Indefensabilidades e feminismo a nível internacional: considerações acerca do princípio da vulnerabilidade do consumidor.

15/06/2018

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo/Coordenação: Marcos Catalan

As pessoas que acompanham este espaço têm conhecimento de que ele está destinado aos debates sobre a sociedade de consumo, tema que pressupõe uma gama de possibilidades de abordagem, visto que nos encontramos imersos em um sistema consumista. Ocorre que, das vezes que aqui me manifestei, utilizei da oportunidade para propor reflexões acerca do feminismo e assim pretendo seguir fazendo. No entanto, em razão da minha recente imersão em litigacao internacional e sistema de proteção de direitos humanos, inúteis são as tentativas de pensar sociedade de consumo e feminismo sem me desvincular da experiência vivida.

Logo, relacionar o sistema de proteção de direitos humanos, a sociedade de consumo com a teoria crítica feminista faz pensar: vulnerabilidade! Permeiam meus pensamentos os seguintes questionamentos: sobre a/o consumidor e sua vulnerabilidade, como ocorreu o processo de reconhecimento do princípio de vulnerabilidade do consumidor a nível internacional? e quanto a nós, mulheres, quais normativas do direito internacional do direito das mulheres se relacionam com a estruturação desse princípio? Obviamente, são poucas as linhas para discorrer sobre tais questões a ponto de lograr conclusões, sendo possível algumas considerações feministas a respeito do tema.

De pronto, cabe salientar que o mercado e as relações de consumo foram historicamente construídos de forma não linear, haja vista serem oriundos das somas de invenções realizadas em contextos e lugares diferentes, permanecendo em constante mutação. Desse modo, tem-se a proteção do consumidor como a consequência da resolução de litígios nas relações de consumo, momento em que se desenvolve, paralelamente à abertura dos mercados, o processo de tutela do consumidor, existente em razão da relevância da temática às orientações para promoção de cooperações internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ONU, sistema global de proteção de direitos humanos, positivou o princípio da vulnerabilidade do consumidor na Resolução n. 39/248 de 1985, [1] adotada por consenso em sua Assembleia Geral após anos de negociações no âmbito do Conselho Econômico e Social, parte da própria organização.[2] Não obstante, a advertência imediata quanto à necessidade de proteção do consumidor lançada sucumbe nos países em desenvolvimento, que além de não acompanharam a base das ideias e a elaboração da resolução, tardam na formulação de políticas públicas e na edição de leis que expressassem a nova visão da realidade do mercado de consumo.

Destaca-se que a Resolução n. 39/248 da ONU foi modificada pela Resolução n. 1999/7, de 26 de julho de 1999, do Conselho Econômico e Social da ONU, momento em que se incluiu disposições relativas ao consumo sustentável das presentes e futuras gerações quanto aos aspectos econômicos, sociais e ambientais.

Ademais, a resolução é considerada o marco da proteção internacional do consumidor, pois reconhece que os/as consumidores se “deparam com desequilíbrios em termos econômicos, níveis educacionais e poder aquisitivo.”[3] O cerne dos objetivos traçados, então, para além do reconhecimento da vulnerabilidade, é a cooperação internacional, vislumbrando a mobilização dos Estados para proteção consumerista, principalmente no que concerne à troca de informações referentes a normas e programas e a adoção de procedimentos de uniformização relativos à qualidade de produtos e informações, evitando-se uma elevada variação entre Estados. Consequentemente, os governos devem desenvolver, reforçar e inverter em uma política para a proteção do consumidor, considerando circunstâncias econômicas e sociais de cada país para atender as necessidades legítimas da sociedade e garantir a implementação de medidas nas áreas de atuações definidas pela ONU.

Assim, tendo o/a consumidor/a reconhecida a sua vulnerabilidade, faz-se necessário pontuar que, segundo ensina Cláudia Lima Marques, a vulnerabilidade é “uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação de consumo. Vulnerabilidade é uma característica, um estado do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção”.[4] Desse modo, mesmo com as inúmeras previsões normativas, é perceptível que a vulnerabilidade é a essência do/a consumidor/a, dando-lhe direito de acesso a proteções específicas, que não devem ser confundidas com as proteções dadas aos/às hipossuficientes. Nesse sentido, e desde uma perspectiva feminista, é possível identificar uma dupla vulnerabilidade em relação às mulheres, que se expressa, por exemplo, na forma em os corpos femininos estão objetificados nos anúncios de cerveja, cujo intuito é não só a venda do produto, mas a perpetuação de papéis sociais estereotipados, dependentes de ações materiais e simbólicas realizadas por homens.[5]

