INFÂNCIA/ADOLESCÊNCIA NEGRA E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: ENFRENTAR O RACISMO E CRIAR CIDADANIA

23/11/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

A obra Os direitos da criança e do adolescente: a necessária efetivação dos direitos fundamentais, de autoria de Fernanda da Silva Lima e Josiane Rose Petry Veronese, aborda como o Direito da Criança e do Adolescente pode efetivar direitos fundamentais a partir dos princípios que constituem o ramo jurídico em debate, no intuito de enfrentar o estado de precarização dos direitos dos infantes, especialmente os negros e negras.

O Direito da Criança e do Adolescente, em sua estrutura normativo-principiológica, consiste-se em ramo autônomo do sistema jurídico brasileiro, embasado, no plano internacional, pelos tratados e convenções internacionais que trabalham a proteção dos direitos da criança e do adolescente, e no plano interno, pela Constituição de 1988 e o referencial infraconstitucional do Estatuto da Criança e do Adolescente. A doutrina da proteção integral, assimilada pelo sistema jurídico pátrio dos tratados e convenções internacionais, pode ser entendida aqui não só como o principal marco utilizado pelo Direito da Criança e do Adolescente, mas também como a doutrina que enlaça os esforços externos e internos de pactuar uma ideia de infância e adolescência baseada na cultura dos direitos humanos, para que, assim, o desenvolvimento de crianças e adolescentes sejam possíveis.

Para chegar nesse entendimento, foram séculos de luta para que essa ideia se consolidasse. No primeiro capítulo, Fernanda Lima e Josiane Veronese traçam uma síntese da história da infância e da adolescência no Brasil, colocando a escravidão como o fenômeno social, político e econômico que dotou a sociedade brasileira em lidar com as infâncias e adolescências de formas díspares, criando conceitos que vigoram até hoje, mesmo que não reconhecidos me lei. Em especial, o de “menor”.

Nesse sentido, a forma do Estado brasileiro de lidar com a pobreza e pauperização nos períodos pós-abolição foi através de duas políticas públicas: a roda dos expostos e os institutos correcionais.

A roda dos expostos servia como medida assistencialista para acolher as crianças abandonadas em instituições de caridade, principalmente mantidas pelas Santas Casas de Misericórdia. A partir da roda dos expostos, criou-se uma política pública de encaminhamento das crianças expostas para o trabalho e a disciplina, no intuito de mantê-las afastadas da prostituição e da “vadiagem”. Pelo caráter fortemente moralista, esse discurso também assumia o viés de “pecado original” constituinte do infante abandonado, o que também denuncia as concepções classistas e racistas desde aquela época. Ademais, a roda dos expostos também virou uma forma de garantir uma chance das crianças terem algum sustento e formação, uma vez que as famílias pobres – e predominantemente negras – não tinham condições de fornecer ambas, quer porque não tinham condições materiais por si, quer porque o Estado se recusava em sequer reconhecer às crianças os direitos fundamentais, quanto mais criar condições para que estas sejam garantidas. Sendo assim, a roda dos expostos, ao juntar assistencialismo estatal precário, caridade cristã e filantropia privada, foi a principal expressão de política pública que o país contou.

No entanto, com o advento das políticas higienistas, as rodas dos expostos foram extintas, devido ao alto índice de mortalidade infantil. O resultante dessa mortalidade foi que o Estado estava perdendo recursos para a formação de mão de obra barata, havendo perdas de usufruto desse trabalho. Junto com esse fato, houve uma solidificação ideológica do perigo que a criança e principalmente o adolescente representava, fazendo com que a emergência por medidas de correção fosse estabelecida. É deste ideário que nascem os institutos disciplinares e a legislação que os regulamentava, o Código de Menores de 1927.

Com o objetivo de retirar de circulação os “menores” dos “ambientes viciosos” através das práticas de isolamento institucional, o Código de Menores de 1927 inseriu no ordenamento jurídico formas disciplinares de lidar com o dito problema dos “adolescentes infratores. O Código inova ao definir, em seu art. 26, oito diferentes indicadores de “menor em situação de abandono”, o que garantia ao Estado as condições necessárias para internar crianças e adolescentes quando assim quisesse. Com isto, o referido Código é alçado como instrumento de cerceamento das liberdades infantes, em prol de uma política de controle puramente biológico, que pudesse resultar no disciplinamento desses corpos para serem úteis ao labor. Com as definições de “menor” estabelecidas no art. 26, além do advento do racismo científico de autores como Cesare Lombroso recepcionado por Nina Rodrigues, o alvo preferencial – podemos dizer principal, até – dessas biopolíticas serão as crianças e adolescentes negros(as).

Neste sentido, o Brasil se coloca na contramão do mundo, visto que internacionalmente, desde a década de 20 do século XX, já se tinham esforços para pensar a infância e juventude sob a lógica da garantia dos direitos. Com a Ditadura Civil-Militar, a ideologia da caserna não altera as já consolidadas concepções de “menor infrator” e o Código de Menores só sofrerá alteração em 1979, com pequenas correções na categorização de “menor”, mantendo os mesmos vícios ideológicos do Código de 1927. É interessante pontuar que, mesmo com resultados pífios, o Código de Menores só será alterado em 1979, um ano após o relaxamento político da Ditadura Civil-Militar. Podemos inferir a dificuldade de alterar as políticas para a infância e a adolescência no período mais repressivo do regime, encontrando apenas ambiente político para promover as pequenas alterações após 1978.

