Inclusão de motoristas de carga na cota de aprendizagem: uma solução contraditória e dissociada da realidade

03/12/2019

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

O direito à profissionalização, por meio de contratos de trabalho especiais, está garantido na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do adolescente – ECA (Lei 8.069 de 1990), na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT e no Estatuto da Juventude (Lei n.º 12.852, de 05 de agosto de 2013).

Preceitua a artigo 62 da Lei n.º 8.069 de 1990 (Estatuto da Criança e do adolescente – ECA), que aprendizagem é a formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor.

Já o artigo 428 da CLT conceitua “contrato de aprendizagem” como sendo o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação.

O Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, instituído pela Portaria MEC n.º 870/2008, instrumento que disciplina a oferta de cursos de educação profissional técnica de nível médio, orientando as instituições de estudantes e a sociedade como um todo, estabelece um referencial comum às denominações dos cursos técnicos de nível médio.

Pois bem, o artigo 429 da CLT (redação dada pela Lei nº 10.097, de 2000), estabelece que:

Os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem número de aprendizes equivalente a cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional.       

A Instrução Normativa da Secretaria de Inspeção do Trabalho - SIT nº 97, de 30.07.2012, que estabeleceu diretrizes e disciplinou a fiscalização da aprendizagem prevista no Capítulo IV do Título III da CLT, em conformidade com o disposto no Decreto nº 5.598, de 1º de dezembro de 2005 e com a Portaria nº 723, de 23 de abril de 2012, prevê no § 3º do artigo 2º:

Art. 2º

______________________

§3º São incluídas na base de cálculo do número de aprendizes a serem contratados o total de trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional, independentemente de serem proibidas para menores de dezoito anos, excluindo-se:

I - as funções que, em virtude de lei, exijam formação profissional de nível técnico ou superior;

(grifamos e negritamos)

Então, a lógica deveria ser a de que não se somassem na base de cálculo aquelas “funções” (termo utilizado pelas normas) em que há requisito técnico de formação alheio às condições técnico-pedagógicas dos estabelecimentos de formação de aprendizes e também das empresas (donde estarão os cidadãos como aprendizes). Ou seja, não temos, por exemplo, como ter um “aprendiz em engenharia” ou “aprendizes em direito”, pois para ser Engenheiro ou Advogado o cidadão teria que ter formação superior e, por questões estatutárias de classe, inscrição e preenchimento dos requisitos técnicos para obtenção das credenciais/registros do CREA e da carteira da OAB. Também não temos como “formar gerentes e diretores” (artigo 2º, § 3º, II). Por isso não entrar na cota.

Deveria ser assim também para os motoristas (qualquer um), pois os mesmos dependem de registro na CNH - Carteira Nacional de Habilitação, que é o documento oficial que atesta a aptidão de um cidadão para conduzir veículos automotores terrestres.

Sucede que em recente decisão, a Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho julgou improcedente a ação declaratória movida por uma empresa de transportes, que pleiteava que as vagas ocupadas por motoristas de carga não integrassem a base de cálculo para a contratação de aprendizes.

Para a Segunda Turma (que seguiu a jurisprudência do TST), a função de motorista demanda formação profissional e deve ser incluída na fixação da cota.

Vejamos a R. Ementa do referido Acórdão:

RECURSOS DE REVISTA DA UNIÃO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO. LEI 13.467/2017. TRANSCENDÊNCIA RECONHECIDA. MATÉRIA COMUM. ANÁLISE CONJUNTA. CONTRATO DE APRENDIZAGEM. MOTORISTAS DE CARGAS. INCIDÊNCIA NA BASE DE CÁLCULO PARA EFEITO DE CONTRATAÇÃO DE APRENDIZES. A jurisprudência desta Corte é no sentido de considerar que a função de motorista demanda formação profissional e deve ser incluída na base de cálculo para a fixação da cota de aprendizes a serem contratados por estabelecimento, tendo em vista a inexistência de impedimento legal. Recursos de revista conhecidos e providos. (TST-RR-1000360-13.2018.5.02.0031 - Recorrentes e Recorridos União (Advocacia-Geral da União - AGU) e Ministério Público do Trabalho da 2ª Região e Recorrida Magile Transportes Ltda. AC 2ª Turma – Pub. 18/10/2019 - Ministra Relatora Delaíde Miranda Arantes).

Para a D. Ministra Relatora, a jurisprudência do TST é “no sentido de considerar que a função de motorista demanda formação profissional e deve ser incluída na base de cálculo para a fixação da cota de aprendizes a serem contratados por estabelecimento, tendo em vista a inexistência de impedimento legal, sendo que deve ser observada a limitação da permissão para contratação de aprendizes com idade de 21 a 24 anos, para o cargo de motorista”.

Entendemos, “data venia maxima”, de forma diversa da posição do Colendo TST e dos Órgãos de Fiscalização, pois se mostram equivocadas e dissociadas da realidade e também carecedoras de amparo legal, eis que (i) não levam em conta as peculiaridades das atividades de motorista; e (ii) não consideram que a empresa não tem capacidade técnica e legal para “formar motoristas” (sim, pois se estão inclusos da base de cálculo, há que se considerá-los como pretensos aprendizes).

A incumbência legal de formação e treinamento “prático” cabe aos CFC-Centro de Formação de Condutores (nome dado às antigas autoescolas), conforme Resolução CONTRAN nº 33, e mantida no art. 156 do atual Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.5031997), e nisso as empresas não podem e nem devem se meter. Aliás, nem estrutura e condições técnicas há nas empresas para eventualmente capacitar motoristas aprendizes.

São assim credenciados apenas os órgãos/escolas designados pelos departamentos de trânsito, que têm por objetivo a capacitação do cidadão para a condução de veículo automotor, mediante a aplicação de aulas teóricas e práticas, para a obtenção da CNH (Carteira Nacional de Habilitação). Não caberá às empresas, em nenhum momento, um papel complementar ou coadjuvante nessa formação, à exemplo do que ocorre com os já exemplificados casos dos Engenheiros e Advogados.

No caso do julgamento em tela, ainda observou o TST e os próprios órgãos de fiscalização que as funções de Motorista de Carga só poderiam ser exercidas por maiores de 21 anos. Lembramos que há ainda outro requisito preliminar imprescindível: ser motorista profissional habilitado nas categorias D ou E.

Concluindo, podemos afirmar que a presente situação é mais uma daquelas em que a norma posta colide com a realidade e sua interpretação se mostra contraditória, sendo imperativo a observância do princípio da razoabilidade, possibilitando assim que as leis, normas e seus efeitos, sejam aplicados com base no bom senso, de modo adequado e proporcional a cada situação jurídica.

 

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