Ora, talvez as normas supracitadas não tenham sido adequadas para a realidade do direito internacional dos direitos humanos das mulheres, não só pela falta de interesse dos governos, mas porque as mulheres são jovens sujeitos para o direito internacional, haja vista que a primeira vez que se convencionou explicitamente que o direito das mulheres são direitos humanos foi em 1993, na Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, celebrada em Viena. Atenta-se, foi apenas no final do século XX que as mulheres alcançam a categoria de humanas para o direito internacional. Desde então, intensificaram-se os movimentos e as negociações realizadas dentro do sistema das Nações Unidas, que inclusive são objeto de críticas de teóricas feministas como Jules Falquet, que defende que o sistema de relações internacionais está marcado pela colonização e pelo imperialismo, de modo que as relações passadas entre Leste-Oeste e as recentes Sul-Norte desempenham um papel determinante para as políticas adotadas pelas instituições internacionais.

Assim, necessários também questionar às propostas e a legitimidade do movimento de mulheres e do movimento feminista ante a imposição de um desenvolvimento supostamente consensual por parte das instituições internacionais, porque, em realidade, tem-se identificado que a condução adotada por ditas instituições vai de encontro aos interessas das mulheres e das análises radicalmente transformadoras do feminismo, condicionando as mudanças às pretensões institucionais.[6]

No ponto, o movimento feminista passa a vindicar uma vida sem discriminação às mulheres, inclusive a nível internacional, o que conduz a realização de tratados internacionais que resguardam os direitos das mulheres, pois o reconhecimento traduz um câmbio paradigmático por permitir o pleito de que os direitos das mulheres fossem considerados direitos humanos, intensificando o vínculo entre igualdade e não discriminação.[7] Portanto, a proteção internacional do direito do consumidor é essencial para analisar os limites e as consequências das representações do feminino nos meios que impulsionam o consumo, a fim de erradicar o sentimento de inseguridade entre as mulheres devido à sua desvalorização, já que seu corpo todavia está para servir de elemento persuasivo e de desejo, um objeto de consumo.

Notas e Referências

[1] A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou novas diretrizes para proteção dos consumidores em 2015, sendo as primeiras editadas as de 1985, cujo conteúdo fora base para a elaboração de legislações, como o Código de Defesa do Consumidor brasileiro - Lei n. 8.078/1990, e de princípios para as relações de consumo no mundo. As novas regras obtiveram a participação direta do Brasil e pela primeira restou reconhecido a diretriz para incentivo dos governos às boas práticas de mercado.

[2] A Resolução n. 1979/74 do Conselho Econômico e Social da ONU embasou a Resolução de 1985, visto que se tratou de uma solicitação ao Secretário Geral da ONU para elaboração de relatório com o intuito de realizar proposições de padronização para o consumo, a serem seguidos pelas nações integrantes das Nações Unidas.

[3] SANTANA, Hector Valverde. International protection of consumers: the need of a legislation harmonization. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 11, n. 1, 2014 p. 53-64

[4] VIEIRA, L. K. Os 25 anos de vigência do CDC e as relações internacionais de consumo: Desafio/s e perspectivas. In: MARQUES, C.L.; MIRAGEM, B.; OLIVEIRA, A. F.  25 anos do Código de Defesa do Consumidor: trajetórias e perspectivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

[5] BERCHT, Ana Maria; COSTA, Angelo Brandelli. TEORIA DA OBJETIFICAÇÃO DO SELF: REFLEXOS PARA A SAÚDE MENTAL DAS MULHERES E APLICABILIDADES NO CONTEXTO BRASILEIRO. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero -13TH WOMEN’S WORLDS CONGRESS, 2017, Florianópolis.  ISSN 2179-510x. Disponível em:   http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499482250_ARQUIVO_FazendoGeneroAnaBercht.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2018.

[6]FALQUET, Jules. Mujeres, Feminismos y Desarrollo: Un análisis crítico de las políticas de las instituciones internacionales. Revista de Antropologia Social Desacatos, 011, primavera de 2003, p. 14. 

[7]FACIO, Alda. Viena, 1993, cuando las mujeres nos hicimos humanas. In: LAGARDE, Marcela; VALCARCEL, Amelia. (Orgs). Feminismo, género e igualdad. Madrid: Pensamiento Iberoamericano, 2011, p. 6.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Calendar Girl // Foto de: AK Rockefeller// Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/akrockefeller/14738159890

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura