Humano, porém cruzado... e editado

25/03/2020

Atualizo este texto, mantendo a narrativa de fundo: o humano é um animal que resultou de cruzamentos de outros animais. Isso é bom: cruzamentos fortalecem as espécies. Mas não me restava dúvida: a notícia de que humanos cruzaram com outros animais, ainda que de variação também denominável humana, seria um choque na cultura ocidental. Não foi. Agora, edição genética: igualmente, silêncio.

A maior parte das pessoas está convencida de que o humano é uma criatura, ou seja, foi feito por uma força criadora, um deus. Então, pensava eu, com essas notícias da ciência, as autoridades religiosas reagiriam, afinal, divulgou-se que, além de evolução, somos reprodução cruzada. Todavia, não se falou nada. Penso que, na falta de contra-argumentos, houve opção inteligente pelo silêncio.

Situo a questão: descobriram-se há algum tempo evidências genéticas de que nossa espécie se reproduziu com outro primata, nosso primo, chamado Neandertal. “De acordo com a pesquisa liderada pelo sueco Svante Pääbo, cruzamentos entre as duas espécies foram frequentes entre 80 e 50 mil anos atrás, antes de os Neandertais serem extintos, há cerca de 25 mil” (Reinaldo Jose Lopes, FSP, 10mai10).

Saber quem somos, ou seja, rastrear nossa evolução, identificando melhor nossa origem, facilita o trabalho da ciência: “Além de revelar quem realmente somos e o que nos torna diferentes de outros seres, as descobertas trazem uma gama de informações que pode nos ajudar a sanar problemas que nos afetam profundamente, como as doenças genéticas” (André Julião, Isto é, 21jan16).

“Nossos genes carregam as marcas dos nossos encontros com os Neandertais e com diferentes populações do homem de Denisova (estudo publicado na revista científica Cell). A descoberta de que os Homens de Neandertal e modernos não estavam sós é recente: os restos que permitem identificar o DNA destes hominídeos foram encontrados na caverna de Denisova, na Sibéria, em 2008.

Um estudo utilizou um novo método de análise genética para comparar um genoma inteiro do homem de Denisova. ‘É surpreendente que possamos analisar a história humana através dos dados genéticos de humanos atuais e determinar algum dos eventos que aconteceram’, disse a autora do Estudo, Sharon Browing”, bioestatística da Universidade Washington (Diário de Notícias, 19mar18, editado).

Fantasmas genéticos rondam a evolução do Homo Sapiens. Ancestrais dos humanos nos legaram trechos de seu DNA durante episódios de cruzamento. “A evolução dos seres humanos teria sido marcada por sucessivos processos de miscigenação em escala global, conforme diferentes ondas de hominídeos deixavam a África e se encontravam com ‘primos’ que já tinham chegado a outros continentes.

Estudo publicado recentemente na revista especializada Science Advances (autoria de Alan Rogers e colegas do Departamento de antropologia da Universidade de Utah), propõe que hominídeos bastante primitivos, apelidados de ‘superarcaicos’, teriam participado do processo há cerca de 700 mil anos, durante uma das ondas de expansão africana rumo ao território europeu e asiático.

Essas espécies desaparecidas que entraram na análise, os neandertais e os denisovanos, estão longe ser ‘fantasmas’. Os cientistas já encontraram seus fósseis e dispõem da sequência relativamente completa de ‘letras’ químicas que compões o DNA delas. Ambas desapareceram no fim da Era do Gelo, mas miscigenaram com o Homo Sapiens antes de desaparecem.

Em outro estudo (Science Advances), Arun Durvasua e Sriram Sankararaman, da Universidade da Califórnia, usando métodos genômicos e estatísticos, identificaram a contribuição genética de hominídeos dentro do próprio continente africano. A aposta dos pesquisadores é que o cenário da evolução humana deve se tornar ainda mais complexo” (Reinaldo José Lopes, FSP, 21fev20, editado).

