Destaca-se no cotidiano forense que a maioria dos delitos que chegam à apreciação do Poder Judiciário Brasileiro tratam de ofensa ao patrimônio privado[i] – entendido como aquele que não é de domínio público – como o crime de roubo, furto, estelionato e receptação.
Neste sentido, tratando-se de crimes de “baixo clero”, nota-se um tratamento mais rigoroso por parte dos operadores do direito que detém o ius puniendi em relação às condutas criminosas, visto que é nesta espécie delitiva em que mais são utilizados institutos provincianos como o reconhecimento fotográfico e, mais recentemente, a admissão da inversão do ônus da prova em matéria criminal, tema de discussão que se desencadeará nas linhas seguintes.
Logo, referindo-se ao crime de receptação, previsto no Art. 180 do Código Penal Brasileiro, que ganhou destaque no início do ano corrente em razão de um recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, que consolidando o entendimento de que é dever do acusado comprovar a origem lícita do bem encontrado sob sua posse. Para maior elucidação, segue a redação do dispositivo mencionado:
Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
O caput do dispositivo incriminador visa punir, primordialmente, a conduta do agente que tem sob sua posse coisa que é oriunda de crime. É o caso do agente que, por exemplo, se dirige à determinada loja conhecida por ser ponto de revenda de celulares roubados e adquire um aparelho para si, normalmente por preço muito inferior ao de mercado.
Neste contexto, entendeu a Corte Superior que a forma do agente se eximir da culpabilidade pelo crime de receptação - em havendo forte arcabouço probatório em seu desfavor -, seria comprovar a licitude do bem apontado como ilícito, para que se desconstitua a elementar do tipo consubstanciada na proveniência criminosa da coisa.
Deste modo, destaca-se o HC nº 626.539/RJ, de relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, o qual vale mencionar – para além das alegações constantes do relatório do acórdão tendentes a atribuir valor probatório aos depoimentos policiais – o trecho referente à inversão do ônus probandi, a seguir:
Por fim, a conclusão da instância ordinárias está em sintonia com a jurisprudência consolidada desta Corte, segundo a qual, no crime de receptação, se o bem houver sido apreendido em poder do paciente, caberia à defesa apresentar prova da origem lícita do bem ou de sua conduta culposa, nos termos do disposto no art. 156 do Código de Processo Penal, sem que se possa falar em inversão do ônus da prova.[ii]
Nota-se do extrato do acórdão mencionado que a Corte atribui à defesa o ônus de provar que a origem do bem apreendido é lícita, para que desconstitua o crime imputado ao paciente na espécie, numa verdadeira inversão do ônus da prova em matéria criminal.
Desta forma denota-se a perigosa admissão da inversão do ônus probandi na seara criminal, em contraponto ao próprio princípio reitor da presunção de inocência, de acordo com o qual a regra de julgamento impõe o denominado “ônus objetivo da prova”. Para melhor entendimento, socorremo-nos da cátedra do eminente Lênio Streck, in verbis:
Neste aspecto, enquanto regra de julgamento a presunção de inocência e as garantias correlatas geram o que doutrina denomina de ônus objetivo da prova. Ou seja, destina-se ao juiz, direcionando a quem se aproveitará, digamos assim, ao fim e ao cabo, o benefício da dúvida. Quando falamos do ônus subjetivo da prova estamos nos referindo ao incentivo para que as partes atestem os fatos relevantes do seu interesse.
A inversão do ônus da prova é uma regra de julgamento somente autorizada por lei e que se aplica quando o autor não conseguindo comprovar sua pretensão e o réu tampouco os chamados fatos impeditivos, modificativos ou extintivos, ainda assim a ação será julgada procedente.[iii]
Pode-se concluir, portanto, que a adoção da inversão do ônus probatório – transferência infeliz de instituto cível à seara criminal – em ações penais afeta frontalmente não só a própria presunção de inocência, mas todos os direitos e garantias fundamentais sob os quais o processo penal constitucional e de viés acusatório se funda.
