História das ideias jurídico - penais parte III: a legitimação discursiva do poder político

29/09/2015

Por Salah Khaled Jr. - 29/09/2015

Leia a parte I aqui.

Leia a parte II aqui.

Como venho sustentando desde o princípio desta série experimental de colunas, a modernidade não assinala a epopeia de triunfo da racionalidade sobre a barbárie, mas em grande medida, o surgimento de técnicas, instrumentos e aparatos discursivos que garantiram a continuidade de uma história que expressa uma sucessiva vitória dos poderosos, no sentido denunciado por Walter Benjamin.[1]

Narrar a gradativa constituição dos pressupostos do saber jurídico-penal moderno e com isso revelar seus limites genéticos – que o tornam tão suscetível aos usos e abusos anteriormente referidos – é a pretensão que a anima a discussão aqui proposta, pois é um requisito necessário ao esforço de desconstrução que deve ser empreendido para extirpar da narrativa jurídico-penal os impasses discursivos que impedem que ela exerça sua função subversiva dos desígnios do poder punitivo.

Se o século XVII trouxe novos sentidos às questões perenes Deus, natureza, homem e história, é evidente que não seria diferente com a questão referente à sociedade e sua organização política, muito ligada à questão do homem. Como refere Baumer, a "[...] criação de um esprit géométrique, levantou, por sua vez, problemas sobre a natureza humana; no entanto, consciencializou ao mesmo tempo o homem do seu próprio poder, não só para compreender e controlar a natureza, mas também para organizar a sociedade num plano mais racional, e possivelmente para submeter a história a seus desígnios".[2]

Nesse sentido, não parece possível compreender o desenvolvimento do pensamento político moderno sem atentar para o contexto no qual se deu a sua gênese, no século XVII: como refere Baumer, "[...] surgiram novas formas de considerar a questão do conjunto social e político, e também novas ideias, tais como a soberania, o estado secular, os direitos do homem e o governo como uma estrutura racional".[3] Tais ideias se desenvolveram a partir de três eixos: a justificação e o protesto contra o absolutismo e a ideia de política como ciência, ou melhor ainda, de ciência social animada pelo esprit géométrique, que resultava na tendência para estabelecer verdades universais na política, como na própria matemática.[4]

A busca pela exatidão e regularidade que despontou no século XVII – como forma de superação dos conflitos sociais – alcançou seu ápice no século XIX, contribuindo decisivamente para o surgimento do direito moderno. Os desenvolvimentos teóricos com base nas premissas geométricas são verdadeiramente fundantes do direito positivo, uma vez que revelam a gênese da pretensão de regulação e normatização do mundo através de um catálogo de todos os eventos possíveis, que é um dos pressupostos do esforço de codificação desenvolvido no século XIX. A inspiração na geometria é visível em vários autores do período. Segundo Baumer, Leibniz provavelmente tinha mais fé na matemática do que qualquer outra pessoa no século XVII e empregava seu método "[...] não só para determinar as verdades mais gerais, por exemplo, da jurisprudência e do direito internacional, mas também para resolver os problemas políticos [...]".[5]

As transformações sociais e políticas deram vazão à concepção de delito como declaração de inimizade ao poder soberano. Essa transformação no tratamento dos fenômenos outrora regulados na dimensão das tradições germânicas se aprofundou com o estabelecimento dos Estados Absolutistas e com a defesa dos privilégios da nobreza e do clero, face aos perigos representados pela burguesia ascendente e pelo campesinato insurgente. Em suma, o aparato de dominação feudal foi redimensionado de forma centralizada, para garantir a continuidade da supremacia da nobreza e do clero. Para atingir a satisfação desse objetivo era necessária uma nova dimensão de controle, exigida pela queda do feudalismo. O rei passava, dessa forma, a ser um garantidor da manutenção daquele ordenamento social, como elemento central da nova anatomia política então configurada.

Nesse contexto, não é por acaso que no pensamento político do século XVII predominavam as ideias de soberania e centralização do poder, em oposição à divisão de poderes entre o rei, a Igreja e a feudalidade, conforme a teoria política medieval. Já no século XVI pode ser encontrada em Bodin a definição de soberania como o poder político supremo investido naquele cujos atos não podem ser invalidados por qualquer outro poder humano. Bodin foi o grande sistematizador da teoria do direito divino dos reis, que afirmava que a soberania do rei decorria diretamente da vontade divina, o que fazia com que o rei não estivesse submetido à vontade do povo, da aristocracia e mesmo da própria Igreja. Uma vez que somente Deus poderia julgar um rei que não é justo, qualquer tentativa de deposição do rei seria contrária à vontade de Deus e, logo, uma heresia. Portanto, o rei dispunha de livre disposição sobre o direito de punir. A teoria tinha como fundamento a concessão divina de poder terreno ao rei, de forma semelhante à concessão de poder espiritual para a Igreja.

