Por Atahualpa Fernandez - 05/04/2015
“Lee y conducirás, no leas y serás conducido"
Santa Teresa de Jesús
É provável que a leitura já não faça muita falta para mover-se neste mundo em que o prosaísmo e a fé cega em qualquer coisa vão substituindo silenciosamente a razão. Já não se reflexiona nem se indaga, se professam credos, credos sociais, credos virtuais, credos religiosos, credos morais, credos jurídicos. As consignas, os fundamentalismos (religioso e consumista), a compulsão quase enfermiça pela felicidade a qualquer preço, a sobredose e o predomínio de imagens difusas e virtuais sobre a palavra, as informações aceleradas e superficiais, eliminam o pensamento crítico (a “autonomia do espírito” a que se referia Kant) e criam pessoas que se sentem completamente dependentes dos demais em um mundo em que "todas as coisas são corretas ou incorretas ao mesmo tempo” (R. W. Emerson). Estamos, brutal e insensatamente, perdendo de vista a realidade; é como se nós houvéramos olvidado de quem somos.
Hoje, mais que em qualquer outra época, estamos sacrificando nossa capacidade para ler e pensar com profundidade graças a um entorno hedonista que desdenha o «otium studiosum» (de que falavam os clássicos) e fomenta a leitura ligeira, um pensamento apressurado e disperso, um pensamento insípido e superficial. Nos sentimos livres da responsabilidade de pensar, razoar, analisar, julgar e atuar em consequência, nos negamos o valor e a virtude permanente de ter que construir-se a si mesmo, nos percebemos cômodos com o propósito autoimposto de permanecer em um vazio intelectual. Já não nos preocupamos por preparar-nos para o caminho, senão que nos obcecamos em buscar e encontrar o caminho preparado em quaisquer dos tentadores meios digitais, essas finas brisas da abstração moderna que provocam a desaparição do sentido percebido fisicamente e uma diminuição da conexão entre o indivíduo, os outros e o mundo. Isso que Ortega y Gasset chamava “el espíritu de nuestro tiempo”.
Agora que temos direito a tudo (menos a conformar-nos com qualquer coisa), em lugar de dedicarmos tempo e energia à “arte da leitura”, da leitura deliberada, atenta, ativa, relacional e compreensiva, nos limitamos a ler a vida e o mundo de forma fugaz, nugativa e em formato digital carregado de hiperenlaces, um panorama em que nunca tivemos tanta oportunidade de aprender e nunca aprendemos tão pouco. Uma paisagem desoladora da trivialidade contemporânea em que aprendemos à desatender deliberadamente a advertência de Paul Valéry de que o conteúdo e a forma devem estar unidos como o corpo e a alma, não como o corpo e a roupa (ou o aspecto físico). «Vanitas vanitatum et omnia vanitas», diz o Eclesiastes.
Pois bem, que as pessoas já não sintam interesse pela leitura não tem nada de extraordinário. O problema está em olvidar que de todas as atividades intelectuais potenciadoras de capacidades mentais, a mais acessível e a que proporciona um melhor balanço custo/benefício é, sem dúvida, a leitura. Ler é um dos melhores exercícios possíveis para manter em forma o cérebro e o único instrumento que tem o cérebro para progressar (I. Morgado). Em outras palavras: "Leer es para la mente lo que el ejercicio físico es para el cuerpo" (Joseph Addison).
É assim porque a atividade de ler enreda uma mescla de domínios cerebrais distintos, requer pôr em jogo um importante número de processos mentais, entre os que se destacam a percepção, a memória e o razoamento. É assim porque a leitura de um livro nos proporciona “senderos neuronales totalmente nuevos en el antiguo lecho de roca cortical de nuestro cerebro” (K. Dutton). É assim, porque não lemos com os olhos, senão com o cérebro. Nos tranquilos espaços abertos pela leitura prolongada, sem distrações, de um livro, a gente faz suas próprias associações, saca suas próprias inferências e analogias, desenvolve suas próprias ideias. Pensa profundamento porque lê profundamente. A leitura profunda se converte em uma forma de pensamento profundo e transforma a maneira que temos de ver o mundo.
Neste preciso instante em que o leitor (a) lê este texto o hemisfério esquerdo de seu cérebro está trabalhando a alta velocidade para ativar muitas e diferentes áreas cerebrais que intervêm no processo. E o cérebro permanecerá ativado para essa tarefa, transmitindo e trocando informações entre suas redes neuronais, sincronizando neurônios e regiões cerebrais, combinando ativamente percepções e recordos, e repetindo constantemente este dinâmico e complexo processo enquanto o leitor (a) siga lendo o texto. Para dizê-lo de uma forma mais desafetada, a atividade de ler centra nossa atenção seletiva, alimenta a imaginação, fomenta o pensamento profundo e favorece a criatividade, ativando numerosas vibrações intelectuais ao exigir “a concentração deliberada para combinar o desciframento do texto e a interpretação de seu significado” (N. Carr).