Apenas na Constituição Federal de 1988 que houve uma mudança substancial no paradigma da jurisdição da criança e do adolescente, reconhecendo-os como sujeitos de direitos. No art. 227, é instituído o compartilhamento da proteção da criança e do adolescente entre família, Estado e sociedade, nos moldes ditados pela doutrina da proteção integral. O dispositivo constitucional também elenca os direitos fundamentais a serem promovidos a partir desse compartilhamento de deveres, bem como a salvaguarda das crianças e adolescentes de violações, tais como negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Foi a partir de 1988 que o Direito da Criança e do Adolescente pôde, mais uma vez, se constituir como ramo jurídico autônomo. Com isso, o conceito de “menor” fora abandonado – ao menos normativamente – para dar lugar à ideia de criança e adolescente como sujeitos de direitos em desenvolvimento. Calcada na ideia de proteção integral, o ramo jurídico ora exposto serve para balizar um amplo sistema de garantia de direitos, requerendo amplos investimentos nas redes institucionais de atendimento descentralizado.

Esse caráter descentralizado tem explicação. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) impõe, em seu art. 88, diretrizes no atendimento, tais como: a) municipalização do atendimento; b) a criação de conselhos de direitos da criança e do adolescente nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal, de caráter deliberativo e controlador das ações em todos os níveis, envolvendo a participação da sociedade civil por meio de organizações representativas; c) a criação e manutenção de programas específicos de atendimento à crianças e adolescentes e as suas famílias considerando o princípio da descentralização político-administrativa; d) a criação de fundos da infância e adolescência (FIA), nos três níveis de governo e controlados pelos conselhos de direitos, essencial para custear as políticas sociais; e) a integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Púbica e Assistência Social que compõem o sistema de justiça, com a finalidade de agilizar o atendimento às crianças e adolescentes.

É interessante ressaltar como o sistema jurídico estabelecido pelo ECA se assemelha na organização ao Sistema Único de Saúde (SUS) e ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Não obstante, as políticas públicas que versam sobre infância e adolescência também são pensadas de forma intersetorial com os sistemas citados

Os conselhos tutelares também são instituídos por força do ECA. Cada município deve contar com o seu conselho, onde este órgão fica encarregado de garantir os direitos da criança e do adolescente pela via do controle social das políticas públicas, ora acionando os poderes públicos (nas esferas federais, estaduais e municipais) em caso de violação consumada, ora atuando em caráter preventivo para que violações não sejam cometidas.

Cabe ressaltar a importância do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e dos conselhos estaduais e municipais de direitos da criança e do adolescente, em vista que são nesses espaços que a sociedade civil pode trabalhar para pensar e exigir a implementação das políticas públicas aqui em debate. Cabe ao CONANDA garantir e zelar pela política nacional de promoção e proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes, assessorando os conselhos estaduais e municipais para que efetivem as diretrizes políticas deliberadas em seus respectivos territórios. Os conselhos municipais também tem como função organizar os processos de escolha dos conselheiros tutelares.

Esse verdadeiro arcabouço jurídico, como já citado, tem como base os tratados e convenções internacionais em consonância com o direito interno. Dois se destacam: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, de 1989. Sustentam as autoras que, consideradas as violações dos direitos da criança e do adolescente, em específico o dos negros e negras, as duas convenções, trabalhadas em conjunto, colocam argumentos instrumentais para promoção de políticas de igualdade racial que visam a efetividade da universalidade dos direitos da criança e do adolescente.

Isso se explica pois, em se tratando de um país como o Brasil, a questão do racismo não pode ser descartada. Sejam nos índices socioeconômicos, sejam nas construções político-jurídicos, o negro foi (e é) alvo de várias formas de violações de direito. Em específico, essas violações são perceptíveis com mais agudeza nos períodos da infância e da adolescência. Isso impõe condicionantes sociais, econômicos e políticos nos sujeitos que assim são aviltados de seus direitos desde a tenra idade, causando consequência não só aos referidos sujeitos, mas a toda sociedade. Nesse sentido, levar a categoria raça à sério nesses debates não só falam daqueles que estão em déficit de cidadania, mas também fala para a sociedade que, ao assistir e normalizar essas relações, autoriza a barbárie e perdem a humanidade com a destruição do outro que é colocado como o outro a ser excluído.

Achille Mbembe (2018, p. 27) ensina que falar sobre raça é falar de algo dúbio em uma linguagem fatalmente imperfeita, que só falam de simulacros superficiais que não distinguem interno e externo, invólucros e conteúdos. Tudo isso porque raça se constitui em um complexo da ordem do perverso, do terror, de sofrimento e catástrofe. A dimensão fantasmagórica de raça, psicanaliticamente falando, se assemelha à neurose fóbica, obsessiva e, por vezes, histérica. Manejando esse terror e constituindo o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto ameaçador que precisamos nos proteger, desfazer ou até destruir, que promovemos os mais variados “alterocídios” em prol da satisfação imaginária pelo ódio. Levar raça como categoria de análise e alvo a ser combatido é saber que estamos lidando com o que há de mais íntimo e estranho de nós mesmos, e pelo qual temos que fazer borda. O direito da criança e do adolescente, neste sentido, é uma possibilidade disso, no objetivo de pensar formas de garantir às nossas crianças e adolescentes uma vida para além da mera existência.

 

Notas e Referências

LIMA, Fernanda da Silva Lima; VERONESE, Josiane Rose Petry. Os direitos da criança e do adolescente: a necessária efetivação dos direitos fundamentais. Coleção Pensando o Direito no Século XXI, v. 5. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. 243 p.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

 

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