Espinosa também acentuava o poder soberano, quer o seu detentor fosse um ou muitos, ou todo o corpo político. Como assinala Baumer, no contexto do século XVII o absolutismo – no sentido de autoridade soberana incontestável – era uma resposta diante da possibilidade de anarquia, em um período de guerras religiosas e civis.[6] No entanto, somente os defensores do direito divino e Hobbes levaram ao ponto extremo o direito de punir que essa noção de soberania implicava.

A teoria do direito divino dos reis era a filosofia política dominante no continente, uma vez que as ideias de Hobbes – embora incitassem muita reflexão e debate – eram “[...] demasiado não convencionais para dominarem uma grande audiência”.[7] Ainda que a teoria do direito divino não fosse inteiramente nova, havia sido reelaborada para afirmar que os reis não apenas governavam pela graça divina, mas também que os reis eram os autores e criadores das leis, que nem por isso deixavam de ter caráter divino. Além disso, somente os reis tinham o poder soberano, que não podia ser dado a outros, além de não ser possível resistir a eles, sob que circunstância fosse. Segundo Baumer, com o deslocamento proposto, a teoria passava a acentuar mais os deveres do que os direitos dos indivíduos. [8] Para Bossuet, a monarquia absoluta constituía a única alternativa verdadeira contra a anarquia: a qualquer outra forma de governo faltavam o poder ou a santidade para refrear as paixões diabólicas do homem.[9]

Bossuet demonstra que o discurso muda, mas o sentido pouco se modifica: se as premissas do poder divino exigiam a conformidade do homem aos ditames da fé para que não se entregasse às suas paixões, o pensamento moderno estrutura nova dicotomia, agora entre razão e emoção, e afirma a racionalidade como meio de contenção dos perniciosos excessos humanos. Em outras palavras, o sentido último do discurso moderno não se distancia tanto do pensamento antigo quanto muitas vezes se supõe.

Curiosamente, como refere Baumer, Thomas Hobbes, o maior teórico do absolutismo no século XVII, era persona non grata, tanto na corte francesa como na inglesa. Mesmo que o direito de exercer o governo em sua teoria fosse aceito, não havia concordância quanto ao meio de adquiri-lo, que efetivamente continha o germe do liberalismo.[10] É nesse sentido que paradoxalmente – eis que defendia o absolutismo – Hobbes pode ser considerado como um dos pensadores que funda o pensamento político moderno. Como assinala Baumer, o problema era o elemento liberal da filosofia política de Hobbes: a origem do governo no consentimento dos indivíduos com direitos naturais, principalmente o direito à vida e à defesa. Além disso, "o absolutismo que Hobbes defendia era também contestado porque não existia nele o direito divino, nem qualquer coisa que não pudesse aplicar-se a qualquer forma de governo, monarquia ou outra".[11]

Hobbes considerava-se inventor da ciência política, não sendo ela mais velha do que sua própria obra. Valendo-se do método matemático, a geometria significava para ele – como para Descartes e muitos outros do século XVII – a certeza da demonstração, avançando passo a passo, do problema mais simples para o mais complexo.[12] As premissas geométricas são muito fortes no pensamento de Hobbes, e sinalizam com várias ideias que foram posteriormente incorporadas por Beccaria, o que reforça a tese da continuidade discursiva em oposição ao suposto rompimento completo com a barbárie anterior. Como assinala Baumer, "Hobbes chamou ao Estado ‘um homem artificial’ e esta metáfora talvez mais do que qualquer outra, faz ressaltar o verdadeiro aspecto moderno de sua ciência política".[13] Como refere o autor, "[...] Hobbes imaginou o Estado como uma construção racional, não feito por Deus nem pela história, mas pelo homem (embora o homem não o pudesse ter evitado, por causa de suas necessidades imperiosas ou movimentos)".[14]

A anatomia política desenhada por Hobbes prescinde por completo do elemento dogmático-religioso que até então tinha se mostrado imprescindível para a fundamentação do poder soberano.De fato, esse elemento moderno da teoria de Hobbes, aliado ao contrato social por ele estabelecido, explicam porque sua teoria era de difícil aceitação no contexto do século XVII e demonstra um dos postulados da história das ideias: as ideias estão para além dos seus autores, pois têm uma irradiação que extrapola suas intenções originais. Nesse sentido, Hobbes inadvertidamente contribuiu para o desenvolvimento de um processo histórico que se chocava com suas próprias convicções. É precisamente nesse sentido que Lovejoy destaca que "uma das ironias instrutivas da História das Ideias é que um princípio introduzido por uma geração a serviço de uma tendência ou estado de ânimo filosófico congenial a ela com frequência prove conter, de maneira insuspeita, o germe de uma tendência contrária – a ser, em virtude de suas implicações ocultas, o destruidor daquele zetgeist a que tinha decidido prestar auxílio".[15]

