História das ideias jurídico - Penais parte II: a secularização do conhecimento e a descoberta do poder do discurso científico

22/09/2015

Por Salah Khaled Jr - 22/09/2015

Leia a parte I aqui.

Leia a parte III aqui.

Na coluna anterior estabeleci as bases teóricas da análise preliminar que desenvolverei nesta série sobre a formação genética do discurso jurídico-penal moderno. Como eu referi anteriormente, trata-se de uma pesquisa em curso e que é propositalmente socializada com intenção de colocar os argumentos em discussão.

Uma vez que a condição inicial para a análise foi preenchida na semana passada, posso iniciar o esboço histórico dos séculos XVII e XVIII no âmbito da formação do pensamento moderno. São dois séculos decisivos para o surgimento não só do Direito Penal, como do próprio Direito como conhecemos hoje.

O leitor menos paciente poderá pensar que uma análise histórica é perda de tempo. E de fato, é comum que seja assim em discussões jurídicas. Mas eu já era historiador antes de ser jurista e creio que isso me auxilia a desenvolver uma análise histórica pertinente. Caso você decida dar uma chance para a estratégia de enfrentamento do problema que proponho aqui, creio que não ficará decepcionado: a importância de uma compreensão adequada da modernidade para os juristas não pode ser subestimada e esta etapa inicial é imprescindível para a compreensão do discurso sobre jus puniendi, contrato social e teorias da pena que enfrentarei posteriormente.

Ao discutir a formação do pensamento moderno, Baumer demonstra como a partir do século XVII lenta e gradualmente um novo sistema de mundo – conforme foi chamado por Galileu – se impôs diante da então majoritária teoria greco-cristã. Com o advento dessa significativa inovação, o rompimento com a visão de mundo fechada do medievo ganhou novos elementos: se as Cruzadas já haviam representado uma primeira abertura e o descobrimento do Novo Mundo (com a comprovação por Colombo de que a Terra não era plana) colocou em questão a cosmovisão medieval, a ideia de que a Terra não era o centro do universo produziu efeitos ainda mais devastadores sobre o fechamento do sistema de mundo escolástico.

No entanto, ainda que de forma ambígua, essa inovação resolvia alguns impasses para os próprios Antigos, o que explica a sua difusão. Como aponta Lovejoy, sempre houve, para a imaginação, certa incongruência entre a posição central de Deus na metafísica medieval e a posição periférica do Empíreo na cosmologia medieval; e o maior mérito do novo sistema, aos olhos de Kepler, foi que ele eliminava essa incongruência, colocando no coração do universo sensível o corpo que mais naturalmente poderia ser considerado o símbolo ou a contrapartida física dos atributos da Divindade, ou mais especificamente, da Primeira Pessoa da Trindade, a fonte de toda luz e calor, o Sol. O sistema de Kepler é tão fechado quanto o anterior: o Sol é análogo do Deus Pai, a esfera das estrelas fixas é contrapartida do Filho e a região intermédia de planetas é atribuída ao Espírito Santo.[1] Lovejoy afirma que com essa inovação, a história terrestre e a vida humana ficavam privadas da importância atribuída pela cosmologia medieval. No entanto, essa concepção se adequava mais aos propósitos da edificação religiosa, pois tornava o homem consciente de sua insignificância: uma vez que ele era considerado mera parte da natureza, isso poderia prepará-lo melhor para caminhar humildemente a Deus. A reflexão de Lovejoy explica porque tais ideias foram aceitas em círculos ortodoxos no século XVII.[2] Curiosamente, o autor aponta que foi depois da Terra ter perdido seu monopólio celestial que seus habitantes começaram a encontrar maior interesse no movimento geral dos acontecimentos terrestres e, pouco tempo depois, vieram a falar das conquistas reais e potenciais de sua própria espécie, mesmo que essa importância tivesse sido relativamente reduzida.[3]

As ideias que decorreram dessa e de outras aberturas discursivas desencadearam um processo de aceleração do ser rumo ao devir, que fez do fluxo rei, como já afirmava Heráclito. Desse modo, os séculos seguintes foram de profundas mudanças na cosmovisão europeia.  O processo de transição decorrente dessas mudanças causou rupturas na concepção de mundo medieval, que considerava a natureza como um fantoche cujos cordéis eram puxados por seu artífice: o Criador.

