Impunidade: o desserviço das dicotomias rasas de front – Por Guilherme Moreira Pires e Fernando Henrique Cardoso

30/06/2015

Não constitui surpresa alguma a carência de potência libertária predominantemente vislumbrada nos atuais referenciais, imaginários e estruturas de pensamento efetivamente introduzidos na disputa política acerca da questão criminal; ou melhor, não constitui surpresa esse não-vislumbre.

Isso dito, me disponho a uma rápida intervenção acerca de alguns dos inúmeros pontos problemáticos que orbitam a palavra "impunidade", nos discursos ditos de "esquerda" ou  de "direita", dos que se dizem "fora" disso, e até "acima" disso, sem entrar no mérito (e pretensão) de buscar etiquetar, reclassificar ou mesmo apontar qual a melhor leitura desses rótulos nesse breve espaço.

Sem delongas, não se contesta o conteúdo rasteiro (bem como as premissas furadas) do imaginário punitivo, da cultura repressiva, das pessoas imersas nessa atmosfera de estupor que rotineiramente bradam (e babam!) acerca da tal "impunidade", clamando por mais punição.

Incumbo-me aqui não de desenvolver isso (o que já fiz em outros espaços exaustivamente), mas de relembrar como os "discursos críticos" que "combatem" tal aberração não são muito melhores, inclusive em seus efeitos.

Almejando se opor ao "mais punição", à punição como referencial, adotam o caminho mais fácil, o que exige menos esforço intelectual na estratégia de ação de refutação da estrutura lógica: negação da impunidade, sob o desígnio de repelir o furor punitivo.

Estratégia de ação retórica milenar de front, característica da disputa política, própria da afobação atrelada ao poder, mesmo das tentativas de contenção.

Muitos (in)felizmente ainda destacam que a tal "impunidade" só existe em algumas camadas mais blindadas, em alguns segmentos imunizados, menos vulneráveis e suscetíveis ao poder punitivo, energizando um imaginário punitivo interessado em balancear a equação da seletividade, em beber o sangue dos poderosos, em democratizar a captura, legitimando toda sorte de danos, dores e sofrimentos que recairão, adivinhem, sobre os mais vulneráveis (sic), os alvejados típicos do sistema penal.

Cada VIP enjaulado concretamente confere ao sistema penal carta branca para a tortura e o massacre dos mais susceptíveis a serem engolidos pelo poder punitivo; renova crenças e energiza mecânicas de funcionamento e operacionalidades  brutalmente destrutivas.

Comemorar o encarceramento de VIPs  também é comemorar o extermínio da juventude pobre e negra. A expansão do sistema penal. Reformismos e reciclagens de quem ainda não entendeu os funcionamentos reais, bem como a adaptação e o amoldar sistêmico perante tudo isso.

Daí que pura e simplesmente gritar para o alto "seletividade, seletividade, seletividade", opera como um câncer. Como uma desgraça, um desserviço.  A percepção da "seletividade" é uma parte ínfima do todo.

Se for para só entender um fragmento e permanecer incitando ódio acerca do encarceramento dos "poderosos", então é melhor nem entender nada.

 Sejamos honestos. Embora quantitativamente tenhamos um número assustador de encarcerados no Brasil, a "impunidade" existe, e evidentemente que é a regra em todos os segmentos e camadas.

Caso não fosse, restaríamos todos encarcerados.

A sociedade sem penas já existe. Estamos nela.

A "impunidade" que tanto criticamos, seja total ou em espectros delimitados, é o que me permite escrever essa breve nota, e o que te permite lê-la.

Os abolicionismos estão em toda parte, e adivinhem, quanto menor a oxigenação deles, maiores os massacres, as violências, bem como a amplificação de problemas, conflitos, barbáries.

Repetir que "abolicionismos desencadearão uma guerra" ou que "todo mundo vai se matar" é como colar um adesivo de analfabeto político na testa.  

Os efeitos desta confusão, ao tentar desmascarar o caráter racista e classista do sistema penal, muitas vezes reproduz e produz – ainda que capturado – um raciocínio que o analisa como passível de uma falha, de um pertencimento a uma classe ou a uma raça, onde o que se deve fazer é combater esta hegemonia para a então democratização e bom uso do aparato penal; afinal de contas, corrupção tem de ser combatida, um assassino não pode viver em sociedade e estupro até no presídio é punido.

Tal conclusão distante de um pensamento abolicionista, libertário, anti-carcerário é resultado de, também, uma má apropriação da constatação da seletividade do sistema penal e esta, por sua vez, de uma visão que não leva em conta como opera o sistema, senão sua contextualização em uma sociedade capitalista-genocida.

