Ideologia e consciência ecológica (Parte 1)

21/08/2015

Por Atahualpa Fernandez - 21/08/2015

“Llegamos tarde [os humanos] al teatro evolutivo y en un momento en que la diversidad de la vida del planeta estaba cerca de la cota más alta de su historia. Y… llegamos equipados con la capacidad de devastar esa diversidad dondequiera que fuésemos”.

R. Leakey & R. Lewin

Extinção e evolução das espécies

A extinção é um fato natural para as espécies do mesmo modo que a morte é para os indivíduos. Cedo ou tarde todas as espécies terminam por inscrevê-la como epílogo em seu registro vital. Mas não existe um único tipo de extinção: há espécies que se extinguem para dar passo a outras evolutivamente mais modernas (como ocorreu, por exemplo, na passagem de Homo erectus a Homo sapiens) e outras que em câmbio se extinguem sem dar lugar a novas formas. Ao primeiro tipo se lhe denomina cronoespécies, quer dizer, espécies que têm nomes distintos, mas que são uma descendente da outra (F. Ayala). A transformação de uma espécie em outra sempre se produz mediante um processo gradual.

O segundo tipo vem a significar um conjunto de formas de vida que, em um momento pontual e por causas diversas, se convertem em não-adaptativas e se encontram próximas à extinção pela seleção natural. A espécie, ou responde a cada desafio ambiental com adaptações apropriadas, ou se extingue (F. Ayala). De tal sorte que a extinção pode considerar-se uma realidade frequente desde que há 3.500 milhões de anos apareceram as primeiras formas de vida na Terra. Tanto é assim que os cientistas já chegaram a afirmar que 99% das espécies que existiram no planeta já se acham extintas. O célebre paleontólogo George Gaylord Simpson parecia apontar na mesma direção quando, há mais de quarenta anos, escrevia que “las  especies extintas deben, em fin, haber sido mucho más numerosas que las que ahora viven. El total de todos los organismos que han vivido desde siempre en la tierra desafía nuestra imaginación”.

Nada obstante, aquelas espécies que não se extinguiram tampouco permaneceram imutáveis, senão que evolucionaram. Desse modo, as espécies não podem permanecer biologicamente estáticas; somente existem duas alternativas: "continuar evolucionando ou extinguir-se" (F. Ayala & C. Cela Conde). Na atualidade se encontram descritas, classificadas e nomeadas aproximadamente dois milhões de espécies que diferem entre si em tamanho, forma, estilo de vida e composição do DNA, ainda que se estime que em total possam existir entre dez e trinta milhões, tratando-se em sua maior parte de bactérias e organismos microscópicos (R. Leakey & R. Lewin chegaram a aventurar uma cifra tope atual de até cinquenta milhões de espécies).

O mecanismo mais comum que conduz à extinção de espécies é a perda de habitat. De fato, câmbios ambientais drásticos podem ser insuperáveis para organismos que previamente eram prósperos (F. Ayala). E é precisamente neste ponto onde é especialmente destacável a extraordinária capacidade que demonstrou (e demonstra) o Homo sapiens para transformar e em muitos casos destruir os distintos habitats, capacidade que nos últimos duzentos anos incrementou exponencialmente sua rapidez de ação.

Mas, se como vimos, a extinção de espécies é um fenômeno natural próprio do fluir da vida no planeta, tem algum sentido adotar uma postura conservacionista? Em verdade podemos fazer algo por conservar as espécies? Que razões há para fazê-lo? Estas e outras perguntas que surgem a propósito da capacidade transformadora do ser humano devem ser respondidas em boa medida pela ciência e a filosofia. O fator humano na extinção de espécies se vê refletido na quantidade de habitats que a mão do homem destruiu nos últimos duzentos anos. O crescimento da população mundial, o aumento da demanda dos recursos naturais, a necessidade de dedicar um maior número de terras à agricultura e o influxo dos processos de urbanização e industrialização por todo o planeta acabaram por privar (e continuam privando) de seus habitats naturais a uma multitude de espécies, especialmente desde o século XIX.

Consciência ecológica: razões egoístas e morais

Pois bem, uma vez que a degradação do ambiente e a perda de biodiversidade podem chegar a ter consequências nefastas para a própria sobrevivência da espécie humana, a tomada de consciência desta circunstância deu início a um debate entre a velha ideia de progresso e a nova de conservação. A encruzilhada que se coloca hoje em dia à humanidade como espécie é a de apostar pelo crescimento econômico ou pela conservação do meio ambiente e das espécies. A fórmula intermediária do denominado crescimento sustentável viria a mitigar um tanto os efeitos não desejados da industrialização, ainda que não tenha constituído, por si só, uma alternativa suficiente para desestimar o imperativo de atuar para garantir a continuidade da diversidade biológica.