Nesse sentido, se Copérnico já havia rompido com o velho dualismo da Terra e do Céu, tão caro à cosmovisão medieval, a partir do que foi escrito por astrônomos e cientistas físicos como Copérnico e Galileu e de filósofos como Descartes, Bacon e Espinosa, surgiu uma nova concepção de mundo, como máquina ou relógio.[4] No centro da nova concepção está a ideia de que uma vez criada a máquina, ela funciona sem necessidade de interferência por parte do Criador, pois basta a si mesma. Trata-se de uma concepção de Deus do sétimo dia, que se encontra em descanso e ausente, após o ato de criação.[5] Essa visão difere radicalmente da concepção de mundo como teatro de marionetes, que se vincula à ideia de providência e de condução permanente da história pelo Criador, na qual Deus é verdadeiramente onipresente.

A ideia de uma divindade onipresente predominava por completo no medievo, sendo que todas as ameaças a ela foram enfrentadas de forma ferrenha pelos defensores da visão de mundo antiga, como bem mostram os problemas que Galileu – portador de uma mentalidade moderna em gestação – enfrentou junto à Santa Inquisição, assim como a condenação de Giordano Bruno, seguidor das ideias de Copérnico (queimado vivo em 1600).[6]

No século XVII se instala o caos, com grande questionamento de referências e abalo na cosmovisão dominante. Não é exagero afirmar que o mundo finito do medievo foi destruído por completo.[7] De certa forma, o cenário do século XVII lembra a desorganização do final do século XX. Não é por acaso que Baumer refere que o devir "[...] é uma concepção explosiva que fragmenta os universos ou, na sua forma moderna mais avançada, nem sequer permite sua formação".[8] Essa perspectiva mostrou-se angustiante para muitos, como foi o caso de Pascal. Para ele, a visão do infinito não era motivo de alegria, mas de opressão: ele insistia nela porque apequenava e humilhava o homem, evidenciando a desproporção entre o que existe e o que ele é.[9] Lovejoy assinala que Pascal fez um uso seletivo da ideia de infinidade de mundos: se valeu dela para apequenar e humilhar o homem, mas propositalmente ignorou a suposição – corrente em seu tempo – de que esses mundos fossem habitados.[10]

É importante destacar a ruptura que representa a visão de mundo moderna em relação à visão de mundo antiga: há uma grande diferença entre uma natureza que funciona teleologicamente de acordo com a condução do seu arquiteto e a ideia de natureza enquanto máquina que funciona de acordo com leis invariáveis, modelo que gradativamente vai se impondo como padrão científico da modernidade. É precisamente nesse sentido que o esprit géométrique implicava uma leitura matemática do mundo: Galileu explicitamente afirmava que o universo era um grande livro escrito na linguagem da matemática.[11]

A busca pela uniformidade que um mundo regido por leis exatas poderia oferecer não era sem razão de ser: diante de um contexto no qual a Europa encontrava-se sacudida por grandes disputas religiosas, buscava-se a ordem e a estabilidade, que poderia ser atingida através de um novo elemento de coesão, dado pelo pensamento científico, que conformava uma geometrização do mundo.[12] Como refere Baumer, "a crise intelectual dos princípios do século XVII [...] pôs tudo em dúvida, tanto o macrocosmo como o microcosmo, o corpo político e o próprio conhecimento. A resposta para a crise era não só a nova filosofia, mas a filosofia que podia, ao mesmo tempo, restaurar e reconciliar; proporcionar princípios permanentes e universais, novos se necessário, com os quais os homens podiam contar e concordar, após um século, o século da Reforma, de terríveis debates tanto religiosos como filosóficos. A necessidade de vencer a dúvida e "transcender a controvérsia" explica muito do pensamento do século XVII: a procura da verdade objetiva que transcenda as mercas certezas subjetivas; o apelo à "razão", não só em ordem à dúvida, mas também para reunir, de novo, o mundo; a tentativa para impor regras e leis em tudo, desde a Natureza à sociedade e à arte".[13]

