Holografias, Jetsons, Star Wars, Cruz Alta e Kraftwerk. Ou de como o Direito resta preso ao passado

14/04/2015

Por Germano Schwartz - 14/04/2015

Quando criança, lá no interior do Rio Grande do Sul, na cidade da Lenda da Panelinha, a minha Cruz Alta (e também a do Érico Veríssimo e do Luis Luisi), somente dois canais de televisão eram sintonizados na altura da Domingos Veríssimo, no lar do casal Doederlein Schwartz.

O primeiro era a Globo, cujo sinal era perfeito em função do fato de existir, em Cruz Alta City, uma sucursal da RBS TV (afiliada regional da emissora global); o segundo, da Bandeirantes, ao contrário, tinha um sinal muito ruim. Conseguir alguma imagem, dependia muito da localização do aparelho e, também, da qualidade do Bombril nela instalado.

Outros tempos. Era a década de oitenta do século passado. Meus passatempos eram poucos. O cenário parnasiano convidava à imobilidade. Jogar tênis no Clube Arranca era o que me retirava da modorra diária, já que estudar Direito não era muito a minha praia. Acreditem, até que não fui tão mau tenista. O saque era razoável. Não como o do Andrei Schmidt. Mas eu me virava. De qualquer sorte, desisti de qualquer futuro como profissional, quando, aos dezoito anos, vi o Marcos Daniel, então com treze, jogando em uma quadra ao meu lado. Percebi que algumas pessoas nascem com talento; outras, não. Fui estudar. Direito, ironicamente.

Estou fugindo do tema? Não. Para um cruz-altense da década de oitenta, assistir ao desenho dos Jetsons na Bandeirantes era como entrar em um buraco negro e pular para outra dimensão. Recordo-me vivamente do quanto me impressionava o fato em que seus personagens se comunicavam uns com os outros, por meio de uma TV, assistindo-se a ela. Hoje, faço isso diariamente com o Skype.

O ponto central é: a sociedade, representada pela arte (desenhos, filmes, músicas, literatura), antecipa; o Direito, por seu turno, orienta-se ao passado. Cada vez mais essa distância se faz presente e a assincronia tão bem descrita por Ost (Tempo Direito) acentua-se toda a vez em que ele, o Direito, pretende (re)construir a realidade.

Nesse sentido, outra de minhas memórias mais longínquas com relação à minha cidade natal, diz respeito ao Retorno de Jedi, episódio da saga Star Wars. Quem me levou ao Cine Independente foi meu primo Daniel Doederlein Soares. Era uma sessão dupla e logo depois veio o fatídico filme do Bruce Lee. Recordo-me de uma cena em que o D2R2 é acionado pelo Luke Skywalker e transmite uma mensagem holográfica. Uau! Então, é possível estar – e não estar – presente, ao mesmo tempo, em um local? Somente em filme, pensei.

O Kraftwerk, por sua vez, era a trilha sonora perfeita para esse cenário futurístico. Os alemães engendraram, em uma série de álbuns, uma espécie de rock eletrônico sem os instrumentos tradicionais do gênero. Quem, da minha geração, não sonhou em dirigir em uma Autobahn ouvindo o Kraftwerk, em sua obra homônima? Também me recordo de que um comercial brasileiro da Starsax, uma marca de sapatos da época, usava uma música do grupo de uma maneira irresistível. Os germânicos estavam à frente de sua época.

Pois bem. Como resultado do movimento dos Indignados, ocorrido na Espanha, iniciado em 2011, em 15 de agosto, na Porta do Sol (Madrid), o Estado Espanhol editou a Lei de Segurança Cidadã, conhecida como a Lei da Mordaça.  O M-15 foi caracterizado por mim, por Fiammetta Bonfigli e por Renata Almeida da Costa, em artigo que será publicado na Revista de Estudos Criminais, da seguinte forma:

O movimento na Espanha encontrou suas raízes na crise econômica e em medidas governamentais tomadas seguindo uma série massiva de privatização de serviços públicos,  despejos e remoções de pessoas. Além disso, um profundo sentimento de falta de democracia substancial foi sentido pela sociedade espanhola, visto que o chamado para o ato foi divulgado nas redes sociais com o slogan “Democracia Real ya!”.

