Incompatibilidade de vida extrauterina – que conceito é este? (Parte I)

18/01/2016

Por Guilherme Wunsch - 18/01/2016

Na coluna desta semana, vamos iniciar o exame de um conceito que sempre é provocador ao Direito: incompatibilidade de vida extrauterina. Essa noção ganhou força quando do julgamento da ADPF nº 54, de 2004, pelo STF.

Desde a petição inicial da ação se verifica que este foi um dos argumentos utilizados com maior força para justificar a possibilidade de interromper a gestação dos fetos anencéfalos. Segundo Barroso, a anencefalia é incompatível com a vida extrauterina, sendo fatal em cem por cento dos casos, não havendo controvérsias sobre isto, ainda que existam relatos de fetos anencéfalos que sobreviveram alguns dias fora do útero materno. De qualquer forma, esta sobrevida é de apenas algumas horas após o parto, não havendo qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte inevitável e certa, sendo que, na maioria dos casos, os fetos anencéfalos morrem ainda no período intrauterino.[1]

Por esta ideia, tem-se que, diagnosticada a anencefalia, não haveria nada que a medicina pudesse fazer em face de um feto inviável, pois a permanência de um feto anômalo no útero materno poderia ocasionar danos à saúde da gestante ou até perigo de vida, tendo em vista o óbito intraútero. Pelo quadro de irreversibilidade do feto, a gestante seria a pessoa submetida a tratamento médico. No caso do feto anencéfalo, prossegue Barroso em sua tese exposta na Ação levada ao STF, a morte dele decorre de uma má formação congênita, sendo certa e inevitável, ainda que decorridos os nove meses da gestação.[2]

No ano de 2009, em audiência pública realizada pelo STF, o então Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, defendeu que a anencefalia é uma má-formação incompatível com a vida do feto fora do útero, que não sobreviverá ao parto, tendo-se este cenário como certo. Assim, o Ministério da Saúde defendeu ser a antecipação terapêutica do parto uma garantia da mulher, a qual está fundamentada na dolorosa experiência de um manejo de uma situações em que mães são obrigadas a levar sua gestação a termo, mesmo sabendo que o feto não sobreviverá ao parto.[3]

Para além destes aspectos, o Ministro da Saúde ainda ressalvou que, havendo o diagnóstico da anencefalia, a mulher é informada e convidada a repetir os exames, que, em geral, são realizados por outra equipe médica, sendo que nos municípios onde existem hospitais de referência em medicina fetal, a gestante é encaminhada para esses serviços. Assegurou o Ministro, dessa forma, que o diagnóstico da anencefalia é resultado de exames feitos por mais de um médico e que o atendimento à paciente é conduzido por equipes multidisciplinares.[4] Essas, seguem os preceitos do parto humanizado e assistem às mulheres grávidas de fetos anencéfalos desde a decisão de buscar suporte judicial para a antecipação do parto até o pós-parto, da mesma maneira que cuidam daquelas que optam por manter a gestação ou não conseguem receber autorização judicial.[5]

Verifica-se que o argumento da incompatibilidade de vida extrauterina fora bastante utilizado como um dos fundamentos para a autorização da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, tendo sido apresentado como uma condição de certeza absoluta quanto ao diagnóstico da anomalia.

Segundo José Manoel Marques, para cada 1.600 crianças brasileiras nascidas vivas, há o registro de um feto anencéfalo, o que coloca o Brasil na quarta colocação do ranking da Organização Mundial da Saúde, sendo que cerca de 60% dos fetos com anencefalia morrem nos últimos meses da gestação. Das crianças anencéfalas que vivem até o fim da gravidez, 25% morrem durante o parto; 50% têm uma expectativa de vida de poucos minutos a um dia; 25% apresentam sinais vitais na primeira semana após o parto e 25% podem viver além de dez dias. Ainda, de 15% a 33% dos anencéfalos apresentam outras más-formações congênitas graves.[6]

Michelle Hamú da Silva, Marilei Francisca Rodrigues e Waldemar Naves do Amaral posicionam-se no sentido de que para a perspectiva científica, a maioria dos fetos anencéfalos morrem durante a gestação, ocorrendo alguns casos em que permanecem vivos até o nascimento. Quando isso ocorre, poderão apresentar respiração espontânea e algumas respostas reflexas, como a sucção, contudo, permanecendo inconscientes e necessitando de cuidados intensivos; logo, ainda que sobrevivam algumas horas, a grande parte entrará em óbito dentro de dois dias do nascimento, sendo que nenhum sobreviverá além de duas semanas.[7]

Anelise Tessaro efetua uma distinção entre feto mal formado e inviável, aduzindo que as situações fáticas a que se referem estes conceitos são essencialmente diversas. Segundo a autora, as malformações fetais, dependendo da gravidade, não provocam a morte do feto ao nascer. Ainda que estejam presentes anomalias congênitas, é possível que o feto malformado sobreviva, de sorte que, em alguns casos, existem tratamentos clínicos ou cirúrgicos que podem mitigar ou até curar os efeitos da malformação.[8] Entretanto, a malformação pode ser tão severa ou associada a outras anomalias, que torna o feto inviável, ou seja, com prognóstico de morte certa e irreversível. Para Tessaro, a anencefalia enquadra-se como um exemplo de malformação que impossibilita a vida extrauterina, contexto em que se verifica a inviabilidade do feto, já que a criança virá a falecer logo após o parto.

