Incertezas e crise de identidade no processo penal atual e o necessário respeito às regras do jogo

04/06/2016

Por Fábio Henrique Fernandez de Campos - 04/06/2016

1. Introdução

A persecução penal trabalha com um fato passado, tenta-se reconstruir e tornar público um ponto da história de um comportamento, seja ele isolado ou de um grupo de indivíduos, em determinado momento, comportamento esse tipificado em norma como sendo tão-grave que merecedor de uma sanção prevista, em abstrato e em regra, com uma pena.

Mas qual o grau de certeza nos é dado, de que a reconstrução desse fato passado, realizado pela persecução penal, foi condizente com aquilo que realmente se passou? O Processo Penal, enquanto instrumento de garantias, como caminho único para condenar alguém ao cumprimento de uma pena, pode ser de forma cartesiana considerada uma fonte de aplicação da justiça? Os manuais em sua grande maioria amparam essa presunção num pilar de bases frágeis, construído sobre os conceitos da chamada “verdade real”.

Mas demonstraremos que essa tabulada verdade real nada mais representa que uma presunção relativa e, portanto fundamentada em conceitos meramente probabilísticos, vez que dela dependem inúmeros condicionantes de um “desenrolar processual”, que “desembocará” ou não numa condenação, a depender de  fatores que se relacionam  com providências tomadas ou não, a fatos não previstos, intercorrências nem sempre ligadas aos fatos em si e, até mesmo, posições subjetivas dos que participam do chamado “jogo processual”, bem como suas ideologias, paixões e humor (fixo ou volátil), no momento da decisão.

Em relação ao momento da decisão quanto à aplicação das normas processuais e materiais, ideal seria que cada norma guardasse em si a garantia da aplicação nos limites de seu “espaço interpretativo”.

O fenômeno da “super interpretação” dá margem a decisionismos que tornam voláteis a aplicação do Direito, trazendo em si vários “direitos” dentro de um mesmo ordenamento, fazendo com que cada juiz seja detentor de sua “própria legislação” e assim, fiquemos a mercê da “bondade dos bons”, nos dizeres do Professor Aury Lopes Jr.[3].

Essa é apenas mais uma vertente do problema que requer ao “jogador” processual ciência do terreno em que andará a sua causa, a de que há variadas “legislações” a depender de cada julgador.

Mas bem antes, ainda na fase da chamada “investigação preliminar”, o jogo processual já se inicia e ainda lá, no momento em que surge, na investigação criminal, uma tese formada para o “real” decorrer do fato criminoso, na reconstrução do fato histórico a que nos referimos no início deste artigo, começam essas variantes a fazer efeito.

Exemplo, pensemos no caso em que um aparente suicídio possa abarcar detalhes que, uma vez estudados por uma equipe experiente, traga em seus teores evidências de um feminicídio.

A depender da competência e experiência da equipe de investigação, pode-se perpetuar um olhar errôneo (suicídio) para aquilo que se tratava de um homicídio qualificado, num local que traduzia angústia e dor de uma vítima que jamais teria ali dado fim à própria vida. Isso certamente refletiria no processo com um arquivamento do fato probando. Jamais ali, diante de toda a sobrecarga existente na seara criminal, se reconstruirá a “verdade real” deste homicídio ora sacramentado como suicídio, nos termos da tradicional “verdade real” que estudamos nos manuais.

Mas em caso contrário, num contexto de uma polícia judiciária estruturada, com profissionais experientes e interessados, certamente esses detalhes seriam trazidos a tona e a “tese” de suicídio então derrubada para se provar que ali houve de fato um homicídio e, essa “tese” sendo aprovada, notadamente um júri, a depender da concretude das provas trazidas aos autos, ou, no verdadeiro jogo processual, a depender da repercussão do caso, da mídia, da competência do promotor durante sua exposição da tese em plenário, do caráter ideológico dos jurados constantes do conselho de sentença, enfim, teremos uma bem provável condenação.

Logo, diante do que ora expusemos de forma exaustiva, já se pode compreender que a mera visão estática de um processo penal, como aquele que estudamos friamente nos manuais, recheados de ilusões de que a verdade real se concretiza com a sentença penal condenatória e seu “juízo de certeza” é intocável, cai totalmente por terra diante da dinâmica ora demonstrada no exemplo acima estudado.

Em seu “Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos”, Alexandre Moraes da Rosa[1] afirma que “A atitude investigatória da autoridade condutora das investigações poderá ser fundamental, ou não, ao êxito de uma condenação”.