Castells esteve presente em ditas manifestações. De suas observações, resultou seu famoso livro Redes de Indignação e de Esperança, cujo grande mote para descrever o que ali ocorria era: “ninguém esperava”. Nele, o autor descreve as características principais dos assim denominados novos movimentos sociais, entre os quais se encaixa o Junho de 2013 brasileiro. São várias: a ausência de liderança, o desapego à política tradicional (o “ninguém nos representa”), entre outras. A que mais me interessa é a seguinte: os novos movimentos sociais possuem uma ação from virtual to real. Em outras palavras: o mundo virtual auxilia seu acontecimento fático.

A Lei em comento, em sua essência, restringe manifestações e marchas não autorizadas, criando uma série de penalidades no âmbito criminal e também no âmbito administrativo. Tudo isso com o intuito de preservar a democracia na Espanha. Daí o codinome “Lei da Mordaça”. Para sumarizar, cito, novamente, o artigo que escrevi em conjunto com Fiammetta Bonfigli e Renata Almeida da Costa, na parte em que elencamos as condutas proibidas pelo diploma legal:

a utilização de máscaras, lenços e qualquer forma de evitar identificação; a reunião de manifestantes em frente ao Congresso, o Senado e as Assembleias Legislativas das Comunidades Autônomas da Espanha; o impedimento da atividade de qualquer autoridade do Reino, a ofensa à Nação Espanhola (e a seus símbolos, como a bandeira); e a não-colaboração com as forças de seguranças para prevenir crimes.

Trata-se de o Direito impondo uma realidade para a qual a sociedade já se antecipou. É uma disputa perdida. Não é? Para mim, o fato mais marcante dos últimos tempos é o que ocorreu na semana passada na Espanha. Tendo em vista a vigência da Lei da Mordaça, como continuar as manifestações? Usando holografias. Pasmem. Vejam o vídeo aqui. A primeira manifestação social holográfica ocorrida no mundo. Star Wars e Jetsons é passado. A realidade superou a ficção.

E agora, José? Como o Estado Espanhol criminalizará a conduta? O ato é atípico? O que a Corte Constitucional vai dizer? Eu não sei. Mas a minha felicidade em perceber, novamente, que a sociedade se antecipa ao Direito, é imensa. Claro. Alguma emenda será colocada na Lei aduzindo que manifestações holográficas serão proibidas. O que fazer, então, quando isso ocorrer? Confesso não saber. Mas é certo que o Direito não conseguirá dar conta disso, exceto seja pensado de modo contrafático.

E enquanto isso? Acho que vou assistir a alguma série futurística do Netflix ou na Internet (também posso procurar por literatura não-virtual alternativa) para me antecipar aos fatos sociais, visto que não é no Direito que eu conseguirei isso. Ou, posso voltar a meus antigos LPs do Kraftwerk (nem pensar em download-), e redescobrir o futuro, pois

Mesmo as maiores estrelas

Mudam a si mesmo no espelho

 ( The Hall of Mirrors)


GermanoGermano Schwartz é Diretor Executivo Acadêmico da Escola de Direito das FMU e Coordenador do Mestrado em Direito do Unilasalle. Bolsista Nível 2 em Produtividade e Pesquisa do CNPq. Secretário do Research Committee on Sociology of Law da International Sociological Association. Vice-Presidente da World Complexity Science Academy.                                                                                                                                                                                                                                                                                              


Imagem Ilustrativa do Post: Falcon // Autor Desconhecido // Sem alterações Disponível em: http://fiqueligado.com.br/single-noticias/index/9864/1/saiba_quais_serao_as_datas_dos_filmes_de_star_wars.html

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