Independentzia

30/03/2015

Por Germano Schwartz – 30/03/2015

Um dos poucos luxos a que me permito está ligado ao rock, o único tipo de música que ouço regularmente se a mim é dado o direito de livre escolha. Como, ao menos nesse início de novo milênio, os rockers voltaram ao underground, confesso que essa liberdade não tem sido ampla. Desde que Valentina nasceu, por exemplo, o DVD da Peppa – e sua trilha musical – ocupou boa parte de minhas audições. En buena hora, como diriam os espanhóis.

O luxo a que me refiro também está conectado à quantidade de viagens que faço para o exterior, a maioria delas ligadas ao meu trabalho, isto é, quando entro em um avião a chance de eu estar fazendo isso por razões acadêmicas beira aos cem por cento. Daí que resolvi, desde há muito, que meu souvenir dessas viagens seria um cd de rock cantado na língua do país visitado naquele momento. Não, eu não sou da época do compact disc; eu sou do tempo do long play. Ainda sinto dificuldades com a música digital. Tenho tanto medo desse sistema que os poucos álbuns comprados nesse formato são todos adquiridos regularmente. Uma de minhas características é ser extremamente azarado. Vai que criam uma central de investigação de downloads de Mp3....

Estou em Oñati nesse momento. Trata-se de uma pequena cidade, com cerca de 10.000 habitantes, encravada nas montanhas do estado de Gipuzkoa. Para os vascos, ela fica em Euskadi; para os espanhóis, ela se situa no País Vasco. Interessante dualidade. De qualquer sorte, é nesse pueblo que eu faço meus retiros intelectuais, visto que a cidade abriga o Instituto Internacional de Sociologia Jurídica, a Meca para sociólogos do Direito como eu. A biblioteca é um sonho. Perfeita. Imensa. Como eu disse, estou aqui a trabalho. Reuniões do Patronato.

Daí que pensei em escrever a coluna tentando explicar um pouco da realidade (jurídica) de Euskadi a partir de rock cantado em euskera. Esse detalhe é importantíssimo, pois a base do pedido por autonomia – ou a menos pelo direito de decidir ser uma nação – no País Vasco é fundamentado, curiosamente, pela unidade linguística de seu povo. Trata-se de um caso raríssimo no mundo, pois tal língua é pré indo-europeia. Ninguém sabe sua origem, muito embora existam certas, porém poucas, conexões com o finlandês.

Claro que o tema é muito mais profundo do que a uma coluna de internet se propõe e possui outras variantes, passando da questão relacionada ao ETA[1] até a injunções políticas típicas da Espanha enquanto nação. Quero, entretanto, exemplificar esse sentimento de nacionalidade , ou de pertença a uma cultura diferente da espanhola, por meio do rock vasco.

Esse elemento humano de um Estado, o povo, manifesta-se de diferentes formas. A cultura é uma delas. Como já defendi – e, ao menos, a mim me parece óbvio – rock é arte. Ademais, o sistema jurídico e o sistema artístico possuem um relação comunicacional de autonomia e de interconexão (conceito básico de autopoiese). Muito singelamente, portanto, pode-se ver nas músicas do rock vasco uma expressão – talvez não a maior, mas uma parcela importante – do sentimento de seu povo em relação à ausência, no mínimo, do direito de decidir a respeito de sua autonomia.

É nesse sentido que o INDEPENDENTISTAK, uma rede social e política fundada em 2010,  que não se compara a um partido político, organiza, para o próximo cinco de Abril, um dia da pátria vasca (Aberri Eguna). A música que o simboliza é cantada pela banda Hesian em Olatu Berdea (a do título dessa coluna), cuja estrofe inicial diz:

A ruas do País Vasco

Cheia de Esperança contêm

Gritos e ecos que se encontram em seus bailes e festas típicas

Criam uma nova melodia

Estrela de oito pontos

Sobre esse velho povo

Com a recordação do que um dia fomos:

INDEPENDÊNCIA

Note-se que não se trata de algo antigo ou de um sentimento sufocado. É atual, porém baseado em fatos que retrocedem no tempo, como se pode ver na música Zauri Irekietaki Herria (Povo com Feridas Abertas), do Berrit Txarrak (Más Notícias). O sentimento da ausência de pertencimento à democracia espanhola mostra-se latente:

... e dirão

Que somos os de sempre

E que na democracia

Estamos deslocados

Uma morte inesperada

Que é considerada normal

E que “tudo vai bem“

Alguns grupos tornam ainda mais evidente esse deslocamento, propondo, radicalmente, uma guerra ao Estado Espanhol. É o caso do Hertzainak (aquele que cuida do povo) em Pakean Utzi Arte (Até que nos deixem paz):

Onde vivia? Por onde andava?

Quando fez inimigos?

Foi feliz alguma vez?

O que pensaria de nós?

O que lhe dava força?

Não se pode mais dar voltas.

Conhecemo-los quando os perdemos

Alguns dias são assim

Podemos saber os nomes de nossos heróis

Podemos ir a seus funerais

Em todos os jornais, na primeira página,

Os restos do cadáver gritando

Guerra ao Estado

Guerra Sempre

Até que nos deixem em paz.

Até que nos deixem em paz.

Mas o deslocamento, às vezes, não se evidencia apenas alegórico ou um sentimento. Não se trata de metáfora. Ele diz respeito ao fato de que o cumprimento da pena para aqueles que cometem crimes políticos ou de terrorismo contra a Espanha é realizado em localidades muito distantes de Euskadi, o que, por sinal, é proibido pela Constituição espanhola. É o que denuncia o grupo Gatibu em Apirilaren 27 a (O 27 de Abril – Carta a alguém que está encarcerado):

... E como as coisas mudam,

Teus olhos ainda estão presos, irmão,

E como as coisas mudam,

Meus olhos ainda estão distantes, irmão.

Com esses pequenos exemplos, é possível perceber um pouco da complexidade da situação existente em Euskadi (País Vasco) no que diz respeito à sua autonomia, ainda mais em tempos de consulta aos escoceses e de uma situação semelhante em seus vizinhos catalães. Eu gostaria de poder conseguir descrever, reduzindo dita complexidade, o desafio de se observar o Recht/Unrecht presente na relação entre aqueles que falam o euskera e a Espanha. Uma unidade da diferença.? Não sei. Socorro-me, novamente,  do rock (Berri Txarrak) e deixo a questão para a reflexão de todos.

Eu gostaria de escrever

A dor de um povo

Com a ferida aberta

Mas, para isso,

Eu deveria ter nascido poeta

E, ao que parece, eles são poucos,

Os amantes da beleza com plumas.


Notas e Referências:

[1] Euskadi ta Askatasuna (ETA). País Vasco e Liberdade. Banda terrorista do nacionalismo vasco. http://independentistak.eus/eu/


GermanoGermano Schwartz é Diretor Executivo Acadêmico da Escola de Direito das FMU e Coordenador do Mestrado em Direito do Unilasalle. Bolsista Nível 2 em Produtividade e Pesquisa do CNPq. Secretário do Research Committee on Sociology of Law da International Sociological Association. Vice-Presidente da World Complexity Science Academy.                                                                                                                                                                                            

 


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