Daí o sucesso de Newton, em virtude da estabilidade do seu sistema, estruturado em torno de leis da natureza: havia movimento, mas em leis imutáveis e permanentes. O novo sistema de pensamento triunfa quando a ciência começa a delimitar que o conhecimento sobre o mundo material cabe a ela. Dessa forma, vai expulsando a teologia, a qual cabe tratar da fé e, assim, afasta as explicações providencialistas, configurando um processo de secularização que atinge o seu ápice no século XVIII e se consolida no século XIX. Trata-se de uma mudança que – pelo menos em teoria – deveria ter representado a superação das práticas punitivas inquisitórias por um novo modelo, no qual o poder punitivo finalmente seria limitado em benefício do homem.[14] No entanto, ele atravessou todo esse processo de agudas transformações e encontrou nova fundamentação, sobrevivendo praticamente intacto aos inúmeros mecanismos discursivos concebidos para limitá-lo. Em outras palavras, o triunfo gradativo da ciência não efetivou a construção do paraíso na Terra.

Para Baumer, o aspecto mais radical da revolução do pensamento no século XVII foi a nova concepção de conhecimento que ela construiu, que passou a ser considerada como verdadeira e que implicava, sobretudo, na substituição da meta contemplativa por um fim utilitário. Como refere o autor, "essa perspectiva utilitária estava em desacordo com as tradicionais concepções do conhecimento, aristotélica e augustiniana, que salientavam o conhecimento ou a sabedoria em si". [15]

Com essa inovação surgia a possibilidade de pensar os problemas desde uma perspectiva utilitária, não vinculada necessariamente ao âmbito teológico da moral, o que trouxe reflexos significativos para as práticas punitivas: a nova perspectiva de conhecimento que surgiu no século XVII encontrou expressa acolhida no século XVIII na obra de Beccaria, Dos Delitos e das Penas, na qual o utilitarismo é mais do que evidente.

Para Baumer, a revolução científica foi, entre outras coisas, um juízo sobre a história, que fixou no espírito das pessoas a ideia de leis da natureza invariáveis e seguras, além de exigir uma atitude crítica e mesmo desdenhosa para com as realizações intelectuais do passado.[16] Da ciência baconiana e cartesiana se deduzia que o presente conhecia mais do que o passado, o que segundo Baumer deu coragem aos Modernos para afirmar sua superioridade sobre os Antigos.[17] A afirmação de superioridade implicava na assunção da capacidade para revelar a verdade sobre as coisas. Segundo Foucault, "há dois ou três séculos, a filosofia ocidental postulava, explícita ou implicitamente, o sujeito como fundamento, como núcleo central de todo o conhecimento, como aquilo em que e a partir de que a liberdade se revelava e a verdade podia explodir". [18]

A partir do desenvolvimento de uma finalidade utilitária, o conhecimento passou a adquirir cada vez mais um sentido instrumental, expressão de um anseio de domínio que conduziu a uma noção de saber como poder, fazendo do que era proposto a libertar uma nova forma de oprimir. Como reflete Baumer, "[...] entre cientistas e filósofos naturais, a ênfase incidia mais sobre o poder – o sentido do poder que os seus novos conceitos e métodos lhes davam".[19] O poder discursivo e argumentativo que começou a ser desenvolvido no XVII – sob a armadura da ciência – é o poder que será tramado juntamente com o poder político no século XIX, conferindo novas formas de fundamentação à presentificação do poder político através do processo e do castigo. Segundo Gauer, "a ciência moderna ligou a investigação das forças da natureza à utilidade das mesmas para beneficiar a humanidade. O campo científico passou a ser pensado como possibilidade de progresso e por meio dele (do progresso), ideou-se a emancipação definitiva e total da humanidade, ainda submersa no platônico mundo das sombras. A civilização das luzes estendeu-se por todos os continentes; da Europa chegou o progresso, progrediram as ciências na Inglaterra, Alemanha e outros países".[20]