Por outro lado, porque idealmente não se lê para outro, senão para si mesmo (uma atividade silenciosa e em primeira pessoa ao interior da alma), a leitura também tem profundas e radicais repercussões no desenvolvimento e aperfeiçoamento pessoal, sem mencionar a excelência que transmite a profunda satisfação de domínio e confiança em nossas aptidões e possibilidades intelectuais, o bem estar que proporciona o conhecimento adquirido e como esse conhecimento se transforma em memória cristalizada, que é a que temos como resultado da experiência. “A capacidade leitora modifica o cérebro”, afirma Stanislas Dehaene («Les neurones de la lecture»), nos faz progressar e nos prepara para a vida: o ato de ler forma parte do ato de viver.
Daí que entre nossos melhores amigos devem estar os livros, esses companheiros sempre disponíveis, pelo simples fato de que são inúmeras as vantagens da linguagem escrita: (i) o exercício das faculdades reflexivas sobre as mnemônicas, miméticas e repetitivas; (ii) a ganância em objetividade e estabilidade, graças à firmeza do texto e à possibilidade de ser repassado quando não compreendemos de imediato; (iii) a clareza e sistematização das ideias, graças à forma de raciocínio e ao estilo de argumentar que os bons livros trazem consigo; (iv) a autoconfiança e a autossuficiência para reflexionar, para inquirir, para duvidar, para criar, para inovar e para aprender, que não é o mesmo que fomentar o beliscar rápido e distraído de pequenos fragmentos de informação de muitas fontes geradas por um interminável carrossel de links.
Ademais, como aprendemos por associação, isto é, utilizando o que já sabemos para compreender o que desconhecemos, a leitura atenta e deliberada é o meio mais efetivo para meditar de maneira ponderada e repetida sobre temas mais complexos, para reconhecer nossos próprios limites e capacidades, para lograr ocupar nossa percepção consciente em um pensamento, razoamento ou experiência, para estabelecer continuamente relações entre os conteúdos significativos que estão diretamente vinculados, para associar, comparar, reorganizar, integrar e unificar temas novos ou desconhecidos com as informações que já estamos habituados. De resto, sendo o cérebro um órgão “plástico”, o aprendizado pela leitura, por favorecer e exigir uma atividade mais ativa e comprometida da mente/cérebro, modifica com mais eficácia a estrutura e o funcionamento cerebral. A leitura “nos dá o alimento que faz viver ao cérebro” (E. Teixidor) e, cada vez que lemos, nosso cérebro cambia. Todo um festim para o cérebro.
Assim as coisas, o mais aconselhável parece ser dedicar um pouco mais de nosso valioso e limitado tempo (esforço e energia) à pura e simples prática ou arte da leitura. Devemos habituar-nos a conviver com os livros, a fazer um uso desmedido desses instrumentos do juízo com os que realizamos em solitário a parte substancial de nosso aprendizado e peculiar preparação. Imprescindível para uma formação sólida e duradoura, o hábito da leitura permite-nos não somente ter acesso ao próprio autor e acercar-nos mais diretamente ao conhecimento, senão que também constitui um cenário mental e uma forma de viver dentro das palavras de outra pessoa. “La lectura nos permite hablar con los muertos”, dizia Francisco de Quevedo no século XVI.
Com isso não quero dizer, evidentemente, que há que ler por ler. Também com os livros há que ser seletivo. E algo desconfiado, pois nos encontramos em uma época em que “quase tudo” já faz parte dos objetos de cultura. Não é tão infrequente ouvir falar de um livro medíocre de um autor medíocre como se se tratasse de um clássico vivente. Como há um lado escuro em todas as grandes coisas sobre os humanos, o outro lado da proverbial moeda, é um fato que na atual “sociedade do espetáculo” em que vivemos há que ser muito cauteloso com alguns livros para não deixar-se enredar nas amarras das modas atuais... e com as aparências.
É verdade que sempre há algo de bem no pior mal e certa porção de mal no bem mais apreciado. Mas, em questão de aprendizagem e formação pessoal, somos os únicos responsáveis de ser como somos e fazer o que fazemos. E se o cérebro é uma “obra” em que somos seu sujeito, autor e resultado ao mesmo tempo, deveríamos começar por tentar reescrever nossas conexões neuronais praticando e conservando o desfrute prazenteiro pela leitura que reclame algum esforço intelectual, quaisquer que sejam as circunstâncias que nos rodeiam, preservando o melhor de nossas capacidades e de nossa condição humana[1].
Nulla dies sine linea.
Notas e Referências:
[1] E se, depois de tudo, do que se trata é de alargar a vida, esse desejo que tantos acariciam, mais além de todos os esforços científico-técnicos invertidos nele, nada melhor que a simples leitura de um livro: ler significa alargar a vida, já que nos faz mais inteligentes, e os seres humanos inteligentes vivem mais tempo, tal e como revelou um estudo inglês realizado entre 1932 e 2002 com mais de dois mil participantes... (W. Schmid).
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
Imagem ilustrativa do post: Max the Brown Tabby Cat with Books // Foto de: Found Animals Foundation // Sem Alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/foundanimalsfoundation/8055192650/ Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/legalcode