Atentando-se para as referências que já foram apresentadas, há possibilidade de se afirmar que o argumento utilizado pelo discurso jurídico acerca da incompatibilidade de vida extrauterina pode ser relativizado. Ainda que muito se afirme a certeza da morte, este é um fundamento que não se mostra unânime. E esta controvérsia, especialmente no Brasil, e no contexto da ADPF que envolveu a possibilidade de aborto dos fetos anencéfalos, ganhou um contorno ainda maior em função do chamado caso Marcela de Jesus.

A menina Marcela de Jesus nasceu em 20 de novembro de 2006, com 2,5 quilos e 47 centímetros, após nove meses de gestação, na cidade de Patrocínio Paulista, e foi diagnosticada como anencéfala por meio de exame de ultrassonografia realizada no quarto mês de gestação. Após o seu nascimento, Marcela apresentava reações típicas de recém-nascidos, tais como, choro, incômodo e estremecimento ao som do telefone. Além disso, era capaz de respirar sozinha, embora com o auxílio de um capacete de oxigênio colocado em volta de sua cabeça. A sua capacidade de respiração se deu em função do funcionamento do coração e dos demais órgãos internos, bem como ao tronco cerebral que se encontrava em plenas condições. Marcela viveu por um ano e oito meses, vindo a falecer em decorrência de uma pneumonia ocasionada pela aspiração de leite que havia vomitado.[9]

Esse caso foi também referido nas audiências públicas realizadas pelo Supremo Tribunal Federal ao longo do julgamento da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. O Doutor Heverton Neves Pettersen, que representou a Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, afirmou que o caso de Marcela de Jesus era uma falsa ideia de anencefalia, porque a menina apresentava região do cerebelo, tronco cerebral e um pedaço do lóbulo temporal que faz parte dos hemisférios cerebrais, o que inviabilizaria o diagnóstico de anencefalia. Para ele, haveria uma meroencefalia ou meroacrania.[10]

Valendo-se de todo o debate ocorrido, o Ministro Marco Aurélio, relator da ADPF nº. 54, optou por seguir o entendimento de que a anencefalia é uma anomalia incompatível com a vida extrauterina, pois o feto anencéfalo mostra-se gravemente deficiente no plano neurológico, faltando-lhe as funções que dependem do córtex e dos hemisférios cerebrais; logo, faltam não somente os fenômenos da vida psíquica, mas a sensibilidade, a mobilidade e a integração de quase todas as funções corpóreas, eis que o anencéfalo não desfruta de nenhuma função superior do sistema nervoso central. Assim, consignou o ministro em seu voto que a anencefalia configura, indubitavelmente, uma doença congênita leal, pois não há a possibilidade de desenvolvimento de massa encefálica em momento posterior, podendo-se afirmar esta conclusão de forma categórica.[11]

Verifica-se, assim, na fala do Ministro Marco Aurélio, que, para ele, o diagnóstico da anencefalia é a certeza de que inexiste presunção de vida extrauterina, letal, na totalidade dos casos. É por esse argumento que o relator considerou que o caso Marcela de Jesus apresentava um diagnóstico equivocado, pois não se tratava de anencefalia.

O Ministro Luiz Fux também votou pela procedência da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. E, da mesma forma, um de seus argumentos foi a incompatibilidade da vida extrauterina do feto anencéfalo. Para basear o seu voto, apresentou que são poucos os casos em que o infante anencéfalo sobrevive por um considerável período fora do útero materno. Segundo o Ministro, dados coletados pelo Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher indicaram que 94% dos recém nascidos com anencefalia faleceram nas primeiras vinte e quatro horas do parto.[12]

Ao basear-se nestes dados, o Ministro Fux também compreende a anencefalia como uma doença irreversível no atual estágio da humanidade, já que os estudos médicos sobre a doença a apontam como uma anomalia fatal para o feto, não havendo qualquer perspectiva de cura. Assim, conclui em três aspectos: o primeiro, é de que a expectativa de vida fora do útero é absolutamente efêmera; o segundo, de que o diagnóstico de anencefalia pode ser efetuado com um razoável índice de precisão, a partir das técnicas disponíveis aos profissionais da saúde; e, terceiro, que as perspectivas de cura dessa deficiência na formação do tubo neural são inexistentes nos dias atuais, por isso que o neonato anencéfalo tem uma expectativa de vida reduzida.

Há, dessa forma, uma similitude nos posicionamentos expressados pelos Ministros da Corte. No entanto, não se deve deixar de destacar que a matéria passou por controvérsia em determinados votos. Mas os argumentos utilizados são apresentados na mesma linha do debate até aqui já apresentado, centralizando-se na questão da vida, da sua incompatibilidade extrauterina.


Notas e Referências:

[1] A versão integral da petição inicial da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, de 2002 encontra-se em BARROSO, Luís Roberto. MARTINS, Ives Gandra. GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. Ribeirão Preto: Migalhas e Faculdades COC, 2009. p.69 et.seq.