Dessa forma, o progresso surgia como categoria chave do pensar moderno, que irradiando suas luzes sobre um novo mundo que o homem estava apto a conhecer e dominar, acenava com a possibilidade de construção do paraíso na Terra. Baumer destaca que Bacon "falou de uma época nova da ciência, que abriu perspectivas para o homem controlar e dominar o mundo e, consequentemente, deslocar a ênfase da corrupção para o poder do homem".[21] Nesse sentido, tanto Espinosa como Descartes compartilhavam da crença na natureza racional do homem e na capacidade da razão para refrear as paixões.[22] O pensamento moderno inventou  uma nova imagem do homem, como ser racional: Galileu não pôs limites ao espírito humano e previu progressos seguros na compreensão das leis da natureza.[23] Como refere Gauer, "movimentos como a Reforma e o Protestantismo libertaram a consciência individual das instituições religiosas e da igreja e colocaram o indivíduo diretamente sob os olhos de Deus. O Humanismo colocou o homem no centro do universo e as revoluções científicas fizeram do indivíduo um decifrador dos mistérios da natureza. O Iluminismo, por sua vez, conferiu ao homem um racionalismo desvinculado do subjetivismo; esse indivíduo racional liberto do dogma e da intolerância tinha diante de si a totalidade da história humana para ser dominada".[24]

Dito isso, a ciência não triunfou rapidamente sobre a teologia, o que explica parcialmente a permanência das práticas inquisitórias e da identificação entre crime e pecado até o apagar das luzes do século XVIII. Foi um processo lento de gênese, que nada teve de imediato. O afastamento inicial da teologia no século XVII não significava negação da existência do Criador. Não é como se Bacon ou Descartes fossem ateus; ao contrário, não refutavam a ideia de criação do mundo por Deus. Apenas consideravam que cabia à ciência, e mais propriamente à filosofia, explicá-lo. A intenção era delimitar um campo de saber, sem invalidar a teologia e sua autoridade, o que seria impensável na época. Nesse sentido, Bacon expressamente condenou a "mistura selvagem" das coisas divinas com as humanas.[25] Para ele, não devia ser dado à fé mais do que lhe pertencia, o que retardava o desenvolvimento científico. Bacon foi um dos autores que mais explicitou o ideal de cumulatividade do conhecimento científico, como saber que avança e progride em oposição ao saber estático da tradição. [26] No seu sistema de pensamento, ainda que a teologia conservasse parte de seu prestígio, perdeu a superioridade sobre a ciência.  Espinosa era inflexível na rejeição da teleologia providencial. Para ele, tratava-se, sobretudo, de demarcar um campo de atuação, humano e divino. De forma semelhante, Descartes reduziu a atividade divina no mundo, embora não a tenha eliminado por completo. Para ele, Deus conservava o mundo, ainda que não interferisse em seu funcionamento.[27] Tais desenvolvimentos estavam longe de ser unânimes e resultaram em célebres polêmicas: Newton foi criticado por Leibniz em função de ter mantido Deus nos bastidores, como encarregado de limpar e reparar o relógio do mundo, caso fosse necessário. Para Leibniz, o relógio havia sido feito de forma tão perfeita que seu funcionamento dispensava assistência divina. Sendo assim, desprezava inteiramente qualquer concepção que fizesse da máquina do mundo algo tão imperfeito que Deus fosse obrigado a limpá-la e remendá-la a todo tempo. Para Leibniz, embora Deus pudesse fazer milagres, não os fazia. [28]