O elemento liberal da teoria de Hobbes claramente sustenta essa afirmativa. A existência de elementos comuns entre Hobbes e Locke demonstra o quanto a sua teoria inovava em relação às premissas da economia de poder estabelecida. Para Baumer, "Locke, o liberal, partilhou esta concepção com Hobbes, o absolutista – até certo grau, porque Locke é um pouco ambíguo neste ponto. Locke deriva os sistemas políticos, não só de homens racionais, que concordam uns com os outros, mas também da lei da natureza, que distingue da vontade humana. A lei da natureza, na verdade, só podia ser conhecida pela 'luz da natureza', isto é, uma combinação entre as impressões sensitivas do homem e a razão. Mas isto tinha de ser descoberto, e não feito; Deus era seu autor. Esta era a concepção tradicional da lei natural, que tornava impossível a soberania moderna, ou pelo menos a ideia de lei como fiat do soberano".[16]

Aceitando-se a interpretação de Baumer, isso significa dizer que o pensamento de Hobbes era mais laico do que o de Locke, o que certamente pode parecer surpreendente para aqueles que creem que os sistemas de pensamento possam ser absolutamente coerentes com o sentido que posteriormente lhes é historicamente atribuído.

Se Hobbes é um autor muitas vezes renegado pela grande narrativa jurídico-penal[17], o mesmo não pode ser dito de Locke, que é verdadeiramente paradigmático de toda uma tradição liberal de Estado, na qual se inclui o Direito Penal moderno. Categorias como a secularização e a tolerância, assim como o direito de resistência do cidadão diante do Estado costumam reportar-se a um núcleo de pensamento liberal por definição, do qual Locke é a principal matriz.

No entanto, a intenção aqui proposta está muito distante do estabelecimento das virtudes do contratualismo de Locke enquanto aparato discursivo apto a limitar o poder punitivo. Pelo contrário, ainda que o autor certamente represente uma abertura diante dos sistemas de pensamento fechado que fundamentam a anatomia política absolutista, existem limites claros à radicalidade de seu pensar.

É preciso dizê-lo de forma bem clara: Locke acolhe o direito de punir e o integra à sua narrativa, garantido-lhe nova fundamentação ao mesmo tempo que propõe alguns limites ao seu exercício. Mas são limites que se mostram absolutamente insuficientes em função dos fins que o próprio autor propõe para a sociedade política – atrelados à mítica promessa de segurança –  e que inclusive instalam discursivamente a antinomia – que posteriormente seria constitutiva do Direito Penal – entre os fins de prevenção e garantia.

Na próxima semana esclarecerei essa provocação diretamente nas fontes primárias. Com a palavra, John Locke e Thomas Hobbes. O open beta continua na próxima coluna.

Grande abraço e até lá!


Notas e Referências:

[1] Ver BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

[2] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. pp.47-48.

[3] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.117.

[4] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. pp.117-118. Como refere Baumer, "quer o apelo fosse para as Escrituras, para a razão, para a natureza ou para a história, continuaria a haver fé nos modelos ideais e nas soluções finais dos problemas políticos – uma fé que persistiu pelo século XVIII adentro". BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.119.

[5] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. pp.134-135. As ideias de Leibniz sobre crime e castigo não alcançaram muita difusão e estão dispersas em vários trechos de sua Teodicéia. Para Leibniz, assim como para Platão, a punição faz parte de um princípio de harmonia que governa o mundo, cabendo a ela restaurar tanto na comunidade como no criminoso a predominância de idéias de origem divina, o que leva a um conceito semelhante ao de ressocialização, ainda que a ideia de intimidação também esteja presente.  Para Leibniz a justiça não deve residir nas opiniões variáveis da humanidade e uma das formas mais eficazes de castigo é o desprezo do criminoso pela comunidade, que ele compara à excomunhão cristã. BAR, Ludwig Von. A history of continental criminal law. New Jersey: The Lawbook Exchange Ltd., 2007. pp.409-410.

[6] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. pp.119-120.

[7] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.120.

[8] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.120.

[9] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.123.

[10] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. pp.124-125.

[11] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.125. [12] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.134.

[13] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. P.135.

[14] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.135. Hobbes referia a existência de dois modos de constituir um corpo político: um por instituição arbitrária de muitos homens reunidos, que é como uma criação a partir do nada, pela vontade humana; o outro por compulsão, que é como se fosse uma geração fora da força natural.

[15] LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Palindromo, 2005. p.286.

[16] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.137.

[17] O que certamente não é o caso de Ferrajoli, que sustenta muitos argumentos com base em Hobbes.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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