A consciência ecológica acabou impregnando pouco a pouco todos os âmbitos humanos (científico, jurídico, político, econômico, filosófico, etc.) quase ao mesmo tempo em que a degradação do meio se foi fazendo mais grave e tornando-se mais patente [1]. Contudo, uma consciência ecológica não é o mesmo que uma ideologia ecologista. Na atualidade podemos distinguir duas posturas ideológicas contrapostas no fundamental, mas que compartem a preocupação pelo meio ambiente, entendido este como “el entorno natural del cual dependen - y conforman, hemos de añadir - todas las especies viventes de la tierra”. (Valencia Villa)

As duas posturas são o ambientalismo (também chamado meio ambientalismo) e o ecologismo. A primeira seria uma resposta desde dentro (do sistema capitalista) à degradação do meio ambiente. Seu paradigma seria o da sustentabilidade, quer dizer, continuar com o crescimento econômico e o consumo de bens ainda que mitigando os efeitos nocivos derivados da produção. Andrew Dobson definiu esta postura como “uma aproximação administrativa ao meio ambiente dentro do marco das atuais práticas políticas e econômicas”. Por sua parte, o ecologismo não aceita que a sustentabilidade seja um princípio de ação suficiente para frear a degradação dos distintos habitats e coloca a necessidade de opor-se a um sistema econômico que persegue infatigável o crescimento contínuo. Assim mesmo propõe a diminuição do consumo de bens, proposta esta de duvidosa aceitação entre os cidadãos ocidentais, dulcificada, isso sim, pela promessa de uma vida espiritual mais satisfatória.

Mas centremo-nos na consciência ecológica à margem de ideologias. A favor da conservação cabe aduzir, em síntese, dois tipos de motivos ou razões: uns "egoístas" e outros "morais". Com frequência a ciência tem enfocado a necessidade de conservação insistindo nos primeiros e é à filosofia moral a quem corresponde pronunciar-se com maior autoridade sobre os segundos. Os motivos egoístas (ou o interesse egoísta) são aqueles que se encontram entre as ações que aparentemente beneficiam ao receptor das mesmas, mas cujo objetivo último é beneficiar ao próprio emissor. Ou dito de outro modo, que “os seres humanos devem cuidar do meio ambiente porque isso redunda em seu próprio interesse”. (A. Dobson)

Assim, por exemplo, constituiria um chamado interesse egoísta argumentar que é preciso conservar a biodiversidade porque do contrário poderia dar-se uma massiva extinção de espécies animais e vegetais que terminaria por arrastar à humanidade consigo. O chamado “interés egoísta pretende hacer cambiar un comportamiento por obra del miedo, no por una convicción moral” (D. D. Raphael). E a ciência subministra, desse modo, argumentos para que através de um temor egoísta se chegue à aprovação moral da conservação das espécies. No fim de contas, como escreveu o filósofo inglês D. D. Raphael,  “el pensamiento moral de todas las sociedades atribuye un alto valor a la conservación del grupo social en su conjunto”.

As razões egoístas em prol da conservação do meio ambiente e das espécies não são razões morais senão instrumentais: “¿Por qué, ya puestos, no aplicar la calidad de víctima al mundo inanimado, árboles, piedras, suelo, de los cuales uno mismo se proclamaría defensor y detentor?” (P. Bruckner). O que se busca preservar é o valor instrumental do ambiente e das espécies, a utilidade que nos proporcionam, não o ambiente e as espécies em si mesmas. Algumas das razões que se argumentam neste sentido são: i) interesse como provedor de matérias primas, alimentos e medicamentos; ii) manutenção do entorno físico entanto que necessário para a sobrevivência; iii) material de estudo científico; e iv) interesse para o desfrute estético, de ócio e inspiração espiritual.

Observemos agora o assunto da conservação como um problema de ordem filosófico. A filosofia moral nos fala de normas e valores, do que se deve e não se deve fazer, das ideias de justo e injusto, de bem e mal. Mas a investigação filosófica, a que exerce um efeito duradouro, costuma surgir de um problema da vida real, neste caso a relação entre os humanos e o meio ambiente. Assim que é pertinente perguntar-se: Constitui uma injustiça respeito aos demais seres vivos a destruição de seus habitats? E cabe também outra questão: Constitui tal destruição uma injustiça respeito às gerações futuras de nossa espécie? Note-se que o tipo de pergunta e em consequência o tipo de resposta é qualitativamente distinto ao que poderia proporcionar-nos a ciência. Isto se deve a que, se bem ciência e filosofia moral se fundamentam na racionalidade, a primeira persegue a objetividade enquanto que a segunda possui um caráter mais subjetivo. As formas de conhecimento são claramente distintas.