Inovações como essas são importantes: delimitaram fronteiras e construíram a possibilidade de laicização das práticas punitivas, o que inegavelmente é um nítido avanço, mesmo que a ruptura no âmbito do castigo e do processo inquisitório não tenha sido tão significativa como usualmente se pensa. Hobbes, que provavelmente contribuiu mais para o desenvolvimento dos Estados de Direito modernos do que ele próprio desejaria, foi um dos críticos mais ferrenhos do providencialismo e até mesmo da crença religiosa. Ele foi um dos poucos que ousou relacionar a religião ao medo e à ignorância, afirmando claramente que se tratava de superstição, ou então, um decreto do soberano no interesse da ordem pública. Mas por outro lado, não desidentificou inteiramente crime e pecado, ainda que seu pensamento representasse nítido avanço nesse sentido, pois respeita a liberdade de consciência: "por feito ou por palavra, um crime é um pecado que consiste em cometer um ato que a lei proíbe ou em omitir um ato que ela ordena. Dessa forma, todo crime é um pecado, mas nem todo pecado é um crime. A intenção de roubar ou matar é um pecado, mesmo que nunca se manifeste por meio de palavras ou atos. Isso porque Deus, que vê os pensamentos dos homens, pode culpá-los por eles. Antes de aparecer alguma coisa feita ou dita, onde um juiz humano possa descobrir a intenção, não pode falar-se em crime".[29]

Mesmo para pensadores profundamente cristãos, a ciência implicava laicização do conhecimento. É o caso de Locke, que preocupou-se com a existência de Deus e a justeza do cristianismo – embora fosse acusado de unitarismo e considerado ameaça à fé cristã – mas refutou o direito divino dos reis.[30] Locke procurou distinguir o dever do governo civil e o da religião, "[...] convertendo assim o Estado num mero poder secular sem jurisdição sobre a salvação das almas".[31] Com isso abriu espaço para a superação da confusão entre religião e direito e logo, da igualação do crime com o pecado, algo que somente se concretizaria com o advento do Direito Penal moderno.[32]

No século XVII, a figura de Deus não havia sido inteiramente expulsa do mundo, mas ele começava a parecer menos como cenário de peregrinação natural do homem e mais como campo para exercício do poder humano.[33] De acordo com Baumer, com algumas exceções, os filósofos do século XVII queriam ter o melhor de dois mundos: isto é, manter Deus, em alguma medida, como criador e garantidor da certeza científica e, ao mesmo tempo, reduzir o seu providencialismo no interesse da capacidade preditiva da ciência.[34]

No contexto do século XVII estabelecia-se aos poucos uma dicotomia entre os que acreditavam em um Deus que havia criado o mundo, mas não o governava e os que acreditavam em uma providência divina que conduzia a história, perspectiva que estava cada vez mais cercada de descrédito.

No final do século XVII, o Bispo Bossuet escrevia que temia uma nova era de "intemperança do espírito", a seguir uma época de obediência a Deus e ao Rei. Ele observava uma grande batalha que estava a se preparar contra a religião.[35] O secularismo avançava: a teologia era cada vez mais limitada a uma esfera comparativamente restrita da fé e da moral. Para Bossuet, não se devia falar em fortuna ou sorte na história: antes disso, "a longa cadeia de causas particulares que fazem e desfazem impérios depende das ordens secretas da Divina Providência".[36] Bossuet percebia que uma época chegava ao seu fim e lamentava pela sorte das instituições que defendia, mesmo que no século XVII a teologia ainda não tivesse sido posta em questão, como aconteceu no século XVIII.[37]

Obviamente, tais perspectivas significavam visões bem diversas sobre o que poderia representar a responsabilidade de cunho penal. A visão de mundo como máquina ou relógio acenava com a possibilidade de superação do paradigma inquisitório, pois colocava indiretamente em questão o elemento religioso-dogmático que lhe era central. É nesse sentido que o discurso detinha potencial subversivo e, portanto, representa um momento de abertura, ainda que tenha apenas se concretizado parcialmente na transição para o Estado de Direito.

