No estágio atual dessa sociedade permeada pelo consumo o contrato é ressignificado tanto na práxis quanto na teoria.
Muito além de um mero instrumento econômico-jurídico para aproximação de vontades é instrumento de acesso a direitos materializados em bens e serviços de consumo (práxis) e por conta disso deve ser observado também a partir de uma perspectiva complexa, externa ao direito privado e ao próprio Direito, considerando toda a ambiência em que partes e objeto contratuais estão inseridos.
Dentre esses direitos materializados, está a saúde prestada em forma de serviços preventivos e curativos pela iniciativa privada por meio dos planos de saúde suplementar.
Daí surge a provocação objeto deste texto: prestam-se esses contratos de consumo como reais instrumentos de trânsito jurídico para o acesso à saúde, direito, aliás, fundamental?
Primeiro: definamos o que é saúde.
Ainda que sejamos forçados pelo senso comum a responder tal indagação a partir de um aparente antônimo – a doença – saúde é muito mais que não estar acometido de enfermidade, é o completo estado de bem-estar físico, mental e social.
Esta é a definição consagrada pela Constituição da Organização Mundial da Saúde, em 1946.
Esta, ainda que não expressamente, é a ideia adotada pela Constituição Federal de 1988, que se propõe a densifica-la como direito de todos e dever do Estado por meio de um verdadeiro sistema constitucional-sanitário, o Sistema Único de Saúde (SUS).
Trata-se de um sistema que visa a superação do modelo sanitário até então vigente centralizado, desestatizado e curativo por meio de princípios como o (a) da descentralização da tomada das decisões, do custeio e das atribuições, (b) da integralidade articulada e contínua de prestação preventiva e curativa, seja caráter individual e coletivo, (c) da participação da comunidade no controle e desenvolvimento do SUS e (d) da hierarquização da divisão de atribuições dos entes responsáveis pelas prestações sanitárias segundo o maior ou menor nível em complexidade.
Eis, ainda que brevemente, o projeto constitucional sanitário, modelo com quase trinta anos que por conta de questões orçamentárias e principalmente de vontade política pouco se desenvolve, tendo toda sua estrutura concentrada demasiadamente em grandes centros urbanos e diretamente dependente da estrutura privada.
Especialmente por essa deficiência, desenvolveu-se o mercado dos planos de saúde suplementar, regulado desde o ano de 1998, contando, inclusive com uma agência reguladora, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Como um serviço de consumo livremente comercializado através de um dos pilares do direito civil moderno, o contrato, submete-se às regras próprias desse ramo do direito. Em outras palavras, desde a formação do instrumento da relação até a resolução dos eventuais conflitos judiciais daí decorrentes, incidem as regras e a principiologia do Código Civil e especialmente do Código de Defesa do Consumidor.
Ocorre que hoje esse mercado, com quase 50 milhões de usuários, prestando eminentemente serviços de caráter curativo e de forma individualizada e ainda utilizando-se de uma estrutura que também presta serviços públicos, é inevitável que cause reflexos que atinjam diretamente o projeto sanitário-constitucional[1].
Feita a apresentação da saúde real e ideal, já podemos reformular nossa provocação inicial: não seriam esses contratos de consumo instrumentos de intensificação de uma saúde exclusivamente curativa e individualista totalmente desconexa e prejudicial ao projeto sanitário-constitucional?
A resposta parece ser afirmativa e dentre um sem-número de possíveis enfrentamentos desta problematização escolhemos a que mais nos toca, relativa aos limites epistemológicos do direito privado.
Quando da necessidade de intervenção do Direito Privado para solução de conflitos sociais como os decorrentes dos contratos de saúde suplementar, nota-se haver uma redução brutal da complexidade dos casos, direcionando-se a solução sempre numa direção eminentemente patrimonial e individualista.
Na construção dessas “soluções” jurídicas – seja pelo Poder Judiciário, seja pelo enfrentamento do tema pela literatura jusprivatista – é evidente uma forte presença de uma racionalidade ainda ligada àquela que sustentava a codificação: como centro hermético e completo do Direito Privado.
Ainda que os “operadores” analisem a temática a partir de diversas fontes normativas, o método de produção do pensamento reveste marcadamente de uma posição autorreferente, implicando, consequentemente, num fechamento cognitivo para a transversalidade. É dizer que há uma abertura para percepção de referências (a) horizontais, porque considera sem maiores dificuldades a pluralidade das relações privadas, havendo para solução dos casos concretos a utilização das regras e da principiologia de outras fontes normativas que não apenas o Código Civil, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, e de referências (b) verticais, porque também considera normas supra legais como a Constituição e até mesmo tratados internacionais ainda que preponderantemente aqueles dispositivos relativos a direitos individuais, faltando-lhe a transversalidade, que estaria numa consideração da ideia ampla de saúde, como a informada pelo OMS e pelo próprio texto constitucional, muito desenvolvida no âmbito do direito sanitário e nas ciências biomédicas.
Sem essa percepção, o Direito Privado como desaguadouro da solução de conflitos envolvendo planos de assistência à saúde reproduz uma inaceitável ideia de saúde como produto, como mercadoria, como coisa.
Por isso e para a realização do projeto constitucional é que convocamos o desafio de superar a lógica patrimonial-individualista do Direito Privado com a percepção ampla do sistema social, com especial atenção às lógicas público-sociais por meio de um extremo rigor e auto-crítica na construção do pensamento sob pena de estarmos reproduzindo a falsa consciência da modernidade.
Notas e Referências:
[1] Por exemplo: “Senado aprovado perdão de R$2 bilhões a planos de saúde (Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/04/15/senado-aprova-perdao-de-r-2-bilhoes-a-planos-de-saude.htm).
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