INCONGRUÊNCIA: MARCO CIVIL DA INTERNET E A RESPONSABILIDADE CIVIL A PARTIR DE UM DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

24/12/2018

 

Coluna Espaço do Estudante

 

Não se pode olvidar que o exercício da liberdade de expressão aufere uma gradativa facilidade atualmente, tendo em vista as inúmeras ferramentas proporcionadas com o crescimento tecnológico, mais especificamente no tocante à internet e suas redes sociais disponibilizadas. Na verdade, sua abstrata aparência vem concedendo azo para um novo espaço público, ocasionando uma espécie de ágora virtual.

Pierre Lévy, por exemplo, compreendia com otimismo as consequências positivas que poderiam advir da internet, defendendo que a proliferação de textos, dados e informações na rede seriam um mediador essencial de inteligência coletiva da própria humanidade.[1] Disso, depreende-se que a ferramenta teria o condão de criar um ambiente plenamente aberto às discussões culturais, políticas e até mesmo jurídicas, corroborando com a democracia.

Ocorre que a experiência trazida à baila pela ferramenta é pouco agradável no que concerne a liberdade de expressão, muitas vezes oprimindo essa e não propagando. Isso de modo veloz, frágil e líquido, consoante aduz Bauman “a ‘rede’ parece, de maneira pertubadora, uma duna de areia soprada pelo vento e não um canteiro de obras onde se poderão estabelecer vínculos sociais confiáveis”.[2] E o autor continua “[...] quando a discordância viaja em direção a armazéns eletrônicos, ela é esterelizada, neutralizada e tornada irrelevante [...]”.[3]

Exemplo recente desta experiência ocorreu com a corrida pelo cargo de Presidente da República neste ano, no qual foi intenso o debate a respeito das fake news, bem como a cristalina, mas infeliz divergência entre dois lados claramente identificados.

Problema como este agrava o desafio de se buscar um equilíbrio entre liberdade de expressão e a proteção dos direitos da personalidade. Esses entendidos como aqueles direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, visando a defesa de valores inatos, como a vida, segredo, respeito, integridade física e, em especial aqui, a intimidade e a honra.[4]

Tal fato vem convergindo com as consequências de se viver em uma sociedade de risco, chamando a atenção para os novos caminhos da responsabilidade civil a partir de um Direito Civil Constitucional. Afinal, o princípio da proteção humana, gerou a extensão da tutela da pessoa da vítima em detrimento de punição do responsável. Atualmente, o dano deve ser visto como elemento primordial da responsabilidade civil.[5]

Sobre essas novas tendências, já advertia Maria Celina Bodin de Moraes:

De maneira geral, a inspiração constitucional fez comm que princípios normalmente alheios ao surgimento da obrigação de indenizar fossem incorporados ao definir o regime de reparação civil. Se a responsabilidade civil tradicional se baseava exclusivamente na tutela do direito de propriedade e dos demais direitos subjetivos patrimoniais, hoje a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, e a justiça distributiva influenciam profundamente toda a sistemática do dever de ressarcir.[6]

Compreende-se então uma releitura da própria função primordial da responsabilidade civil.  O foco é retirado da pessoa causadora do dano, mais especificamente seu ato reprovável, deslocando-se para à vítima do dano, sendo necessário sua tutela e efetiva reparação integral. Troca-se a palavra “responsabilização” por “reparação”.

Portanto, é  oportuno cada vez mais procurar mecanismos de efetiva reparação para casos deste jaez, de forma a conciliar o exercício da liberdade de expressão, o qual ganhou irrefragável facilidade de propagação com a internet, e os direitos da personalidade, uma vez que ambos são direitos fundamentais que devem ser protegidos.

Contudo, aparentemente, recentes legislações responsáveis pela regulação do tema caminham em um rumo diverso. A Lei 12.965/2014, mais conhecida como Marco Civil da Internet, criou uma intensa proteção das sociedades empresarias que exploram redes sociais reduzindo com veemência o grau de proteção do sujeito vítima de um abuso do direito da liberdade de expressão.

O artigo 19, na secção intitulada “Da Responsabilidade por Danos Decorrentes de Conteúdo Gerado por Terceiros” assim prescreve:

Art. 19.  Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

De pronto denota-se a omissão legislativa com os direitos da personalidade, tais quais a honra e a intimidade, deixando uma lacuna para eventual interpretação judicial que sempre pode ou não ser coerente com o ordenamento jurídico.

Outro ponto notado sem qualquer exigência de interpretação é o termo “somente” utilizado no dispositivo. Ora, seu significado inevitavelmente remete a restrição, isto é, limitação da responsabilidade civil dos provedores de conteúdo, dessa forma, divergindo integralmente da proteção integral da pessoa humana, colocando a culpabilidade como elemento primordial da responsabilidade civil e não o dano.

Por fim, o dispositivo coloca o ajuizamento de ação judicial como uma verdadeira conditio sine qua non  para se ter protegido um direito fundamental, deixando o acesso à justiça de ser um instrumento de proteção de direitos da vítima e reparação de danos. Explica-se. Agora é necessário mover o Judiciário para conseguir uma emissão de ordem específica para retirada do conteúdo e não somente buscar a reparação do dano. A judicialização do conflito é conclusão indubitável, quando na atual sociedade é outra discussão que vem enfrentando inúmeros desafios.

Dessa forma, o acesso à justiça deixa de ser um direito para tornar-se um dever, o que ainda é mais assustador quando o assunto é um valor fundamental a ser protegido. Em suma, o dispositivo, por si só, vai em desencontro com os atuais desafios na sociedade de risco.

Na verdade, a legislação tem o condão de colocar como elemento principal o autor do ato ilícito, excluindo de certa forma as sociedades empresariais que propiciam abusos no direito. Ou seja, o dano é deslocado como elemento secundário, sendo inicialmente imprescindível demonstrar a completa ilicitude do provedor, a partir da movimentação do Judiciário e, por conseguinte, uma tal “ordem específica” para daí então proteger um direito fundamental.

A partir disso é notável a incongruência entre o Marco Civil da Internet, atualmente alvo de discussão em sede de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal[7], e a metodologia civil-constitucional. Os desafios apenas começam, aguardemos eventuais futuras interpretações das Cortes Superiores.

 

Notas e Referências

BAUMAN, Zigmunt, Vida para Consumo – A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro. Zahar. 2008;

BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 8ª ed. São Paulo. Saraiva. 2015;

BODIN DE MORAES. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade – v.9, . 29 – p. 233 a 258 – jul/dez 2006;

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Ed.34. São Paulo. 1999;

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. 3ª ed. São Paulo. Renovar. 2007;

SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Repração à Diluição dos Danos. 6ª ed. São Paulo. Atlas. 2015.

[1] LÉVY, Pierre. Cibercultura. Ed.34. São Paulo. 1999. p. 167.

[2] BAUMAN, Zigmunt, Vida para Consumo – A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro, Zahar. 2008. p. 137.

[3] BAUMAN, Zigmunt, Vida para Consumo – A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro. Zahar. 2008, p. 138.

[4] BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 8ª ed. São Paulo. Saraiva. 2015, p. 29.

[5] SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Repração à Diluição dos Danos. 6ª ed. São Paulo. Atlas. 2015, pp. 189-190.

[6] BODIN DE MORAES. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade – v.9, . 29 – p. 233 a 258 – jul/dez 2006, p. 245.

[7] Trata-se do ARE 833248 RG/RJ.

 

 

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