Indenizatória por abandono afetivo: Contributo acerca da competência para julgar    

28/04/2020

“Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto

Pra você parar em casa, qual o quê!

Com seu terno mais bonito, você sai, não acredito

Quando diz que não se atrasa

Você diz que é um operário, sai em busca do salário

Pra poder me sustentar, qual o quê!

No caminho da oficina, há um bar em cada esquina

Pra você comemorar, sei lá o quê! [...]”

A melancólica realidade nos versos da música “Com açúcar, com afeto” pode ser trasladada para a relação paternal por uma razão muito simples: Com elegância e ironia, Chico Buarque retratou um cenário nada descomunal, onde o comportamento masculino transfere à família toda a responsabilidade com tarefas do lar – inclusive cuidados com as filhas – enquanto ocupa-se do prazer pessoal. Qualquer semelhança com a estrutura patriarcal que vai reverberar no abandono afetivo não é mera coincidência.

Não é invulgar que em nosso país as estatísticas apontem para uma miríade de crianças que não têm o nome do pai no assento de nascimento[1]. De mais a mais, a situação se agrava pela irresponsabilidade afetiva nos casos em que o genitor registra, mas não é presente na vida das filhas. 

Nesta quadra, é certo que o problema social tende a ser judicializado, de modo que o ressarcimento pecuniário é o móvel encontrado para colmatar o vazio resultante da ausência familiar.

Em linhas gerais, o abandono afetivo perpassa na falta de convivência de uma das detentoras do poder familiar com a prole. A convivência, como regra, não é apenas um direito das filhas e das mães e pais, mas também um dever destas. Daí porque o direito das famílias abandonou o termo “visitas”.

Por um tempo foi bastante controversa a possibilidade de condenação patrimonial pela inobservância desse dever. No hodierno, entretanto, a questão tem se aquietado pela possibilidade de condenação por abandono afetivo, conforme depreendemos das orientações do Superior Tribunal de Justiça[2]:

O abandono afetivo de filho, em regra, não gera dano moral indenizável, podendo, em hipóteses excepcionais, se comprovada a ocorrência de ilícito civil que ultrapasse o mero dissabor, ser reconhecida a existência do dever de indenizar.

Não há responsabilidade por dano moral decorrente de abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade.

O prazo prescricional da pretensão reparatória de abandono afetivo começa a fluir a partir da maioridade do autor.

A problemática da competência processual, no entanto, permanece tormentosa nos Tribunais. Sobre a matéria, há diversos precedentes oriundos de varas cíveis[3] e outros tantos nos juízos especializados, sendo esses últimos, mais recentes[4].

Tendo em conta a quantidade de casos que tem chegado ao Judiciário, é provável que logo a temática seja enfrentada pelos Tribunais Superiores. Por conseguinte, o espeque deste artigo é tecer algumas considerações sobre o porquê deve prevalecer que o juízo competente para processar e julgar a ação indenizatória por abandono afetivo é o das famílias.

Aqueles que entendem ser a competência do juízo cível defendem, em canhestra síntese, que 1) o pleito indenizatório é de natureza patrimonial, porque a parte pretende receber valor em dinheiro por suposto ato ilícito e 2) A competência da vara das famílias não envolve pleito indenizatório de natureza puramente cível, caráter que ostenta o pedido de indenização por falta de afeto familiar.

Data venia a entendimentos contrários, não se pode dizer que suposto ato ilícito fulcrado na inobservância do direito de convivência é questão a ser tratada no juízo cível, porque será necessário perquirir as razões afetivas que circundam a família do caso, mormente quando há no feito noticias de descumprimento de deveres materiais, como o de pagamento da pensão alimentícia.

Ademais, o artigo 1.638, II do Código Civil, topograficamente localizado no Livro que trata do Direito de Família, impõe como consequência do abandono a perda do poder familiar, o que deve ser analisado no juízo das famílias, exceto quando houver situação de risco, ocasião em que a competência será da Vara da Infância e Juventude (art. 148, parágrafo único, “b” da Lei n. 8069/90) – Estatuto da Criança e do Adolescente.

Outra razão é que o Estatuto das Famílias (PLS 470/2013) projetou o tema no mesmo capítulo em que tratou da alienação parental, inserto no título “da filiação” [5]. Aliás, o texto elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) é consectário de estudos de diversos autores que se debruçam sobre os direitos das famílias e não sobre estudiosos da responsabilidade civil meramente patrimonial. Daí a validade de utilizar o Estatuto como argumento, ainda que tenha sobrevenha seu arquivamento definitivo.

Esse é o escólio de alguns renomados autores[6], para quem a competência é absoluta e, portanto, deve produzir os efeitos que lhe são próprios a exemplo da inderrogabilidade pelas partes:

Por derradeiro, sob o prisma processual, importa pontuar que a competência para processar e julgar os pedidos indenizatórios decorrentes de relações familiares é da vara de família. Isso porque a competência no caso é fixada pela causa de pedir (relação familiar) – STJ, Ac. unân. 6ª T., AgRgResp 883.581/DF, rel. Min. Néfi Cordeiro, j. 18.6.15, Dje 1.7.15), e não pelo pedido (que teria uma conotação obrigacional). Trata-se de regra de competência absoluta, podendo ser conhecida de ofício pelo juiz, não admitindo prorrogação por vontade das partes.

Cumpre sublinhar que a mesma ratio decidendi foi desenvolvida no Supremo Tribunal Federal ao reconhecer a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar pleitos indenizatórios por danos decorrentes de acidentes de trabalho (Súmula Vinculante 22). No caso, apesar do pedido ser indenizatório (natureza cível) a causa de pedir era uma relação de emprego.

Vê-se que os argumentos para fixar a competência do juízo das famílias são mais robustos que interpretar a realidade do ponto de vista meramente patrimonial.

A prevalecer a competência do juízo cível, estará se relegando proteção integral às crianças e adolescentes afetivamente abandonados, já que no juízo das famílias o trato com a relação familiar é do cotidiano, ao passo que nas cíveis o afeto é tratado como mercadoria.

Post Scriptum: Em repúdio ao machismo estrutural também presente na gramática portuguesa, privilegiamos o gênero feminino no escrito (por exemplo, filhas = filhos e filhas).

 

Notas e Referências

[1] Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/7024/Paternidade+respons%C3%A1vel%3A+mais+de+5%2C5+milh%C3%B5es+de+crian%C3%A7as+brasileiras+n%C3%A3o+t%C3%AAm+o+nome+do+pai+na+certid%C3%A3o+de+nascimento Acesso em: 05 mar 2020.

[2] Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-mai-21/stj-divulga-11-teses-responsabilidade-civil-dano-moral Acesso em: 09  mar 2020

[3] E.G. - A ação envolvendo pedido de condenação do genitor ao pagamento de indenização por dano moral/afetivo e material, decorrente de suposto abandono da filha em termos de afeto, é de competência de Vara Cível, porque não se discute matéria afeta ao Direito de Família propriamente dito, mas apenas a existência ou não de ato ilícito ensejador de responsabilidade civil.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0024.12.165674-8/001, Relator(a): Des.(a) Moreira Diniz , 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 06/02/2014, publicação da súmula em 12/02/2014)

[4] Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-dez-08/pai-condenado-indenizar-filha-abandono-afetivo Acesso em: 09 mar 2020.

[5] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/10/23/alienacao-parental-e-abandono-afetivo-sao-punidos-por-estatuto Acesso em: 10 mar 2020.

[6] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – famílias. 8ª Ed. Jus Podvim, 2016.

 

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