In dubio pro Hell na súmula n. 522 do STJ

01/09/2015

Por Alexandre Morais da Rosa e Salah Khaled Jr - 01/09/2015

Lançamos esta semana a segunda edição do livro “In dubio pro Hell – I”, justamente denunciando a manipulação atual do princípio do in dubio pro reo pela criminalização generalizada e desprovida de sustentação teórica. E a Súmula n. 522 do STJ (“A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa.”) é o sintoma da ausência e/ou contraditória base teórica de boa parte dos julgamentos operados.

Isto porque o preceito primário do art. 307 do CP (Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, se o fato não constitui elemento de crime mais grave.) precisa ser lido a partir da Constituição e do controle de convencionalidade. Embora haja previsão legal – taxatividade – não configura a noção de injusto penal (Juarez Tavares) porque o sistema jurídico autoriza tal proceder, como veremos:

  • Desde João Sem Terra o sujeito não é obrigado a produzir prova contra sim mesmo, indicativo repetido pela normativa internacional e pela Constituição de 1988;
  • Logo, preso por uma conduta criminal cabe a aplicação do art. 259 (“A impossibilidade de identificação do acusado com o seu verdadeiro nome ou outros qualificativos não retardará a ação penal, quando certa a identidade física. A qualquer tempo, no curso do processo, do julgamento ou da execução da sentença, se for descoberta a sua qualificação, far-se-á a retificação, por termo, nos autos, sem prejuízo da validade dos atos precedentes.").
  • Será obrigatória a realização de identificação criminal, nos termos da Lei n. 12.037/09, não sendo faculdade da autoridade policial.
  • Por ausência de identificação poderá o acusado permanecer preso, conforme dispõe o art. 313, parágrafo único, do CPP.

Assim é que se o acusado não possuir documento de identificação (Lei n. 12.037.09, art. 2º) e no exercício do direito de autodefesa, próprio de quem deseja manter a liberdade, poderá indicar a identidade que desejar, sendo que o Estado criou os mecanismos aptos para manutenção de sua custódia cautelar, bem assim de identificação respectiva.

A jurisprudência era cambaleante, mas operava no sentido de compreender a importância do status libertatis. Vale indicar que: “Falsa identidade. Dolo específico. Inexistência. Delito incompatível com a postura de autodefesa. A vantagem pretendida pelo agente, como caracterizadora do crime, é um plus que se acrescenta, ou se pretende acrescentar, ao patrimônio deste ou de outrem, e não a simples manutenção do status libertatis.” (TJRS. Apelação Criminal n. 70000014316. Rel. Claudio Balbino Maciel). E ainda: “O agente que, no momento de sua prisão em flagrante, se atribui outro nome não comete o crime de falsa identidade, previsto no art. 307 do CP. Tal gesto deve ser interpretado como autodefesa e não como prática delitiva.” (RT 797/648). O Tribunal de Justiça de Santa Catarina também já decidiu pela atipicidade da conduta: “PEDIDO DE CONDENAÇÃO DO APELADO PELO CRIME DE FALSA IDENTIDADE. INACOLHIMENTO. RÉU QUE ATRIBUI PARA SI NOME DE SEU IRMÃO PERANTE À AUTORIDADE POLICIAL, COM O OBJETIVO DE ESCONDER SEUS ANTECEDENTES CRIMINAIS. ATIPICIDADE DA CONDUTA. HIPÓTESE DE AUTODEFESA.” (Apelação Criminal n. 2009.058743-7, da Capital. Relatora: Desa. Marli Mosimann Vargas. Julgado em 02 de dezembro de 2009). Também: “[...] Quando o flagrado na fase policial atribui a si mesmo falsa identidade para esconder antecedentes penais, sem maiores repercussões administrativas ou processuais, essa conduta não configura o crime previsto no artigo 307 do Código Penal, por caracterizar hipótese de autodefesa, consagrada pela Constituição Federal. Recentes precedentes do STJ. [...] Recurso conhecido e parcialmente provido. (Apelação Criminal n. 2008.076665-2, de Chapecó. Relator Desembargador Carlos Alberto Civinski. Julgado em 08 de agosto de 2009).

Com efeito, é o Estado quem deve promover os elementos para identificação, ou seja, não havendo documento, proceder na forma prevista na Lei n. 12.037/09. Assim, se o Estado não promove os meios necessários para a respectiva identificação do conduzido, na forma da lei, eventual indicação de nome inverídico, sem apresentação de documento falso, é conduta atípica, diante do que Zaffaroni[1] denomina de "tipicidade conglobante", a saber, quando o próprio ordenamento apresenta a resposta para a questão, mediante uma autorização: “As normas jurídicas não 'vivem' isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras, e não podem ignorar-se mutuamente. Uma ordem normativa não é um caos de normas proibitivas amontoadas em grandes quantidades, não é um depósito de proibições arbitrárias, mas uma ordem de proibições, uma ordem de normas, um conjunto de normas que guardam entre si uma certa ordem, que lhes vem dada por seu sentido geral: seu objetivo final, que é evitar a guerra civil (a guerra de todos contra todos, bellum omnium contra omnes) (...) Isto nos indica que o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa. A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, posto que pode excluir do âmbito típico aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas.

Em resumo, não tendo o conduzido apresentado documento, conforme é o caso, procede-se na forma da Lei n. 12.037/09. O Estado não faz o que lhe compete e o conduzido pode, por ser seu direito, dizer o que bem entender no limite do exercício do seu direito de defesa. O fato de o Estado estar, eventualmente, desaparelhado, não pode prejudicar o direito individual de não se autoincriminar. Normatividade para respectiva identificação existe, tanto assim que a conduta adequada do Estado, desde o início, tornaria a conduta impossível, pois o meio seria manifestamente inidôneo.

Assim é que a Súmula n. 522 do Superior Tribunal de Justiça criminaliza a autodefesa, desconsidera a comprovação do injusto penal, pois se satisfaz com a mera indicação, mesmo que sem repercussões no processo ou na imputação penal. Como não possui efeito vinculante, embora respeitando o entendimento do referido Tribunal Superior, mantemos o posicionamento de que não configura o injusto penal a conduta do acusado que fornece nome falso em evidente exercício de autodefesa. Do contrário, é mais uma das faces do in dubio pro hell.


 

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Notas e Referências: [1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte special. São Paulo: RT, 2002, p. 458-459.


SALAH NOVA .

Salah Hassan Khaled Junior é Doutor e Mestre em Ciências Criminais, Mestre em História e Especialista em História do Brasil. Atualmente é Professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande, Professor permanente do PPG em Direito e Justiça Social          

                                                                                           

Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui                                                           

                                                                                                                                               


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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