Não podemos ver nem tocar o justo ou o injusto. Não chegamos às crenças morais a partir da evidência de nossos sentidos. Não! Mas talvez cheguemos a elas desde a evidência de uma distinta classe de experiência, a experiência do sentimento ou a emoção (D. D. Raphael). Tal é, ao mesmo tempo, a solidez e a fragilidade do argumento filosófico: a justiça e a injustiça não se percebem, senão que se sentem. O que nos leva diretamente à noção rawlsiana de "equilíbrio reflexivo".

Equilíbrio reflexivo: o problema das limitações e as incoerências de nossas intuições e emoções morais

John Rawls sustenta, utilizando o critério do equilíbrio reflexivo, que as teorias normativas e, em particular, as teorias sociais normativas, são suscetíveis de contrastação com uma peculiaríssima classe de fatos: a de nossas intuições e emoções morais. Esta ideia foi tomada precisamente da teoria goodmaniana - seguramente uma das contribuições mais influentes e discutidas da filosofia do conhecimento do século XX - de justificar as regras de inferência lógicas recorrendo a um equilíbrio, a um «acordo», entre nossas intuições acerca de quando devemos aceitar uma inferência particular e as regras gerais que pretendem legitimar a validez das inferências (N. Goodman).

Ocorre que nossas intuições e nossas práticas éticas – o mesmo que nossas intuições e nossas práticas inferenciais – não são muito consistentes, e em qualquer caso se nos apresentam um tanto revoltas e confusas. Tratamos de dar-lhes coerência, de sistematizá-las e de capturá-las conceitualmente codificando-as mediante sistemas coerentes e globais de preceitos – normas éticas, normas jurídicas ou regras de inferência –; vemos se essa codificação sistemática logra capturar todas ou a grande maioria dessas intuições e dessas práticas, e se concorda com elas.

É possível que não o faça, que deixe muitas intuições e práticas de fora, ou que viole algumas das que abarca; então, retocamos nossa codificação sistematizadora para que abarque mais e para que o abarcado quadre melhor com nossas intuições  e nossas práticas. Mas também é possível o contrário, a saber: que nossa codificação sistematizadora nos resulte muito aceitável, mas que deixe de fora ou viole algumas intuições e práticas. Neste caso, tratamos de emendar e retocar nossas intuições e nossas práticas para que casem com a codificação que nos resulta mais satisfatória. E ao final desses processos de ajuste e/ou "acordo" chegaremos a um equilíbrio reflexivo entre nossas regras ou normas sistematizadas e refinadas, por um lado, e nossas intuições e práticas emendadas (e devidamente reconsideradas), por outro.

Evidentemente que isto sugere, ao menos em aparência, o seguinte problema: se nossas intuições morais e epistêmicas (sobre o que seja uma inferência correta ou uma crença bem fundada, etc.) estão diversamente distribuídas, como presumir que podemos chegar a consensos, a "acordos" ou a "equilíbrios reflexivos" (públicos e intersubjetivos) sobre os critérios que fundamentam nossos discursos filosóficos (jurídicos, morais, políticos, etc.) acerca da conservação do meio ambiente e das espécies? Não abre isso automaticamente as portas ao relativismo moral e ainda ao niilismo filosófico? Não está então o caminho franqueado para que se rompa a intersubjetividade e se possa afirmar não somente que a senhora A e a senhora B têm intuições morais distintas e ainda desencontradas, senão que tão ou igualmente «corretas» são as da senhora A como as da senhora B?

Da mesma forma, e para pôr o problema algo mais complicado, bem se poderia conjecturar que nossas intuições e nossas emoções morais de raiz biológica se sobrepõem, são globalmente incoerentes, e até, em determinados contextos, contraditórias. Afinal, a universal experiência humana dos dilemas éticos, tão explorada como recurso literário e de reflexão filosófica, bem poderia deixar suas raízes no caráter fluxo e pouco coerente de nossas intuições e emoções morais.


Notas e Referências:

[1] Sirva-se de exemplo este pequeno extrato de um diálogo da obra teatral Dyadya Vanya que o escritor russo Anton Chéjov escreveu entre 1895 e 1897 e que denota uma adiantada preocupação ecológica: “ÁSTROV: Yo estaría conforme con que se talen los bosques cuando es absolutamente necesario, ¿pero para qué arrasarlos? En Rusia los bosques gimen bajo el hacha, se destruyen millones y millones de árboles, se aniquilan las guaridas de animales y pájaros, disminuye el caudal de los ríos y acaban por secarse, desaparecen para siempre espléndidos paisajes…Hay que ser un bárbaro irracional para quemar esa belleza en la estufa, para destruir lo que no podemos crear. El hombre ha sido dotado de razón y de facultad creadora para incrementar lo que le ha sido dado, pero hasta ahora no viene creando, sino destruyendo”.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post:  Gideon Wright  // Foto de:  Gideon Wright // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/guymasavi/15224570414 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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