Aproveitamos, neste sentido, para trazer outro posicionamento de Lênio Streck - com os jocosos protestos de costume - sobre a “implementação” da inversão do ônus da prova:
Ora, mutatis, mutandis, isso não difere tanto assim daquilo que se chamava de ordálias ou “prova do demônio”. Se assim for, poderíamos aprovar uma emenda ao CPP, e seguem algumas “sugestões”: 1) toda vez que ares furtiva é encontrada com alguém e este não provar que não é dele, estará dispensada a instrução criminal; 2) se preteritamente o acusado esteve na posse da res, é ônus dele provar que não era produto de crime; 3) se o acusado disse algo no inquérito e depois muda a versão, é ônus só dele provar que aquilo que disse na delegacia não era verdadeiro”; 4) cabe ao acusado infirmar a palavra dos policiais que efetuaram a apreensão dares furtiva e; a presunção é de que os policiais falam a verdade”; 5) Nos crimes de furto, encontrado o acusado na posse da res, o juiz sentenciará de plano, não havendo o acusado demonstrado tese contrária no inquérito”[iv]
De outra forma, é importante pontuar que a Corte, no trecho anteriormente apresentado, infere que do Art. 156 do Código de Processo Penal[v] pode-se extrair uma espécie de autorização implícita para inverter a atribuição probatória, bastando que determinada parte alegue determinada situação que desconstitua a tipicidade de sua conduta, ignorando o fato de que a devida atribuição da prova já foi realizada momentos antes, quando nem era possível ainda a manifestação da parte contrária.
Isto é, no momento da denúncia, o representante do Ministério Público deverá, nos termos do Art. 41/CPP[vi], expor todo o fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, concedendo ao juízo todos os elementos que fundamentem a materialidade e autoria do crime.
Portanto, no caso em apreço, caso o agente seja encontrado com objetos que são, alegadamente, de origem delitiva, caberia ao órgão acusatório juntar elementos que atestem suficientemente – em respeito ao standard probatório necessário – a origem criminosa da coisa. Caso contrário, o órgão acusador coloca nas mãos do acusado o ônus de produzir uma prova diabólica, jogando no colo da parte uma função que é a sua.
Nesta perspectiva, ao passo que as Cortes dão ao texto jurídico entendimento diverso do literal, de forma a basear as próprias conclusões, coaduna-se com a “teoria de Humpty Dumpty” à luz da hermenêutica jurídica, que se explica a seguir:
Discutindo sobre o papel do “desaniversário”, pelo qual haveria 364 dias destinados ao recebimento de presentes em geral e somente um de aniversário, Humpty Dumpty diz para Alice: é a glória para você. Poderás receber, em vez de um, 364 presentes. Ela responde: não sei o que quer dizer com glória, ao que ele, desdenhosamente, diz: “Claro que não sabe... até que eu lhe diga. Quero dizer ‘é um belo e demolidor argumento para você’”, acrescenta Humpty Dumpty. Mas, diz Alice, “glória não significa ‘um belo e demolidor argumento’”. E Humpty Dumpty aduz: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Observe-se bem essa frase final do personagem nominalista de Lewis Carroll: a palavra “glória” significa o que ele, Humpty Dumpty, quer que ela signifique. É o fim “demolidor” de uma discussão. [vii]
Em conclusão, aduz-se que os Tribunais que possuem a tarefa de interpretar os dispositivos legais à luz da constituição cada vez mais – exceto após forte e cansativa pressão da comunidade jurídica e acadêmica – decidem contra as garantias e fundamentos nela expostos, invocando técnicas interpretativas semelhantes à ensinada por Humpty Dumpty à Alice.
Notas e Referências
[i]https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/brasil-tem-mais-de-773-mil-encarcerados-maioria-no-regime-fechado
[ii] STJ. HC nº 626.539/RJ. Rel. Ministro Ribeiro Dantas. Quinta Turma. Julgado em 09/02/2021. Dje 12/02/2021.
[iii] STRECK, Lênio. A presunção da inocência e a impossibilidade de inversão do ônus da prova em matéria criminal: os Tribunais Estaduais contra o STF. Publicado em 02/2016. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp- content/uploads/conteudo/arquivo/2016/02/ee47cd1a6221d6daebcdb32af1bc151a.pdf. Acesso 18 abr 2021.
[iv] Idem.
[v] Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
[vi] Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.
[vii] STRECK, Lênio. Azdak, Humpty Dumpty e os Embargos Declaratórios. Publicado em 29/03/2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-mar-29/senso-incomum-azdak-humpty-dumpty-embargos-declaratorios. Acesso 18 abr 2021.
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