Hipocrisia do discurso neoliberal e o desprezo pelo Direito Penal

29/03/2015

Por Juliano Keller do Valle - 29/03/2015

Dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, ao mesmo tempo. O discurso do movimento da Análise Econômica do Direito (Law and Economics), dá a dimensão que a regra da impenetrabilidade da química, pode ser aplicada quando se descobre o propósito da intersecção entre Direito e Economia. Tal movimento teve como origem a matriz ideológica de Hayek e Friedmann, que levaram a bandeira de palavras como “capital”, “liberdade” e “mercado” até as últimas consequências, estabelecendo muito além do discurso econômico a divisão entre o bem e o mal, como também a imensa multidão de seguidores[1].

O mantra defendido por ambos economistas criou contornos contrários às ideias do Estado do Bem-Estar, vez que o Estado seria a principal barreira do mercado e a liberdade a que se propunha, justificando, assim, a minimalização máxima possível do Estado. O raciocínio perpassava, pela necessidade de se deixar que o mercado tomasse conta da sociedade, livremente, praticando, assim, a justiça social de que a revolução keynesiana e seu Estado forte havia fracassado.

O livre mercado e sua nova proposta liberal atingiu sua hegemonia mundial nos anos 1980 - especialmente nos EUA da era Reagan -, momento de ápice da doutrina pregada anos anteriores por Friedman, e desta forma, o capitalismo passou a ser a ideologia hegemônica após a queda do muro de Berlim, uma espécie de “[...] relógio celestial... uma obra de arte tão irresistível que faz pensar nos célebres quadros de Apelles, que pintou um cacho de uvas tão realista que foi capaz de atrair os pássaros que vinham bicá-lo[2].

Que não se duvide da influência desta “velocidade do processo” tão cultuada nos dias atuais. Paulatinamente é incutida a padronização de procedimentos na forma da Súmula Vinculante, e a sua indefectível impossibilidade de recursos[3] como modelo de julgamentos. A necessidade de que a decisão penal deve ser reflexiva, seja na (re)construção dos elementos fáticos, no debate equilibrado entre as partes e principalmente na manutenção de um processo em contraditório é abandonada por completo em detrimento de uma súmula eficiente que vincula todos os demais casos no obsceno cântico único da eficiência:

[...] O processo é um campo de percepção em que a velocidade acelerada impede a aquisição dos significantes necessários ao debate democrático das pretensões de validade. A compreensão do processo como procedimento em contraditório, nos moldes de Fazzallari, possui um custo de tempo, dinheiro, incompatível com a lógica da eficiência. Logo, o estudo da economia da velocidade – dromologia -, com Virilio, Ost e Gauer é algo que não se pode ser deixado a latere, sob pena de se enconbrir um dos significantes mestre da sociedade contemporânea.

O caminho do direito é agora construído a partir da velocidade sedimentada pelos apupos dos custos de um julgamento apenas simbólico (súmulas e julgados remansosos, uniformizados)[4] e não mais significantes fundamentados nos ideais de um processo cuja entrega aos princípios Constitucionais, e de um juiz natural blindado à qualquer tipo de pressão política e verdadeiramente garantidor no processo penal. Pelo contrário, a preferência é daquele que se identifica com o inquisidor de um julgamento “fast-food” bem ao gosto dos ‘thinks thanks’ neoconservadores.

O lugar do (novo) Juiz é a de instrumento ou coisa, não de personagem que divide a titularidade democrática com os demais atores (Ministério Público e Defesa), com a independência e legitimidade democrática derivada da Constituição[5], manifestado pelo seu compromisso com a totalidade e não com a vontade da maioria[6]. Para a lógica do Mercado, a figura daquele juiz é trocada para a de outro, papagueador e acrítico[7] servil àquele canto das sereias.

Desta forma, é velado o desprezo neoliberal pelo direito – especialmente o penal -, eis que aqueles que passaram a cultuar o mantra do Mercado, passaram, também a cultuar a eficiência econômica pregada e propagada sem qualquer cerimônia por Hayek e Friedman para dentro processo, como se ele – o Direito – fosse produto, coisa e bem negociável de um Estado outrora Social e de Garantias (Bem-Estar), para um Estado Mínimo[8].

A retórica do novo liberalismo econômico encontra a tradução no campo do Direito através do programa da Lei e da Ordem e da maximização do Direito Penal[9]. Seu discurso opta pela rejeição a qualquer proposta baseada em um texto constitucional consistente e legítimo, um Judiciário forte, atuante e pensante, dentro das regras republicanas baseadas nos Direitos Fundamentais – individuais e sociais – para as palavras mágicas de: generalidade de regras, flexibilização, desregulamentação, privatização, etc[10].

O modelo neoliberal utiliza, então, habilmente o Direito Penal (Máximo e Eficiente) como forma veloz de aplicação da lei criminal certeira no âmago do desejo pela punição desenfreada ao inimigo criado e etiquetado (mídia)[11], entre outras palavras, a imposição do autoritarismo cool[12] da faxina de classes e daqueles cujo mercado “darwinianamente”[13] não se interessou.

O processo passa a ser então o meio de aplicação da pena severa através de um processo domesticado à ideologia do Mercado, cada vez mais acelerado e com total desrespeito às regras do jogo democrático[14], da cautela e do respeito às garantias fundamentais inerentes ao processo penal (contraditório) válido pela perspectiva constitucional.                                                                                                                                           


Notas e Referências:

ABREU, Pedro; OLIVEIRA, Pedro Miranda (orgs.). Direito e Processo: Estudos em homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito, 2007.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed, 2006.

KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual e sua conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

MARCELLINO JUNIOR, Julio Cesar. Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa: (des) econtros entre economia e direito. Florianópolis: Habitus, 2009.

MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um Processo Penal Democrático: crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

ZAFFARONI, Emílio Raúl. O inimigo do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

[1] A obra de Naomi Klein estabelece uma exata ideia da ligação espúria do tema com as esferas do poder: “[...] O departamento de economia da Universidade de Chicago, assim como o departamento de psiquiatria de Ewen Cameron na Universidade McGill, estava sob o comando de um homem ambicioso e carismático, cuja missão era revolucionar sua profissão de modo fundamental. Aquele homem era Milton Friedman. Embora tivesse muitos mentores e colegas que acreditavam tão ferozmente quanto ele no laissez-faire  radical, foi a energia de Friedman que deu à escola o seu fervor revolucionário. Becker se recorda da faculdade nesses termos: ‘As pessoas sempre me perguntavam: ‘Por que está tão animado? Vai sair com uma bela mulher?’ Não, eu respondia, vou para uma aula de economia!’ Ser aluno de Milton era uma coisa realmente mágica”. KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 66.

[2] KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 67.

[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p.62.

[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.64.

[5] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual e sua conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, 7ª ed., p. 118

[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, p. 220.

[7] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 247.

[8] “A sociedade, anota Miranda Coutinho, seguindo a indicação de Hayek e Friedman, procedeu a um câmbio epistemológico, abandonando a relação causa efeito para engolir a eficiência como parâmetro de atuação, erigida até a princípio constitucional (Constituição da República, art. 37, caput). Confundindo efetividade (fins) com eficiência (meios), grudando falsamente os significantes como sinônimos, na ânsia de melhorar a realidade, muitos atores jurídicos caem na armadilha do discurso neoliberal, ao preço da exclusão (sempre vítimas, ecoa Dussel) e da Democracia, por se vilipendiar necessariamente, os ‘direitos e garantias’ constitucionais, rumo ao que se chama ‘Mercado Eficiente’, com inexoráveis efeitos no modelo de aplicação do Direito, como defende ingênua e astutamente a escola da Análise Econômica do Direito”. MORAIS DA ROSA, Alexandre. Direito de Família ‘Total Flex’. ABREU, Pedro; OLIVEIRA, Pedro Miranda (orgs.). Direito e Processo: Estudos em homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 28.

[9] “Em outros termos, ao Estado social mínimo deve corresponder um Estado penal máximo, que dê respostas às desordens provocadas pela desregulamentação econômica, pela pulverização do trabalho assalariado e alarmante aumento da pobreza”. MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um Processo Penal Democrático: crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 27.

[10] MARCELLINO JUNIOR, Julio Cesar. Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa: (des) econtros entre economia e direito. Florianópolis: Habitus, 2009, p. 137.

[11] “Doravante, os meios de comunicação indireta da atual mídia terciária têm o poder de construir a realidade (entendida como limites simbólicos) através da representação de um espectro simbólico e efêmero de um duplo do mundo, na medida em que a (in)existência da ‘realidade’ está relacionada ao grau em que é comunicado, veiculado e transmitido, com velocidade. A isso Eugênio Raúl Zaffaroni logrou chamar de fábrica da realidade. [...] No âmbito do sistema penal, os meios de comunicação exercem um importante papel ideológico, pois sem eles não seria possível induzir os medos no sentido desejado [...]. Atualmente, experimenta-se a era do expansionismo penal(izante). Há verdadeira sobreposição do discurso alarmista (de terror e de risco – Beck) acerca da ameaça da criminalidade sobre a ótica substancialmente democrática na solução dos inevitáveis conflitos sociais. O combate aos crimes e aos criminosos parece – ilusoriamente – encerrar o grande desafio da sociedade contemporânea”. MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um Processo Penal Democrático: crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 27.

[12] “Enquanto os Estados Unidos fazem dele uma empresa que ocupa milhões de pessoas, desviando recursos da assistência social para o sistema penal contribuindo para a resolução do problema do desemprego, na América Latina o sistema penal, longe de proporcionar emprego, serve para controlar excluídos do emprego, tornar-se brutalmente violento e as polícias autonomizadas e em dissolução sitiam os poderes políticos. O discurso ‘cool’ se insere nesta região em sistemas penais invertidos, com prisões superlotadas de gente sem condenação, onde o aumento de escalas penais não representa penas mais longas, mas sim mais prisioneiros preventivos (porque se impede o desencarceramento) e o direito de execução penal é, em grande medida, uma utopia, inclusive formalmente aplicável a uma minoria quase insignificante de presos”. ZAFFARONI, Emílio Raúl. O inimigo do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 74.

[13] Ou a “Lei do mais forte”: “[...] Os sujeitos, segundo o modelo neoliberal, não podem depender do estado que, pelo mercado e a seleção natural dos mais capazes, pode naturalizar as desigualdades sociais”. MORAIS DA ROSA, Alexandre; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 41-42. 

[14] “As regras do jogo democrático devem ser garantidas de maneira crítica e constitucional, até porque com ‘Direito Fundamental’ (e as normas processuais o são) não se transige, não se negocia, defende-se, deixou assentado Ferrajoli. Dito de outra forma, as regras do jogo devem ser constantemente interpretadas a partir da matriz de validade Garantista, não se podendo aplicar cegamente as normas do Código de Processo Penal, sem que se proceda, antes a necessária oxigenação constitucional”. MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um Processo Penal Democrático: crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 73-74.


julianoJuliano Keller do Valle é Mestre em Ciência Jurídica (CPGD/UNIVALI). É Professor de Direito Processual Penal na Univali e IES/FASC e da Especialização em Ciências Criminais do CESUSC. Email: julianokellerdovalle@gmail.com                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           


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