É um princípio da ética cristã que o homem não deve se ver condenado naquilo que aprova (Rm 14: 22). Parece ser bastante pertinente sua aplicação ao intérprete do Direito, sobretudo, àqueles que podem ser traídos pela própria experiência, prestígio e habilidades técnicas. Sem dúvidas, é o que mais se aproxima do erro típico daquele que acaba condenado naquilo que aprova. Neste texto, pretende-se mostrar que há uma questão que deve ser respondida pelos doutrinadores e constitucionalistas desse país com respeito ao texto constitucional: o que diz o art. 142 é mais ou menos importante do que o que se diz sobre ele? O que justifica uma tentativa de investigar e responder a essa questão é justamente o fato de se notar, nesses últimos tempos, que essas duas alternativas expressam duas perspectivas hermenêuticas opostas: uma que busca dar primazia ao intérprete na sua sofisticada e engenhosa tarefa de relativizar o conteúdo do texto constitucional enquanto o elogia, o assujeita e o silencia; a outra é aquela que procura honrar o texto constitucional justamente por não permitir que o intérprete use de suas habilidades hermenêuticas de um modo tal que não se veja como um deus, processo de divinização do intérprete proposto por Schleiermacher[1]. A hermenêutica, no entanto, assim como o Direito, é coisa de homens.
Recentemente, o jurista e doutrinador Ives Gandra Martins publicou um artigo em que defendia que cabe às Forças Armadas “moderar os conflitos entre os poderes”[2]. A opinião do eminente jurista, explicitada de forma despretensiosa e com a humildade intelectual típica dos grandes teóricos, funciona como um verdadeiro “efeito borboleta” nas redes sociais e em determinados grupos que nada têm a ver com as Forças Armadas ou com os temas de Direito Constitucional diretamente. O artigo tem o seguinte teor:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Segundo o próprio autor, esse dispositivo confere três atribuições às Forças Armadas: defesa da pátria; garantia dos poderes constitucionais; garantia da lei e da ordem, por iniciativa de qualquer dos três Poderes. Neste ponto, parece que mesmo os meros mortais podem reconhecer que o autor nada diz de contrário ao texto. No entanto, no que diz respeito ao que ele chama de terceira função das Forças Armadas, diz o autor que: “[...] nos últimos tempos” tem surgido uma discussão entre juristas e políticos se essa função corresponderia ou não a uma atribuição outorgada às Forças Armadas para repor “pontualmente” (com destaque do próprio autor) a lei e a ordem”, a pedido de qualquer poder. Note-se, portanto, que o intérprete retira do texto uma das três atribuições dadas às Forças Armadas e a desembrulha em seu contexto atual, não para reafirmar o que se determina no texto, mas simplesmente para mostrar que, como intérprete, é ele quem controla o texto. O resultado, nesse caso, é que o intérprete sabe que qualquer outro intérprete pode segui-lo o exemplo e fazer uma interpretação diferente e até oposta a que ele mesmo fez e suas conclusões serão “verdadeiras” desde que fundamentadas.
Não há dúvidas de que foi-se a fase do positivismo exegético e do juiz, “boca-da-lei”, que estava obrigado a aplicar a lei pois texto e norma eram uma só coisa. Hoje ninguém mais duvida de que a compreensão é um modo de ser e de que somos escravos dessa tarefa interpretativa. Mas o que é exegese? É um conjunto de procedimentos de que se vale o intérprete para extrair do texto o seu sentido verdadeiro. Ou seja, aqueles que fazem “exegese” juram até a morte que não fazem “eisegese” que consiste em introduzir no texto um sentido que ele realmente não tem. Esse mito interpretativo já foi devidamente criticado com o rigor e a seriedade que Hans-Georg-Gadamer pôde empreender na sua tarefa de não somente combater todo relativismo, mas, sobretudo, destruí-lo, como costuma ressaltar o jurista e constitucionalista Lenio Luiz Streck[3] incessantemente; em seus diversos textos. Em outras palavras, jamais houve um intérprete que simplesmente praticou “exegese” de um texto, como faria um mágico ao retirar coelhos de uma cartola. Ele sempre atribui sentido ao texto. Mas isto não significa que o texto aceita qualquer coisa ou que não se deva, antes de dizer qualquer coisa sobre o texto, ouvi-lo, respeitando a sua alteridade. O professor Ives Gandra Martins faz uma declaração interessantíssima, quando afirma:
Minha interpretação, há 31 anos, manifestada para alunos da universidade, em livros, conferências, artigos jornalísticos, rádio e televisão é que NO CAPÍTULO PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA, DO ESTADO E DE SUAS INSTITUIÇÕES, se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, NAQUELE PONTO, A LEI E A ORDEM, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante.