Nesse mesmo guia (2016, pág. 49), ROSA expõe que:

“Se o processo é uma guerra autorizada pelo Estado em que o mais forte não necessariamente ganha, mesmo assim, os fundamentos da Teoria da Guerra podem ser invocados para buscar entender a lógica do processo penal desde que vinculados à teoria dos jogos”

Na fase do jogo processual, nos ensina[1] que:

“(...)Enquanto a acusação procura conduzir a construção da coerência narrativa, a defesa aponta a incoerência e busca algo de interrogante para instauração da dúvida. O leitor de uma decisão judicial é convidado a acompanhar a continuidade apresentada pelas composições das sequências narrativas, capazes de indicar uma articulação interna da realidade descrita”. A isso, chama de “bricolagem de significantes”.

Importante sedimentar aqui que não defendemos que o Processo Penal seja um cenário sem regras. Pelo contrário. O que se pretende demonstrar é que a “previsibilidade” cartesiana e estática de uma demanda processual penal é ilusória. O resultado dessa demanda está vinculada a fatores incertos, representado pelas características dos próprios jogadores processuais ou até mesmo pré-processuais, sejam eles investigadores, partes, julgador, mídia, momento histórico, etc.

O que se estabelece como critério a ser definido e respeitado são as “regras do jogo”. Essas regras já postas, sim, deveriam estar estabelecidas e blindadas à imprevisibilidade. A Constituição, as normas processuais penais em seus “espaços hermenêuticos” bem delimitados, traduzem essas regras.

O problema maior se sucede quando essas regras do jogo passam a ser relativizadas em nome de um “bem maior” a ser alcançado. E num jogo, quando se desrespeitam as regras por conveniência de um “bem maior”, temos um cenário de idêntico à ausência de regras.

Quando se trilham caminhos da chamada “super interpretação”, a ponto de se contrariar o espaço hermenêutico da norma constitucional, ou de legislação inferior sobretudo quando referentes a garantias e liberdades individuais, temos um cenário compatível com o fascismo hitleriano.

Mas até mesmo esses fenômenos de “movimento da ordem e da paz” ou de “revolução por minuto”, promovidos com a rapidez estonteante das redes sociais, das proliferações de ideologias pelos sites de notícias, pela rapidez superficial dos pensamentos jurídicos, por vezes promovidos pelo furor midiático de um “populismo penal”, faz parte da imprevisibilidade e atual fator de influência atual do jogo a ser jogado, interferindo em suas próprias regras.

As sobreditas normas pré-instituídas (regras do jogo) não garantem que a inexistente verdade real dos fatos prevaleça muito menos que as regras sejam mantidas durante a partida.

A chamada segurança jurídica é um mito. Basta analisarmos quantos fatos idênticos são julgados de forma diferente pelo mesmo Poder Judiciário e, antes, são interpretadas pelos atores da persecução penal, de forma também diferente, a depender do cenário posto em cada caso concreto.

Nesse caminho e, já em outro ensinamento dentro do mesmo artigo acima citado, Alexandre Moraes da Rosa[2] explana que: 

“A violência, a corrupção, os agitos sociais, assim, modificam os contextos em que as decisões são proferidas e as exigências de coerência, dado, por exemplo, a culpa pressuposta e o medo coletivo. E importa muito no momento de estabelecer o sentido dos fatos.”

Evidente- já traduzindo tudo o que foi dito para o cenário atual- que  em época de “operação lava jato”, esse agito social presenciado a cada escândalo de corrupção envolvendo o núcleo central de poder republicano nos demonstra que estamos num momento de forte “crise de identidade” ou de reafirmação de “limites” do Processo Penal como instrumento de garantias.

Não muito distante desse contexto, em 17.02.2016, tivemos decisão do pleno do Supremo Tribunal Federal inovando ser plenamente LÍCITA a possibilidade da chamada EXECUÇÃO PROVISÓRIA de uma decisão condenatória em segunda instância. Mas a Constituição regra, sabemos desde os primórdios do bacharelado de direito, que o réu não será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Em que pese a aparente retomada na melhora da “sensação de impunidade” trazida com essa execução provisória, ante os reinantes e demorados recursos ordinários e extraordinários em tramitação nos tribunais superiores, não tivemos qualquer alteração, nem se poderia por ser cláusula pétrea, no texto constitucional. Não se modificou nada sobre trâmite e admissibilidade desses recursos nos tribunais superiores. E ninguém duvida qual o limite interpretativo do termo “trânsito em julgado”.