Desta feita, poderíamos situar que a confusão vem de não separar a seletividade-método do sistema penal da seletividade-social na qual ele está aplicado. Perceber desta maneira é aprender um pouco mais sobre a realidade que o contextualiza.

O sistema penal é, prosseguindo, intrinsecamente seletivo. Por dois motivos: primeiro, porque é impossível (ainda) que todo ato que transgrida uma norma seja filtrado, e também é verdade que se além de filtrado, os tentáculos pútridos do sistema penal alcançassem a todos, amanhã[1]1 não haveria mais república. Afinal de contas, somos muito livres, revolucionários, para aceitar que todos sofram essa dor infértil – em nós não! Aí é ditadura!

Segundo, porque o sistema sequer superou a permanência funcional da lógica do exemplo[2]2, da punição servir como manifestação de poder, como reafirmação de quem, afinal, tem a força. Entender a simbologia dos suplícios deve ser além de reconhecer a origem da jocosa prevenção-geral, ou de apontar a história da máquina punitiva – mas sim de entender seu funcionamento, ou seja, de que a seletividade nada mais é do que característica do sistema penal. Não se acusa o sistema penal de ser seletivo – porque ele o é. Opera desta maneira.

Se descrevemos que o sistema penal funciona assim, a operacionalidade de suas ações se dará onde há mais probabilidade de alcance – se nos contextualizamos em uma sociedade capitalista, classista, a probabilidade de um empreiteiro milionário estar preso é grande na medida em que há conflitividade nesta camada do capital, apontando desfuncionalidades no que antes a formava.

Quando falamos que já estamos na sociedade sem penas, apenas os asseguramos que não há necessidade de pesadelos no sentido de se imaginar vivendo em uma tal sociedade abolicionista onde haveria a anarquia punitiva.

Ainda sobre o sistema penal, deixando de lado sua seletividade funcional, é necessário ressaltar outra característica deste mal social, que se encontra em um de seus fins: o controle. Se a finalidade do sistema penal é o controle, também é verdade que este é outro ponto que deve ser levado em conta dentro de uma crítica abolicionista, libertária, anti-carcerária; ao se lutar contra o controle, estabelece-se um refinamento: o abolicionismo não é uma alternativa ao sistema penal; mas sim aboli-lo, e com isso abrir mão também da psicose do controle, e seus tão caros efeitos na modalidade penal.

Perceber o abolicionismo como um corte no fio da câmera que vigia a todos, que controla, é perceber a farsa que há em todos os discursos oficiais de organizações internacionais de direitos humanos, na miríade de tendências entre o penalista-progressista e o abolicionista-aprisionado, em todas as tentativas – que se renovam ao ponto de criminalizações abolicionistas – de dirigência do sistema penal e dos bem intencionados humanistas do cárcere.

Enquanto essa empreitada de banhar de ouro uma jaula é feita, muitas vezes aliviando momentaneamente as dores ilegais do cárcere, discursos retrógrados e grotescos pedem mais punição; não mais controle, ou obediência a leis e ao estado, mas sim um banho de sangue cada vez maior – na recente história que tem o sistema penal, não foi o discurso sanguinário dos suplícios públicos que guiou o refinamento de seu funcionamento, senão os iluminados e suas punições humanas e garantidas em leis previamente estabelecidas.

O sistema penal é um meio de se exercer controle, e problematizá-lo sem levar isto em conta é aperfeiçoá-lo; não se trata de deixar intacto o sistema penal, achando que o tempo dará conta dele ou que algum fenômeno o fará – mas sim de que essa consideração é urgente no que muitos hoje tem chamado de tática ao sair reformando e buscando respostas para seu funcionamento.

Ainda sobre a falsa dicotomia humanos vs. sanguinários, não houve o fim do controle quando se deram fim aos suplícios; mas sim uma alternativa ao sistema penal então vigente – alternaram a tortura em praça pública por prisões, mas não necessariamente para atender aos clamores civilizados, mas sim para o aperfeiçoamento da sua funcionalidade e o atendimento das complexas demandas da formação da sociedade capitalista.

As unidades prisionais sumirão; mas isso não basta. O fim das prisões que muitos bradam pode significar o aperfeiçoamento máximo de sua política – mas adivinhem só? Ainda estaremos todos presos.


Notas e Referências:

[1] E não com a prisão de um empreiteiro milionário, fantoche de mais uma manifestação da seletividade do mais fraco na disputa do grande capital.

[2] Basta ver o casadinho-penalista – sempre há uma nova teoria, e uma nova teoria crítica apontando as permanências da lógica que faz o homem servir ao bom funcionamento de um sistema..


Imagem Ilustrativa do Post: Vincent van Gogh – Prisoners Exercising // Foto de: The Yorck Project: 10.000 Meisterwerke der Malerei. // Sem alterações

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