Como leitor, eu poderia ler essas palavras e interpretar que há 31 anos o autor está afiando as garras de um tigre, enquanto tenta convencer-nos a todos de que espera que ele não as use, a julgar como se mostra democrático com aqueles que divergem de suas teses. Mas, definitivamente, não foi isto que ele disse. No entanto, qualquer leitor pode identificar no texto supracitado que o autor dá às Forças Armadas uma quarta atribuição que inexiste no texto constitucional: a de ser um quarto Poder, o Poder Moderador. O que Montesquieu diria disto? Aliás, frise-se que é de Montesquieu a expressão “boca-da-lei” referida ao juiz positivista-exegético, impedido de interpretar os textos (ou quis Montesquieu assinalar tão somente que o juiz deveria observar o princípio da legalidade?[4]), numa época em que o paradigma de Estado era o Estado Liberal de Direito, ou seja, não era o Estado Social e muito menos o Estado Democrático de Direito criado por nossa Constituição de 1988. Parece a nós, leitores, que o jurista está, de fato, dando importância à Constituição quando menciona trechos do texto que explicita princípios como “democracia” e “defesa do Estado e de suas instituições”, mas o faz para garantir que a supremacia esteja com o intérprete. Ora, é neste sentido que o intérprete se faz um deus, não me refiro à personalidade do honrado professor, mas ao papel do intérprete que exsurge do seu texto. Nesse caso, a Hermenêutica é reduzida a um método de divinização do intérprete; uma espécie de alquimia logocêntirca como fez Paulo Coelho ao descobrir a fórmula para transformar livro em “ouro”. Há uma verdadeira indústria de livros que promovem teses e doutrinas de exímios e brilhantes profissionais do Direito que se esmeram na arte de reproduzir e perpetuar o que Streck chama de sujeito solipsista (selbssüchtiger)[5]. É isto que parece ocorrer com grandes juristas e intérpretes do Direito quando deixam a condição meramente humana de interpretar[6] para se tornar um outro. A busca pelo “espírito da lei” ou pela “mente do legislador” é só um subterfúgio para transformar um hermeneuta em Hermes, o deus mensageiro cuja mensagem não poderia ser validada pelos homens, que tinham que resignadamente acreditar no que dizia Hermes. Daí a insistência do professor Streck: “[...] Na verdade, nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse acerca do que os deuses disseram”. É isto que dá a Hermes um poder sobre-humano e, portanto, perigoso. Fazer da hermenêutica um processo de transformação do intérprete em alguém capaz de acessar a mente do autor ou a “essência das coisas” é uma sofisticada maneira de tornar o texto grande para que o intérprete seja maior ainda. Esse processo de divinização do intérprete começa, na Modernidade, com o decisionismo kelseniano. No famoso capítulo oitavo da Teoria Pura do Direito[7], o maior jusfilósofo do século XX mostra como defender o Direito Positivo, genericamente considerado, para funcionar sob o modelo de Estado liberal de Direito enquanto dá a certos indivíduos, por serem agentes estatais, o poder de criar o Direito inclusive à revelia da interpretação científica, lógica e correta do texto legal, nada mais é do que o exemplo magistral e, quiçá, insuperável de louvar o Direito, elevando-o ao status de ciência “pura”, segundo o paradigma de cientificidade da época, enquanto dá ao intérprete a primazia, a preeminência, os atributos de um deus. Ora, isso é o que os neoconstitucionalistas brasileiros também fazem, ainda que se digam pós-positivistas, o são somente no que não deveria ser, a saber, por desprezar o direito em sua dimensão estática e sua interpretação como ato de conhecimento; mas, lastimavelmente, perpetuam o positivismo metodológico no que este tem de pior, o de tratar a interpretação como mero ato de vontade – e acrescentaria argutamente o professor Streck: vontade de poder nietzscheana, o último princípio epocal da Modernidade, segundo Heidegger[8]. É claro que o brilho ofuscante desses intérpretes e suas obras, os tornam cada vez mais afiados[9], aprendem uns com os outros; e porque todos brilham fica cada vez mais fácil para eles enxergar casos difíceis e “zonas de penumbra” onde a verdade simplesmente se desvela. Mas como poderão criticar o ativismo judicial que ofusca e ofende a necessária judicialização da política pelo Poder Judiciário, se estão presos no mesmo paradigma que põe o “Sujeito” como senhor onisciente que se nega a submeter-se à impessoalidade de um texto normativo? Tempos sombrios estes onde se precisa defender o óbvio. O professor Thiago