Mas fato é que o STF, num caminho mais curto, ignorou o “espaço interpretativo” da norma constitucional e dessa decisão efetivaram-se inúmeros mandados de prisões pelo País afora, tendo como fundamento a chamada “execução provisória”, prisões essas não sob requisitos da cautelaridade e sua extrema ratio da ultima ratio, mas fazendo tábula rasa do que antes se interpretava como princípio da presunção de inocência, sob fundamento social (jamais jurídico), de uma busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal”, nos dizeres expostos no HC126.292/SP.

E não se mostre plausíveis argumentos de que em países aqui e acolá onde tal sistema prevalece, quando esse direito comparado em nada adiante se em confronto com a norma constitucional originária que temos como parâmetro, quando mais essa mudança tenha sido fruto de um leading case de onde se “gravita” o entendimento atual do Supremo Tribunal Federal.

Quanto de nosso momento atual de “agito social”, de velocidades gigantescas de trânsito de informações através das redes sociais, de uma diária desconfiança sobre a legitimação do Direito e das instituições de persecução penal como meios eficientes de pacificação social, contribuíram para essa mudança?

Por vezes, a própria relativização da aplicação de garantias constitucionais, em variantes que jogam pra cá ou pra lá o rumo dos casos concretos em análise nesse processo, traduzem bem a ideia da crise de identidade vivida atualmente pelo nosso Direito Processual Penal.

Mas antes e de igual forma, mostramos quanto os reflexos característicos da teoria dos jogos estão aptos a contestar verdade real como forma de garantia de resultado processual “líquido e certo”.

Aury Lopes Jr. em seu Direito Processual Penal[3] ao tratar da “luta pelas regras do jogo”, na teoria da relação jurídica de Goldschimidt, nos ensina que:

“Tanto no jogo, como na guerra, importam a estratégia e o bom manuseio das armas disponíveis. Mas acima de tudo, são atividades de alto risco, envoltas em nuvens de incerteza. Não há como prever com segurança quem sairá vitorioso. Assim deve ser visto o processo, uma situação jurídica dinâmica inserida na lógica do risco e do giuoco. Reina a mais absoluta incerteza até o final. A luta passa a ser pelo respeito às regras do devido processo e, obviamente, antes disso, por regras que realmente estejam conforme os valores constitucionais”.

Portanto, num cenário atual de crise de identidade, importante ressaltar a necessária e devida luta dos juristas, sempre voltada pelo respeito às devidas regras do jogo. A incerteza, sim, de fato reinará quanto ao resultado futuro de um embate processual.  A tese levantada e criada desde a instrução preliminar, seja ela de passos desenvolvidos pela Polícia Judiciária, Ministério Público e Judiciário, isoladamente ou em cenários atuais de “força-tarefa”, delimitará a hipótese sobre o fato passado que se buscará provar ter ocorrido (crime), num cenário por vezes de já anterior envolvimento subjetivo do julgador na análise das cautelares (prisões, buscas e apreensões, interceptações), que fazem dessa tese preliminar (crimes supostamente havidos) um ponto a ser desenvolvido no decorrer processual.

Mas esse trâmite processual respeitado em observância estrita às regras do jogo é o que faz do processo penal um instrumento de garantias. Não meramente de aplicação de um Direito Penal em abstrato e essa consciência dos juristas operadores do Processo Penal é que retratará o real grau de democracia vivenciado por uma sociedade, tanto quanto se mostra verdadeiro que o Processo Penal é um reflexo próprio do grau democrático ou autoritário de uma nação.


Notas e Referências:

[1] ROSA, Alexandre de Moraes. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 3 ed. Revista, atualizada e ampliada- Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

[2] ROSA, Alexandre de Moraes. Decisão Penal é espaço para manipular fragmentos da verdade?. Conjur. Brasília-DF. Seção Diário de Classe. Disponível em [http://www.conjur.com.br/2015-nov-28/diario-classe-decisao-penal-espaco-manipular-fragmentos- verdade], acesso em 18.01.2016.

[3] LOPES Jr, Aury. Direito Processual Penal. 10 Ed.São Paulo:.Saraiva, 2013 p. 103.

Decisão do HC 126.292/SP, disponível em [http://s.conjur.com.br/dl/stf-decide-reu-preso-depois-decisao.pdf] acesso em 27/03/2016.


Fábio Henrique Fernandez de Campos

. Fábio Henrique Fernandez de Campos é Graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato grosso (UFMT). Pós-Graduado em Direito Criminal pela Universidade da Amazônia (Unama). Delegado de Polícia Civil do Estado de Rondônia. Professor de Direito Processual Penal da Rede Gonzaga de Ensino Superior Reges-Avec desde 2011. .


Imagem Ilustrativa do Post: A Game of Chess? // Foto de: Christine Kongsvik // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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