Honestidade e humanidade

22/12/2021

Há quem entenda que as condições mais elevadas de nossos costumes sejam algo originalmente estranho ao humano; a condição humana em si seria animalesca. Nesse entendimento, o humano em sua condição de origem era troglodita e, quando se superou, ou superou suas condições bestiais primitivas, perdeu a sua humanidade original, puramente animal.

Ora, humano é o resultado de uma evolução, portanto, no tudo o que é a cada momento presente está inserido tudo o que foi em cada momento passado. O é de cada tempo evolutivo se presentifica por acréscimos. Eis o indivíduo: o resultado da evolução da sua espécie. Se cometemos barbaridades e cultuamos a grandeza é porque a humanidade é barbárie e grandeza.

Ao se observar o comportamento de animais, mais especificamente o dos primatas superiores, deve-se levar em conta o indivíduo, o grupo e o ambiente. Os grandes primatas têm várias características comuns. Uma delas é a cooperação. Em ambiente tranquilo, os membros de um bando ajudam-se reciprocamente, tanto para a caça quanto para dar combate a grupos adversários. Se, contudo, o ambiente fica hostil – se rareia a comida, por exemplo –, a disputa interna floresce e cada um busca as próprias vantagens.

O ambiente propiciou a evolução humana; a evolução permitiu criar civilização; a civilização estabeleceu as condições de sobrevivência do humano. Assim: o primata humano, enquanto evoluía, foi criando civilização; a civilização criada foi enquadrando o primata humano que evoluía. Humano e civilização humana são, numa relação dialética, condição e produção recíproca.

Somente nos últimos milênios, contudo, o primata humano compreendeu que poderia administrar suas circunstâncias. E apenas muito recentemente erigiu valores e estabeleceu normas com pretensões de validade para o bando e, nisso sem nenhum sucesso, para o total da espécie (se Kant só no século XVIII formulou o imperativo categórico, no correr da História as emanações normativas dos grandes déspotas ambicionaram submeter a todos).

A civilização, todavia, mesmo com seus valores e suas normas, não matou a natureza primitiva do humano. É uma questão de condição do corpo: o cérebro mantém sua estrutura primitiva, mas por sobre ela tem partes que se desenvolveram. Dentre elas, está a que cria cultura, relaciona-se com ela, aperfeiçoa-a. Um dos aperfeiçoamentos culturais mais importantes do nosso estágio de evolução e de civilização é a substituição da força bruta pessoal pela força impessoal das instituições.

Quanto mais educada uma população (mais controlada pela cultura), menos vale o indivíduo poderoso e mais importa o poder coletivo institucional. Aí entra a questão da honestidade. Humanos em ambiente comum propício e em condições bem-educadas formam uma cultura cooperativa. Uma cultura avançada de cooperação significa adesão a regras comuns por manifestação de vontade: eu reconheço a igualdade de condições de todos, não quero ser melhor nem lograr ninguém.

Em coletividades mais primitivas as regras são obedecidas por hábito ou coação. Em sociedades politizadas faz-se o que se deve fazer porque se compreende que resta melhor para todos, com inclusão universal. Faltando senso de vida pública, falta civismo, impera a esperteza do humano egoísta, sempre pronto a enganar o próximo. Como todos somos próximos, estabelece-se uma suspeita recíproca geral. A nossa cultura, em grande parte, está mal: desvalorizamos a cooperação fraterna e a honestidade.

Na busca por vantagem, ainda que desonesta, construímos uma sociedade excludente (muitos pobres e muitos ignorantes), patrimonialista (apropriação privada do bem público), pessoal (prestígio e favores), corrupta (paga por conveniências ilícitas), conservadora (mística, arredia a mudanças), autoritária (mandões privados e públicos), moralista (normas para os outros); hipócrita (discurso sem prática), malandra (abusa da confiança alheia), religiosa (não compreende que religião é ideologia), conivente (não reage a nada disso).

Nós, ou quem teve poder para tanto, nos fizemos por nós próprios para nós mesmos esta sociedade de humanos brasileiros em que a ladineza é um valor cultivado. É bom saber que nem todos os países do mundo são assim. Bem que poderíamos nos comparar com outros povos, nos criticar e nos reconduzir na História. Seríamos brasileiros melhores porque seríamos humanos melhores.

 

 

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