fomentam o que os psicólogos chamam "crença" ou "hipótese do mundo justo" (E. J. Langer; M. J. Lerner). Indivíduos que não intentam maquiar o mal com eufemismos e entendem que a forma como o governo tem tratado a (in) segurança pública oscila entre a farsa e a tragédia. Para estes - que sabem constatar uma realidade, sua realidade, e em algum momento a de todos -, a mensagem que há que enviar àqueles que estão governando é que não é insignificante ou "sem-sentido" o que está sucedendo: que o desprezo, a poltronaria e a falta de uma adequada atuação e vigilância estatal não são (e não devem ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai mal (e vai!) já constitui razão suficiente para ficar atento, para pressionar as instituições públicas e, sendo o caso, para atuar (legitimamente) em consequência.
Com uma condição: a de que assumir que os valores e as exigências morais também exigem um tipo de esforço cujo cumprimento supõe o que se pode chamar "tarefas coletivas", quer dizer, tarefas que os indivíduos em conjunto se comprometem por uma meta comum que proporciona valor e benefício para toda a comunidade. Garantir a convivência entre os cidadãos, preservar o direito fundamental à liberdade e à integridade pessoal, são responsabilidades do Estado, mas também são direitos e deveres de cada um dos cidadãos, de todos e cada um dos coletivos nos que se organizam e de todas e cada uma das instituições que os representam. É um projeto comum, um "mutualismo" - para usar a expressão de Michael Tomasello - em que deve participar a sociedade inteira. Assim, e somente assim, será possível impedir que a legítima necessidade de proteção se degenere no infantilismo ou vitimização que combina a exigência de segurança com uma avidez sem limites e sem submetimentos a nenhuma obrigação ética ou jurídica. (P. Bruckner)
Com o fim de que se elimine a insegurança, portanto, o primeiro passo consiste em abraçar responsabilidades cívicas e atuar movido pelo imperativo de que o significado moral e social de uma vida digna e livre não se sustenta em presença de tanta violência, para, em seguida, poder exigir o dever e a obrigação do Estado de adotar os meios legítimos, necessários e suficientes para que seus cidadãos possam viver em uma sociedade decente na qual impere a segurança e a liberdade, sem ter que temer sequer os indivíduos que (casualmente) "nasceram para matar". Já não se trata somente do "direito à vida", senão do "dever de viver a vida" (J. L. Sampero), livres de qualquer interferência arbitrária em nossos planos de vida e protegidos da angústia e do sofrimento produzidos pela violência humana.
O resto é mitologia.
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.
Imagem Ilustrativa do Post: Violences policières // Foto de: guy masavi // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/guymasavi/15224570414 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
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