Hobbes e o Novo Código de Processo Civil: matar o Leviatã? Reflexões sobre o Garantismo e a Teoria dos Precedentes

03/04/2015

Por Alfredo Copetti Neto e Hermes Zaneti Jr.  – 03/04/2015

Nesta coluna, o que nos toca é, em primeiro lugar, uma afirmação proferida por Thomas Hobbes, em seu Leviatã; posteriormente, esboçamos, a partir dela e da compreensão do Garantismo Jurídico (GaJ), questionamentos sobre os precedentes judiciais no Código de Processo Civil e sua aplicação no direito penal e no direito civil em sentido amplo (não penal).   

A clássica a firmação de Hobbes diz o seguinte: O que faz a lei não é essa iuris-prudentia ou sabedoria dos juízes subordinados, mas sim a razão deste nosso homem artificial que é o Estado, e seu mandato.

Nossa questão, na perspectiva garantista, assim se coloca: qual o papel dos precedentes hoje no direito penal e no direito civil em sentido amplo?

Evidentemente o papel da teoria dos precedentes é reforçar o garantismo em sua dupla acepção: a) no direito penal significa a tutela dos bens jurídicos penalmente relevantes e do direito penal mínimo, no marco das normas constitucionais que definem os direitos fundamentais de liberdade, mediante a “reserva de código” e uma “jurisprudência” menos fragmentária,[1] com garantia de igualdade e certeza na aplicação da pena para atingir aos seus fins sociais; b) no direito civil lato sensu representa  garantir racionalidade, mediante a universalização das decisões, e a partir daí igualdade, racionalidade, previsibilidade, segurança jurídica e maior efetividade na prestação jurisdicional. A legalidade penal exige um maior rigor do legislador na reserva de lei para o estabelecimento de tipos penais; a legalidade civil exige do legislador uma maior abertura para incluir situações que não foram ainda previstas, mas que igualmente serão merecedoras de tutela.[2] Para cada postura uma forma de pensar nos precedentes. Perceba-se que os precedentes tanto no direito penal como no direito civil servem como auxílio na redução da discricionariedade do juiz. A discricionariedade do juiz decorre no positivismo da distinção entre texto e norma e a consequente interpretação na aplicação do direito.

Sem dúvida o papel do legislador na formação de tipos penais claros e precisos não deixa de ser relevante diante da virada hermenêutica. Neste sentido é correto falar em definição de espaços entre a política e a atividade judicial no direito penal nos termos de uma actio finium regundorum: “[...] somente respeitando a estrita legalidade penal a política pode salvaguardar o próprio papel legislativo e reduzir a discricionariedade judicial, vinculando o juiz com a sujeição somente à lei.”[3]

Como é justamente esta legalidade estrita que preserva a independência do poder judicial e do Ministério Público é correta a afirmação que “[...] somente tal redução [ao mínimo penal] pode impedir, no largo prazo, a sujeição do Ministério Público ao controle político e, ao mesmo tempo, salvaguardar a separação de poderes.”[4] Somente a redução ao mínimo penal poderá eliminar a acusação de uso político do direito penal pelo Ministério Público, que tem na lei o escudo contra a pessoalização das suas ações, a quebra de sua imparcialidade e o clientelismo dos poderes políticos.

Outra é a situação do direito civil em sentido amplo (civil, consumidor, meio ambiente, comercial, administrativo etc.). O direito civil não está submetido a reserva de lei; o direito administrativo igualmente não (excetua-se o direito administrativo sancionador e o direito tributário), revela-se no direito penal mais fortemente esta limitação, decorrente exatamente da sua diferente aproximação do problema do arbítrio judicial. Enquanto nos dois primeiros é a imparcialidade do juiz que funciona como garantia da aplicação justa do direito, imparcialidade vinculada ao conhecimento do Direito, mas também e principalmente, a ausência de interesse pessoal direto (terzietà). No direito penal a imparcialidade é assegurada pela aplicação da lei penal, com todas as garantias da legalidade estrita, ou seja, o direito reduzido na sua máxima potência a formulação sintática da norma.

Por outro lado a técnica legislativa penal precisaria ser revisada. O legislador não é menos subordinado do que os juízes, ambos são subordinados ao limite da lei e da norma constitucional, os princípios do direito penal na Constituição são princípios também para o legislador. Justamente por isso a doutrina propugna a “reserva de código” no direito penal como forma de evitar o risco de regressão pré-moderna.[5] Seria inimaginável nesta quadra da história termos uma jurisdição penal criativa de delitos, confiada ao juiz. Evidentemente que isso não ocorre nem mesmo nos países da tradição de common law.[6]