O ser, enquanto elemento de permanência, ainda não havia sido sobrepujado pelo devir, mas havia um processo de secularização da história em curso. O século XVII pode ser considerado o primeiro século moderno; os homens se pensavam como diferentes em relação aos antigos e começava a mudar a forma com que o mundo era lido e apreendido. Segundo Baumer, "Descartes era um moderno que desrespeitava os sistemas filosóficos do passado, aristotélicos ou escolásticos, um defensor da ciência de Galileu".[38] No entanto, buscava ordem e clareza "[...]e acabou por encontrar ‘regras’ e ‘princípios’ (títulos das suas obras mais importantes) para governar, respectivamente, o pensamento e o universo".[39] Ou seja, permanecia a crença na existência de um universo estável, ainda que por vezes assumisse novos aspectos, como no cartesianismo ou no newtonianismo.[40] Para Gauer, "Descartes faz uma longa argumentação sobre o método em todo o seu famoso Discurso, mas afirma, em determinado ponto, que 'Os cegos veem com as mãos', isto é, o modelo de visão do autor é o tato, é este o limite em que a própria concepção de razão criada pelo autor se desenvolveu. Não por acaso criou-se a ideia de que o homem seria capaz, por meio da experiência, da observação, da investigação, de decifrar a natureza em geral e a sua própria. Esse conhecimento, no entanto, embora não tivesse por premissa eliminar a religião, buscou substituir várias autoridades, totêmica, mítica e religiosa, por uma autoridade laica estruturada no direito natural moderno".[41]  O processo em questão causou um rompimento discursivo que na verdade perpetuou o mesmo estado de coisas: um mito jusnatural teocêntrico foi substituído por um mito jusnatural antropocêntrico, que também forneceu embasamento ao direito de punir, ainda que sob outras premissas. Segundo Gauer, "a criação do paradigma da modernidade, cuja base se encontra na obra de Descartes, permitiu o surgimento do dualismo, corpo-espírito, pessoas e coisas, lícito e ilícito, objetividade e subjetividade, razão e emoção. Desta forma estruturou-se todo o pensamento moderno, que criou a crença na possibilidade de se buscar a perfeição. Essa busca, no entanto, esbarrou na própria concepção de apreensão da razão". [42]

Disposta dessa forma, fica evidente a estrutura binária que embasa o núcleo do pensamento moderno: uma estrutura radicalmente tendente à simplificação da realidade, que não pode ser traduzida em categorias que reneguem a sua inerente complexidade. O pensamento moderno é um pensamento binário e, em última análise – apesar da crença no potencial ilimitado da razão – um pensamento binário é um pensamento simples, independentemente do grau de sofisticação que apresente.  Não é por acaso que Edgar Morin preocupa-se com o que ele chamou de pensamento simplificador. Para ele, é preciso atentar para os estragos que os pontos de vista simplificadores têm feito, não apenas no mundo intelectual, mas na vida.[43] Como aponta Lovejoy, "assim, por dois séculos, os esforços feitos para aprimorar e corrigir as crenças, as instituições e a arte foram, em geral, governados pela suposição de que, em cada fase de sua atividade, o homem devia conformar-se tanto quanto possível a um padrão concebido como universal, descomplicado, imutável e uniforme para todo ser racional. O Iluminismo foi, em suma, uma época dedicada, pelo menos em sua tendência dominante, à simplificação e à padronização do pensamento e da vida – à sua padronização por meio de uma simplificação".[44]

O posterior expurgo das categorias religiosas em um pensamento que foi afirmado como neutro, objetivo e imparcial nada fez para alterar essa insuficiência: pelo contrário, talvez até a agravou, pois sob o pretexto de construção de sistemas herméticos e autorreferentes, a realidade muitas vezes foi esquecida em nome da suposta coerência intra-sistêmica das categorias propostas.