[2] A versão integral da petição inicial da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, de 2002 encontra-se em BARROSO, Luís Roberto. MARTINS, Ives Gandra. GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. Ribeirão Preto: Migalhas e Faculdades COC, 2009. p.69 et.seq. É através da utilização de argumentos como este que se fundamenta o pedido de interrupção da gravidez como uma antecipação terapêutica do parto, argumento que será discutido oportunamente.

[3] BRASIL. Ministério da Saúde. Discurso do ministro da saúde, José Gomes Temporão, em audiência pública do STF sobre gestação de fetos com anencefalia. Brasília, 2009. Disponível em:http://www.portalsaude.gov.br/portal/arquivos/.../discurso_stf_anencefalia_040908.pdf. Acesso em: 15 de janeiro de 2016. O Ministério da Saúde adotou tal posição por considerar que, uma vez estabelecido que o feto com anencefalia não tem o córtex cerebral, por isso a analogia com a definição legal de morte encefálica,  trata-se de um feto potencialmente morto. Um recém-nascido com anencefalia que sobreviva ao parto é detentor de todas as proteções jurídicas cabíveis aos recém-nascidos no país. No entanto, por não possuir o córtex cerebral, é considerado um natimorto cerebral.

[4] Idem. Ibidem.

[5] Tendo em vista este auxílio que é referido pelo Ministro, é que ele sustenta o seu trabalho a partir da relação existente entre a defesa da saúde e a defesa da vida, associando a mãe, o bebê e a gestação, o que implica prover, como tarefa da saúde, ao binômio mãe-bebê todos os cuidados, abrigando-o com a oferta de políticas desenvolvidas por um Estado que atenda tanto o desenvolvimento saudável de um novo ser, quanto à oferta de novos dispositivo de apoio à mãe, quando, por infortúnio, o projeto de vida que abriga em seu ventre tem, como certeza, não o desenvolvimento saudável, mas a morte inexorável. Por estes motivos, e por considerar que a antecipação do parto por ananecefalia é autorizada em vários países do mundo, é que o Ministério adotou, em 2009, o posicionamento favorável ao procedimento, haja vista o conjunto de possibilidades ou impossibilidades físicas, emocionais e culturais que cada mulher possui para lidar com a situação.

[6] MARQUES, José Manuel. Anencefalia: interrupção da gravidez é uma liberdade de escolha da mulher? In: DELDUQUE, Maria Célia. (org.). Temas atuais de direito sanitário. Brasília: Ministério da Saúde e Fundação Oswaldo Cruz, 2009.p.105. O autor posiciona-se no sentido de que no caso da anencefalia sequer deveria precisar de autorização, pois se trata de um feto inviável que só sobrevive à custa do corpo da mulher. Ainda, entende que ao fazer o diagnóstico de gravidez de um feto anencéfalo, com indícios de que esta gravidez causará risco à saúde da mulher, o médico, após a decisão dela, deve observar o princípio da prevenção mesmo antes de os sintomas aparecerem ou ainda que os danos não sejam aparentemente graves, isso porque o princípio da prevenção pressupõe uma avaliação sobre um risco já conhecido, sua consequência e a ação para evitar seu aparecimento ou atenuar o dano, ou seja, há um nexo causal entre o fator de risco e o dano cientificamente estabelecido. Por tal posicionamento, discorre Marques que, cientificamente, são comprovados os danos causados à mulher pela gravidez de um feto com anencefalia, mas as incertezas causadas pela correlação de forças da sociedade de cunho ético, moral, religioso e outras que influenciam toda a atmosfera que envolve o caso, colocam em dúvida a inviabilidade de vida extrauterina do feto.

[7] SILVA, Michelle Hamú. RODRIGUES, Marilei Francisca S. AMARAL, Waldemar Naves do. Aspectos médicos e psicológicos de grávidas portadoras de feto anencefálico. In: Femina. v.39, n.10, 2011. p.494-498.

[8] TESSARO, Aborto seletivo. 2.ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2008. p.24.

[9] Conforme referências contidas em FREITAS, Patrícia Marques. Os fetos anencéfalos e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Cone editora, 2011. p.75. Segundo a autora, a polêmica em torno do caso de Marcela se deu em razão de exames realizados quando completou um ano de vida, em que se constatara uma merocrania e não anencefalia, verificando-se que a menina possuía rudimentos cerebrais, o que permitiria afirmar que há diferentes graus de anencefalia.

[10] SUPREMO TRIBUNAL DEFERAL. Audiência pública na Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAdpf54. Acesso em: 15 de janeiro de 2016.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Arguente: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Relator Ministro Marco Aurélio. Brasília/DF, 13 de abril de 2012. Disponível em: http://www.stf.jus.br . Acesso em: 15 de janeiro de 2016.

[12] Idem. Ibidem.


Guilherme WunschGuilherme Wunsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) fui assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, sou advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS; professor da UNIRITTER e professor convidado dos cursos de especialização da FADERGS, FACOS, FACENSA E IDC.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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