Assim, por “reserva de código” Luigi Ferrajoli entende um verdadeiro projeto de refundação do direito e do processo penal de matriz iluminista, como substituição ao princípio da simples reserva de lei, “entendendo-se com essa expressão o princípio – de cunho constitucional – segundo o qual nenhuma norma pode ser introduzida em matéria de delitos, penas e processo penal, se não através de uma modificação ou uma integração – aprovadas com procedimento qualificado – do texto do Código Penal e do Processual”. Essa garantia deveria ser constitucional e “se trataria de uma garantia meta-legal dirigida a colocar a mesma legalidade penal ao reparo da incontinência e da volubilidade do legislador. Baseando-se nela, o Código Penal e o Código Processual se configurariam como textos normativos exaustivos e por sua vez exclusivos de toda a matéria penal, dotados de coerência interna e de sistematização e, por tanto, de uma acrescida capacidade reguladora, acessíveis ao cidadão como critérios de conduta racionais e críveis. Disso resultaria ainda um incremento da certeza, também uma redução da área do direito penal, de maneira concordante com seu papel de extrema ratio, como técnica defesa de bens e direitos fundamentais que de outro modo não poderiam ser tutelados.”[7].

Precedentes que ao reconstruírem o ordenamento jurídico permitam maior racionalidade e universabilidade das razões de decidir e servem para diminuir a discricionariedade do juiz penal e do juiz civil em sentido amplo. A auxiliam a evitar que leis inconstitucionais, reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal como tais, mas em controle difuso, continuem a ser aplicadas contra o réu no processo penal, forçando-o a recorrer até o STF. Na mesma medida densificam cláusulas constitucionais como o direito fundamental à saúde.

O CPC/2015, Lei nº 13.105, criou um rol de precedentes que serão obrigatórios para todos os juízes e tribunais (art. 927 e incisos). Este rol não se restringe aos precedentes em matéria civil, pois o CPC é a norma geral de processo, aplicando-se subsidiaria e supletivamente ao processo penal (art. 15, CPC/2015 c/c art. 3º, CPP). Com o novo Código também as decisões dos tribunais serão fontes primárias do direito. Essas decisões afastarão as leis penais quando essas forem inconstitucionais, com força normativa, por força da nova lei. Quer dizer, essas decisões serão formalmente vinculante, não importando se os julgadores de piso concordam ou não com o seu conteúdo.

Voltamos a Hobbes: o Leviatã não morre, muda. As decisões serão também baseadas na razão artificial, argumentativa, e seu controle também dependerá da interpretação dos homens. Antes de tudo, os próprios tribunais superiores deverão respeitar as suas próprias decisões para serem respeitados pelos demais. Isso já ocorre no common law, com mais garantias para o cidadão e para a sociedade.

A independência dos juízes e tribunais dependerá cada vez mais de decisões com caráter universalizante, aplicáveis para todas as situações similares, deixando de lado os casuísmos que a “jurisprudência” estimula e fazem dos nossos tribunais uma loteria. Em tese, como o direito penal somente se aplica para os casos futuros, os únicos precedentes que irão surpreender o réu serão decisões mais benéficas, protetivas de seus direitos fundamentais (princípio da irretroatividade).

Por essas razões não há como objetar o princípio da legalidade a uma teoria dos precedentes. O legislador começa a se tornar, também, um delicado problema, tanto quando o juiz, à garantia do princípio da legalidade. O maior inimigo do princípio da legalidade penal hoje não é o juiz, é o legislador. Um modelo de precedentes para o processo penal ajuda a controlar a sua irracionalidade.


 

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Notas e Referências:

[1] CADOPPI, Alberto, Il Valore del Precedente nel Diritto Penale, p. XIII.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Legalidad civil y legalidad penal. Sobre la reserva de código en materia penal, p. 226.

[3] Muito embora defendamos que a interpretação seja ineliminável do processo de aplicação do direito, a observação da doutrina é absolutamente compatível e pertinente com um modelo de realismo moderado e responsável na interpretação jurídica. Assim, por evidente, se temos melhores leis, teremos mais segurança e estabilidade do direito, mais certeza na aplicação e menor arbítrio judicial. FERRAJOLI, Luigi. Legalidad civil y legalidad penal. Sobre la reserva de código en materia penal, p. 228; FERRAJOLI, Luigi. Dei Diritti e delle Garanzie: Conversazione con Mauro Barberis. Bologna: Il Mulino, 2013.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Legalidad civil y legalidad penal. Sobre la reserva de código en materia penal, p. 228.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Legalidad civil y legalidad penal. Sobre la reserva de código en materia penal, p. 229.

[6] MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. 3ª ed. The civil law tradition: an introduction to the legal systems of Europe and Latin America. Stanford: Stanford University Press, 2007, p. 125.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Legalidad civil y legalidad penal. Sobre la reserva de código en materia penal, p. 229/230.


Alfredo Copetti Alfredo Copetti Neto é Doutor em Direito pela Università di Roma, Mestre em Direito pela Unisinos. Cumpriu estágio Pós-Doutoral CNPq/Unisinos. Professor PPG-Unijuí. Unioeste e Univel. Advogado OAB-RS.)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         


 

Hermes Zanetti Jr. é Mestre e Doutor pela UFGRS. Cumpriu estágio Pós-Doutorado na Universidade de Milão. Professor Adjunto da UFES. Promotor de Justiça no ES.                                                                                                                                                                                               

        


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