No Direito isso é facilmente perceptível, talvez mais do que em qualquer outra área do conhecimento. Nas próximas colunas veremos boa parte das consequências do processo histórico estudado até agora. O open beta continua na próxima semana.

Grande abraço e até lá!


Notas e Referências:

[1] LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Palindromo, 2005. p.107.

[2] LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Palindromo, 2005. p.123.

[3] LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Palindromo, 2005. pp.142-143.

[4] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.66 e ss.

[5] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. Lisboa: Edições 70.p.94.

[6] Lovejoy refere que “apesar dos escritos de Giordano Bruno, foi Descartes quem acabou colhendo o mérito das teorias sobre a infinidade e pluralidade de mundos, causando um certo esquecimento dos pioneiros da nova cosmografia”. LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Palindromo, 2005. p.125.

[7] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.74.

[8] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.39.

[9] LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Palindromo, 2005. p.127. Para Pascal, “um mundo infinito é demasiado grande para ser exaustivamente investigado por nós; nem uma única parte dele pode ser realmente entendida, uma vez que “todas as suas partes são tão conectadas e interligadas umas às outras que é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo ou o todo sem conhecer todas as partes””. LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Palindromo, 2005. pp.128-129. Nesta passagem Pascal não percebe outra coisa senão a própria complexidade do real, motivo pelo qual foi resgatado contemporaneamente por Edgar Morin.

[10] LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Palindromo, 2005. p.129.

[11] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70,1977. P.68. Em nota de rodapé na mesma página Baumer refere que “Compreensivelmente, Galileu foi acusado, assim como Descartes, de abstração, isto é, de selecionar e isolar, para o estudo, apenas os elementos da natureza que podiam ser quantificados e medidos”.

[12] Como refere Baumer, “a revolução científica de Galileu e de Newton, na verdade produziu sua própria espécie de ser; ensinou às pessoas a pensarem em termos de leis invariáveis e modelos mecânicos ‘perfeitos’, mas também fomentou um tipo de espírito destrutivo dos ‘ídolos’ tradicionais, incluindo os seus próprios”. BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.38.

[13] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.52.

[14] Para Ferrajoli, a separação entre direito e moral “[...] é o resultado de um longo processo de secularização do direito penal desenvolvido no século XVII pelas doutrinas jusnaturalistas de Grócio, Hobbes, Pufendorf e Thomasius e que atingiu a sua maturidade com os iluministas franceses e italianos, bem como com as doutrinas expressamente positivistas de Jeremy Bentham e de John Austin”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p.29. p.172.

[15] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.48.

[16] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977.Lisboa: Edições 70.p.152.

[17] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.153.

[18] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003. p.10.

[19] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.77.

[20] GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. p.46.

[21] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.108.

[22] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. pp.110-111.

[23] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.114.

[24] GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. pp.39-40.

[25] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977.Lisboa: Edições 70. p.86.

[26] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.49.

[27] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.95.

[28] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.95.

[29] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2002. p.215.

[30] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977.Lisboa: Edições 70.p.87.

[31] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. P.130.

[32] Locke explicitamente defendeu a necessidade dessa distinção em sua Carta sobre a Tolerância. LOCKE, JOHN. Carta sobre a tolerância. São Paulo: Hedra, 2007.

[33] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.80.

[34] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.96.

[35] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977.Lisboa: Edições 70.p.85.

[36] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977.Lisboa: Edições 70.p.142.

[37] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977.Lisboa: Edições 70.p.84.

[38] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.56.

[39] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.56.

[40] BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: volume I séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p.58.

[41] GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. pp.40-41.

[42] GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. p.40.

[43] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. p.83.

[44] LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Palindromo, 2005. p.290.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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