Grupos religiosos põe-se atentos a quaisquer temas atinentes a seus dogmas: proíbem o divórcio, porque o casamento seria indissolúvel; embargam contraceptivos, dado que sexo seria para procriação; coíbem homoafeição, eis que seria afeto degenerado; interditam modificação genética de plantas, pois seria interferir na conformação que sua divindade teria dado quando da “criação”.

Ora, humanos evoluindo e cruzando como bichos comuns são uma contrariedade à concepção criacionista da “imagem e semelhança” de um criador, preceito fundamental da tradição judaico-cristã. Para um religioso, a genética sendo, como tudo o seria, obra divina, é obra “imexível”. Assim, intervenção genética, ainda que para eliminar doenças, é pecado grave: é violentar a obra divina.

Não obstante, os religiosos silenciam sobre questões que lhe são tão cruciais. Em linguagem popular, pode-se dizer que os criacionistas não se dispõem a dar “pano pra manga”. Quer dizer, o não responder é não conceder relevância memética à questão. Há uma teoria, ainda em desenvolvimento, que defende que ideias competem entre si e consegue situar-se aquela que conta com vantagens.

Qualquer ideia (meme) só se fixa (e se replica) se vencer provações e encontrar apoio. Um meme (a psicanálise, por exemplo) tem que ser posto em circulação (os debates orientados por Freud), tem que ter referência (médicos prestigiados a defendiam), tem que ter crédito (o seu caráter científico) tem que fazer sentido (socialmente útil), tem que ser forte (vencer os argumentos opositores) etc.

Bem, o universo que defende a evolução é numericamente pequeno, todavia é um preparado quadro com formação intelectual capaz de sustentar discussões fundado em raciocínios sólidos. Essas pessoas vêm se articulando, escrevendo para o grande público e conseguindo resultados surpreendentes em todo o mundo, principalmente no mundo que frequenta universidades.

Uma coisa são padres e pastores discutirem com suas ovelhas obedientes (e de comum com escassa formação escolar) que usar contraceptivo é pecado, outra é contrariar pesquisas universitárias demonstradas com elementos materiais verificáveis. A genética veio, venceu e se estabeleceu, desvenda a origem dos humanos, explica suas condições e alarga suas possibilidades.

É um meme replicante de pensamento e que replicará comportamentos: circula no mundo estudantil, tem referência acadêmica, obteve crédito científico, faz todo o sentido para uma vida melhor, é cada vez mais fortalecido socialmente. Debatê-lo é formar torcida para uma ideia que tem muitas vantagens argumentativas. Os religiosos resolveram não arriscar. Dá para compreender seu silêncio.

Isso tudo posto é passado, ou sobre o passado. Eis que existe a China. Eis que a China não tem formação ideológica semita-judaica-cristã-católica-protestante-evangélica. A China não contempla na sua narrativa da vida humana um criador, então, notícias: “Pesquisador (He Jiankui, chinês) diz ter criado os primeiros seres humanos geneticamente editados” (O Globo – Ciência, 26nov18).

Bem, tais seres humanos nasceram e estão humanos entre humanos, mas não são exatamente iguais aos humanos comuns. Agora, “já passou mais de um ano desde o anúncio do cientista He Jiankui que chocou o mundo, mas o caso ainda continua a dar o que falar” (HorstGator, 04dez19). Fala-se de falsidade, de incongruência, de inconsistência descritiva do acontecimento.

De fato, há incertezas sobre o acontecido, mas não se nega o acontecimento. Seja: talvez o cientista que conduziu o experimento não esteja sendo exatamente transparente como o mundo científico se propõe a ser, mas, por menos, abriu a possibilidade de se editar a condição humana. Eis um dilema ético: melhorar a condição humana versus não tocar na condição humana.

Quem terá legitimidade para decidir? Religiosos discutiram a modificação genética da soja; a dos humanos, não. Talvez por esvaziados de poder. E o mundo laico? Os chineses decidirão o tema só entre eles? Não deveriam. A questão é humana, atinente, pois, à humanidade. O Ocidente terá que se posicionar como ciência, não como ideologia cristã, ou receberá um novo humano como fato consumado.

 

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