Ignorantes ignoram

06/11/2019

A ignorância não é um miasma ameaçador, uma emanação de um mal que nos contamina. Nada disso, ela é o nosso estado de natureza. Nós nascemos ignorantes. Deixa de ignorar as coisas no mundo quem acessa ou recebe os saberes que determinada cultura acumulou e depurou.

Há quem saiba algumas coisas e sabe que as sabe. Há quem saiba algumas coisas, sabe que as sabe e sabe que existem muitas outras que não sabe. Algumas pessoas sabem umas coisinhas e, ignorantes da vastidão de saberes no mundo, creem que sabem tudo. Sabem nada.

Ignorantes. É meio pedante imputar ignorância a alguém. Os rankings internacionais sobre educação, todavia, nos deixam mal sempre. Não é coisa eventual; é “sistemática”. Quer dizer, por muito tempo, em todas as áreas, vamos mal nas medidas internacionais de conhecimento.

Sim, estou bastante ciente de que “todos detêm algum saber e que todos os saberes são válidos”. Falácia do politicamente correto. De fato, descabe uma hierarquia: há culturas diversas com saberes diversos. Mas é manifesto que há quem acumule saber e há quem aufira saber minguado.

O saber é um ativo valoroso. Os saberes das pessoas que me circundam qualificam a minha vida. A interlocução qualificada com o próximo nos faz bem. É cativante dialogar, oferecendo e recebendo ideias, pondo-se os interlocutores concordes ou discrepantes, com fundamento.

Desenvolver uma conversa, contudo, ademais de ser uma arte e pedir uma etiqueta, é um ato intelectual que necessita de certos saberes. Está certo, pessoas mais toscas comunicam-se, mas a fala simplória não dá conta do gesto dialógico. Comunicar é menos que conversar.

Os brasileiros não conversamos bem. Nas redes sociais postamos ódio. Não é por acaso. Dados oficiais dizem que somos muitos os analfabetos das letras em geral e mais ainda os analfabetos funcionais. Boa parte dos que estudam não se saem bem em qualquer aferição que se faça.

Quem não se instrui ou é instruído toca bem as coisas da própria vida? Será que alcançou apuro para os gostos e desgostos da existência? Gosto não se discute? Discute-se, aprende-se, aprimora-se. Educa-se para a gostar dos gostos acurados, que cada cultura tem os seus.

Culturas tem bons e maus gostos. E se o país é dividido a ponto de segmentar gostos? O Brasil tem gostos segmentados: um gosto para a classe A; outros gostos para as demais classes. Estudos sobre consumo dizem isso. Nas artes, na roupa, na comida, há um modo muito particular de cada segmento social consumir e gozar o consumido.

Preconceito? Não. Fatos tristes. Trata-se de reconhecer as consequências de séculos de exclusão social. Quando os pobres arranjaram reservar algum dinheiro (com o fim da inflação), passaram, por exemplo, a comer, conforme a sua (falta de) educação, coisas prejudiciais à saúde (sobre o assunto sobram dados na internet). Ignorância igual mau gosto.

Gosto é produção histórica, como tudo o que é cultural. Pessoas educadas receberam informação suficiente para discernir e formar gosto (claro, com conteúdos de subjetividade e idiossincrasias). Pessoas estudadas estão advertidas das referências que importam. Pessoas ilustradas, então, sabem viver coisas que interessam, podem viver melhor.

Preconceito novamente? Novamente, não. Todos declaramos a relevância da educação. Reconheçamos, pois, a sua importância. Ademais, se ao nosso derredor pulula a ignorância não é por imprestabilidade de ninguém, mas porque, desde sempre, nossa classe dirigente furtou oportunidades ao povo, particularmente as de educação adequada.

Não é difícil compreender a questão individual. A minha existência será tão boa e inteligente quanto sejam boas e inteligentes as existências de meus entes relacionais. Ignorantes ficam circunscritos ao não saber. As percepções do mundo abrem-se pela educação. O saber apetrecha a mente para as leituras das sutilezas do mundo.

Preocupa-me a dimensão coletiva do assunto. Nossa ignorância nos deixa com chances truncadas. Como fica um país cujos dados oficiais reconhecem a bancarrota da educação pública? Fica de gosto ruim, conversa mal consigo mesmo. Boa parte do Brasil, ou está alienada, ou está destilando rancor. A ignorância nos autoriza o que temos de pior.

Os espertalhões não se perdem nisso; antes, locupletam-se.  Não nos faltam manobreiros a extrair ganhos desse infeliz estado de coisas. Dentre os países injustos em distribuir renda, estamos no fim do rol porque há quem transforme ignorância em meio de apropriação dos recursos nacionais. A deseducação, como negócio, para alguns, vai bem.

E a Nação? A nação tem menos sabedoria, menos aprimoramento de seus valores e instituições. Tem menos produtividade, menos interesse no meio ambiente, menos criação artística e científica, menos progresso. Menos diálogo. Onde as classes dirigentes expropriam as chances do povo, a vida mesma é mais tacanha e até mais curta.

Ignorantes não sabem que não se sabem. Ignorantes ignoram. Não nos sabemos. Acaba que sobramos todos com uma cota de ignorância, porque nossa vida é neste lugar de gosto discutível e falto de ideias para trocar. Os que estão bem, ou ignoram o estado geral da nação, ou se aplicam em conservá-lo como está. E não estamos bem.

 

 

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