Por Rogério Zuel Gomes - 27/02/2015
Frequentemente nos deparamos com mensagens publicitárias (“propagandas”) ilustradas por fotografias em encartes promocionais de venda. A publicidade se transformou na mola mestra do consumo, apta a instigar o denominado “público alvo” a consumir desmedidamente e contribuir de forma significativa à desconstrução ou, pelo menos, dificultar a construção de uma identidade por parte do consumidor, que perambula feito um zumbi, consumindo e descartando, insatisfeito e ávido por alcançar aquilo que nem sempre lhe é necessário,[1] completamente alheio às consequências e riscos[2] decorrentes de seus atos de consumo. Em dias atuais, marcados pelo efêmero, por aquilo que é feito para pouco durar, campeia a necessidade desenfreada de consumir, abastecida por mecanismos publicitários de toda sorte. O conceito de “identidade” do ser humano como algo consistente, sob o ponto de vista existencial, se esvaiu na sociedade de consumo. Assim é porque, segundo Bauman, não se está mais em busca de algo que tenha um significado, ou contribua com esse significado, para a construção de um ser reflexivo, que indague a si próprio qual a essência da sua existência, mais preocupado com o caminho que está percorrendo do que com o destino que o aguarda (Metáfora do Peregrino). O que se tem atualmente, é um indivíduo com um posicionamento na outra extremidade, não pertencente a nenhum lugar, que não está interessado no caminho a se percorrer, a quem interessa somente o destino a que pretende chegar, e chegar rapidamente (Metáfora do Turista).[3] Daí a rotina se impõe nessa opção de vida, repleta de consumo, onde o que interessa é a nova oferta de compras, de forma abundante, significando “novos começos”, novos “renascimentos”[4] materializados no ato de compra.
É nesse ambiente propício ao consumo desenfreado que o “público alvo” das mensagens publicitárias se encontra. Se por um lado exposto a toda sorte de abusividades, por outro, disposto a um “renascimento”, buscando o consumo especialmente impulsionado por fatores externos que acentuam o apelo publicitário, tais como, “últimas unidades”, “oferta somente para hoje”, etc.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) traz inúmeros dispositivos de proteção ao consumidor. A bem da verdade, são proteções mínimas, básicas, impondo a quem veicula mensagem publicitária alguns deveres e inequívoca vinculação unilateral. Justamente em função desse poder vinculativo da mensagem publicitária, decorrente do disposto no art. 30, do CDC, é muito comum nos depararmos em todo tipo de encarte com a seguinte advertência: “As imagens são meramente ilustrativas”. Busca o ofertante, com tal advertência, se livrar do cumprimento da oferta realizada, notadamente porque não raras vezes o produto que consta do encarte não corresponde ao que será efetivamente entregue ao consumidor caso este venha a adquiri-lo. Em outras palavras: oferta-se, por exemplo, um veículo com acessórios básicos, mas no encarte consta fotografia de um modelo mais sofisticado. Teria o consumidor, diante desse quadro, de supor que pelo preço ofertado somente poderia adquirir um veículo com acessórios mais modestos do que aquele modelo que consta na foto do encarte? Ou, pensando de forma diversa, qual seria o impedimento à veiculação de fotografia correspondendo exatamente ao modelo que corresponde ao preço veiculado no encarte? Nos dois casos a resposta é negativa, sobretudo em decorrência do dever de boa-fé que rege a relação jurídica de consumo (Arts. 4, inciso III e 51, inciso V, do CDC).
O mesmo ocorre com a denominada “compra na planta” de imóveis. No encarte constam os detalhes estéticos, disposição física dos cômodos, portões, hall de entrada, etc. Quando da entrega do imóvel, o consumidor percebe, por exemplo, que uma parede que servia de anteparo à entrada social e constava do encarte não existe na realidade do imóvel que lhe foi entregue, sob a alegação de que aquela planta dizia respeito aos imóveis “de frente” do terreno, ou, ainda, em outro exemplo, a garagem se mostra estreita a ponto de nela ser possível a entrada apenas de veículos pequenos, não permitindo que o passageiro desembarque no seu interior, dada a existência de vigas estruturais.[5]
Os exemplos acima citados, tratando de dois bens que têm a sua simbologia na sociedade de consumo (casa própria e o automóvel da família), ilustram práticas recorrentes. O fato de existir, normalmente em notas de rodapé ou com letras miúdas em algum canto dos encartes, a advertência de que aquelas imagens são meramente ilustrativas, não tem o condão de desonerar o ofertante do cumprimento da oferta. Já destacamos o art. 30, do CDC, e nele, consta, além da vinculação unilateral do ofertante, que o conteúdo do encarte faz parte do contrato. Fazendo esse conteúdo parte do contrato, poderíamos concluir que a malfadada advertência é cláusula desse contrato, o que não é errado. Errado seria leva-la a qualquer efeito jurídico. Primeiro, porque não é possível se afastar expressamente a incidência das normas do CDC, eis que essa lei é norma de ordem pública e interesse social (Art. 1º, do CDC), impossibilitando qualquer renúncia de direito por parte do consumidor, ressalvadas hipóteses previstas nessa lei. Ao constar a advertência, o ofertante tenciona afastar a incidência do arts. 1º e 30, do CDC. Segundo, porque ainda que pudesse ser levada a efeito tal “advertência”, como cláusula contratual que é, não foi redigida de forma destacada. O CDC impõe que toda e qualquer cláusula que restringe ou limite direitos dos consumidores seja redigida de forma destacada de modo a permitir que os consumidores possam compreendê-las de forma fácil e imediata. Não cumpridos esse requisitos a cláusula é nula de pleno direito (arts. 51 e 54, § 4º, do CDC).
É valida a referida advertência? Responderia o Padre Quevedo, figura que ficou conhecida por participar de programa televisivo que tratava de fenômenos paranormais, com seu acentuado sotaque espanhol: “Isso no existe”!
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ROGÉRIO ZUEL GOMES é Advogado e Sócio do Escritório Gomes, Rosskamp e Sá Advogados Associados. Especialista em Direito Civil pela Universidade de Salamanca (Espanha) e Mestre em Ciência Jurídica pela Univali/SC.
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Notas e Referências:
[1] Sobre a atual fragmentação da identidade do consumidor leia-se: BAUMAN, Zigmunt. Vida em fragmentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
[2] Note-se a importante observação de Ulrich Beck tratando do atual conceito de risco, como algo que significa autodestruição (...sistematic way of dealing with hazards and insecurities induced and introduced by modernization itself...), diferentemente do que se tinha à época das grandes descobertas realizadas por navegadores, cujo significado era associado à coragem e aventura, típicas do aventureiro navegador. (In Risk society: towards a new modernity. Londres: SACE Publications Ltd., 1992. p. 21.
[3] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 114 e ss.
[4] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 66.
[5] Nesse exemplo é ainda mais curioso o fato de corriqueiramente constar uma cláusula contratual destacando que o adquirente poderá, inclusive, utilizar o box de garagem com dois veículos, desde que isso não importe em usurpação de área comum. Esse tipo de cláusula concorre definitivamente para que se creia, no mínimo, que haverá espaço para um carro de porte médio.
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