Rodrigues-Pereira (2019, p. 111-136)[10], com absoluta clareza e profundidade, sustenta que toda essa herança da metafísica da subjetividade produziu duas marcas no atual contexto jurídico brasileiro, a busca pelo espírito da lei e a busca pela mente do legislador, e isto devido a herança platônica-cartesiana-kantiana de que as coisas possuem um sentido, sendo que lei nunca teve “espírito” e que a vontade do legislador não deve importar mais do que o texto em si. Se o intérprete não consegue enxergar o texto, não vai conseguir enxergar a vontade do legislador. Com o advento da Constituição de1988, nota-se toda uma principiologia capaz de iluminar as supostas “zonas de penumbras”[11] nas quais os intérpretes costumavam brilhar. No entanto, os textos possuem um sentido que não muda facilmente, ainda que os intérpretes deem ao texto, arbitrariamente, o significado que desejar. A única forma, no entanto, para que a Constituição tenha realmente a supremacia na jurisdição e hermenêutica constitucional é pensar o Direito como algo humano, criado pelos homens e para eles, como resposta às perguntas que foram feitas antes e que pode se modificar à medida que a ele fazemos novas perguntas. Ao ler um texto legal ou analisar um caso judicial, pode-se encontrar o sentido correto do texto, a resposta correta para o caso que pode agradar ou desagradar o intérprete, não importa. Os fins não podem justificar os meios, sob pena de desfigurarmos toda a vida democrática e desintegrarmos o Direito (RODRIGUES-PEREIRA, 2019).
Assim, a leitura do artigo 142 da Constituição e de qualquer outro, de modo algum, autoriza a quem quer que seja a encontrar nele o que nele não está. Não há nenhum Poder Moderador e nem uma quarta atribuição dada às Forças Armadas naquele dispositivo. Não há nenhuma “intervenção militar” possível. É mais um mito. Um mito interperetativo. Não podemos deixar de citar aqui as exortações de Gadamer[12] acerca do respeito que se deve ter ao outro e o texto é o primeiro “outro” que pede para ser ouvido. Quando se quer realmente compreendê-lo, devemos estar dispostos a abandonar outras interpretações por mais que nos custe a entender que elas estão equivocadas ou totalmente dissociadas do texto original: “ [...] Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do texto”. (GADAMER, 1999, p. 404). O que devemos, como cidadãos, é compreender e estar atentos ao fato de que a Constituição não é igualmente importante para todos os cidadãos e nem mesmo para todos os seus comentadores. Mas ela é consistente em seus princípios e regras e exige que se tenha compromisso com ela. Portanto, é preciso manter Hermes sob controle e este controle é feito com a força da crítica, com o constrangimento epistêmico e com a convicção que mais do que saber é preciso saber como convém.
Notas e Referências
[1] RUEDELL, Aloísio. Gadamer e a recepção da hermenêutica de Friedrich schleiermacher: uma discussão sobre a interpretação psicológica. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/25528803.pdf Acesso em: 28/05/2020.
[2] MARTINS, Ives Gandra. Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira. Acesso em: 28/05/2020.
[3] Por todos, Verdade e Consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017.
[4] A rigor, Montesquieu escreveu:”[...] Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo tempo clarividente e cega, fosse, em certos casos, rigorosa demais. Mas os juízes da nação são apenas, como dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei” (MONTESQUIEU, 2010, p. 175).
[5] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 4ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2013, p. 17.
[6] Texto recente do professor Lenio Streck sobre a Hermenêutica sustenta que “Estamos condenados a interpretar”. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/hermeneutica-juridica-streck/Acesso em: 28/052020.
[7] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.Trad. João Baptista Machado. 8ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins, 2018, p. 394.
[8] STRECK, op. cit., 2013, p. 12.
[9] Pv 27:17
[10] RODRIGUES-PEREIRA, Thiago. A necessária defesa do óbvio. Rio de Janeiro: Ágora21, 2019.
[11] HART, L. H. O conceito de direito. São Paulo, Editora WMF Martins, 2009.
[12] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. vol. 1. 3ª ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
Imagem Ilustrativa do Post: 484563651 // Foto de: verkeorg // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/verkeorg/25102323896
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode