Hermenêutica, sociedade, cinema e Direito: alegoria entre o filme “mãe!” de Darren Aronofsky e a interpretação do, e no Direito - Por Gustavo Nascimento Tavares

11/10/2017

As artes e as ciências históricas são modos de experimentação nos quais nossa própria compreensão da existência entram diretamente em ação.

Hans Georg Gadamer[1] 

Em meio a uma crise hermenêutica da sociedade contemporânea, em esferas políticas, culturais e jurídicas, estreou nos cinemas o novo filme de Darren Aronofsky (direção e roteiro), com título em português: “mãe!”. Nesta obra, o reconhecido diretor de filmes aclamados como, “Cisne negro”; “O lutador”; “Noé” e “Réquiem para um sonho”, deixa claro seu domínio da linguagem cinematográfica e sua ideia, quase que obsessiva, de causar incômodo ao público, sempre entregando farto conteúdo para reflexão. O filme transmite sua mensagem em densas camadas interpretativas, e também metáforas sobre metáforas, em que a audiência precisa dar sentido ao que está sendo interpretado, diferentemente do que acontece na prática contemporânea, de interpretações rasas e descompromissadas com a investigação dos sentidos de textos, ou obras.

O objetivo desta análise não se fecha nos limites de uma crítica cinematográfica e não contém desfecho sobre a trama do filme, mas sim, pretende utilizá-lo como alegoria para construir uma relação deste com a hermenêutica; e como a interpretação do, e no Direito, feita por juristas, ou não, pode tirar lições sobre isto. As práticas sociais, sejam elas normativas e argumentativas, como o Direito, ou culturais e artísticas, como o cinema e as artes em geral, vivem uma conturbada instabilidade hermenêutica em que as interpretações se colidem, porém, de um modo superficial. Tal fenômeno é perceptível em todos os níveis da sociedade, isto é, a liberdade e a facilidade de emitir opiniões, somada à velocidade da comunicação global são as aparentes causas dessa banalidade. Todos emitem opinião sobre tudo, e absolutamente tudo se torna alvo de interpretação, mesmo que não haja aprofundamento nos temas postos em debate.

Em relação ao filme de Aronofsky, todas as críticas especializadas até o momento, sempre chegam a uma constatação em comum, a de que tal filme não é para todos, ou, não irá agradar o grande público. O porquê desta afirmação reside em uma questão hermenêutica, ou seja, a interpretação hoje em dia tende a ser cada vez mais frívola, com respostas herméticas e entregues sem maiores esforços investigativos, e consequentemente, imersão dos intérpretes nas camadas do (da) texto (obra). Tal cenário se reflete em todas as áreas da sociedade que se desenvolvem a partir da (e na) linguagem.

Em contrapartida, as opiniões contrárias a respeito do filme “mãe!”, se dividem em dois grandes grupos, os que se incomodaram com a visceralidade do filme em transmitir sua mensagem, e os que simplesmente não compreenderam as ideias do filme e ficaram sem explicações sobre as alegorias presentes na obra. Este segundo grupo é o alvo que serve para a proposta deste texto, de ser uma crítica à superficialidade de interpretações, e como isto se reflete no Direito.

Nesse sentido, Darren Aronofsky, se utiliza da linguagem cinematográfica para compor uma história que exige elementos da mais refinada hermenêutica filosófica[2], como por exemplo, (i) a tradição, e a pré-compreensão dos intérpretes (público), ou seja, para compreender é necessário trazer uma bagagem existencial, tanto cinematográfica, quanto cultural, sendo assim, a experiência histórica que se encontra inserida o intérprete é condição para sua interpretação[3]; (ii) a circularidade espiral hermenêutica, que por meio da percepção das partes em contexto com o todo e vice-e-versa, possibilita os horizontes da compreensão, isto é, todo elemento exibido tem um porquê de existir e compõe uma parte da interpretação final, logo, todas as peças da mise en scéne, quaisquer frases do roteiro, tons da fotografia, sincronizam com os sentidos que a obra pretende transmitir; (iii) a dialética construtiva, pois, nesta obra, a resposta não é entregue pronta, existem espaços que somente a interpretação do espectador pode preencher, cabendo a este, fazer testes de verificabilidade se tal interpretação se encaixa nos sentidos da obra, ou não.

A narrativa, deste modo, não reconstrói a História, mas sim, se utiliza dela, para dar vida a uma nova interpretação a partir do ponto de vista de um personagem específico. De outra forma, o diretor não se preocupa em convencer a audiência, mas mostrar a projeção dos horizontes da sua compreensão, considerando: a historicidade de cada espectador; a montagem mental das partes do filme; e a proposta de diálogo, criando espaços a serem preenchidos pelo público, ou seja, o filme se preocupa em fazer as perguntas, dando pistas das respostas, não entregando-as sem exigir esforços dos intérpretes. Por isso, o choque entre a densidade cinematográfica do filme e a superficialidade das interpretações cotidianas causam um fenômeno que pode ser observado como simbologia do que ocorre nas outras esferas sistêmicas da sociedade, como por exemplo, a relação do direito com a interpretação.

Diante dessas circunstâncias, o cinema, assim como o Direito, necessita da linguagem e possui a interpretação como área essencial para sua existência, contudo, tal interpretação nem sempre tem acompanhado as correntes filosóficas pós virada linguística, dentre elas, a hermenêutica filosófica em Hans Georg Gadamer[4]. Nesse sentido, enquanto o cinema possui exemplos de obras que exploram a hermenêutica, quebrando a parede sujeito-objeto e possibilitando uma verdadeira imersão da obra e do sujeito na linguagem, o mesmo quase nunca é visto no Direito, que continua demasiadamente subjetivo, autoritário e centrado no intérprete/juiz, ainda no paradigma filosófico do método.

As decisões jurídicas, são ao mesmo tempo, uma interpretação de um fato social, e um fato social em si, isto é, em um primeiro momento, colocam o juiz-Estado na posição de intérprete criador que profere um texto a partir da interpretação, que em tese, deveria ser resultante do processo com participação das partes, mas frequentemente, costuma ser a manifestação apenas subjetiva dos magistrados. Em um segundo momento, tal texto, produzido por uma fonte social autorizada, em conjunto com as partes envolvidas no processo, carece de interpretação para gerar uma eficácia social legítima. Entretanto, a contemporaneidade tem demonstrado um excesso de trivialidade interpretativa, tanto pelos juízes na interpretação dos fatos, por meio do processo, quanto por meio dos juristas, dos profissionais de comunicação e da sociedade, na interpretação das decisões judiciais.

Nesse sentido, o juiz/Estado, é o sujeito que constrói uma interpretação de um fato e, posteriormente, tal fato é livremente interpretado no cenário social, seja pela comunidade especializada (juristas), ou não (população em geral), todavia, diferentemente de “mãe!”, que se aprofunda em sua mensagem, sendo coerente em sua proposta e revelando seus sentidos à medida que o intérprete mergulha no contexto da obra e utiliza de outros meios para construir a interpretação, como os atores, a mise en scéne, e todos os recursos acessórios; de outro lado, a construção jurídica das decisões judiciais, em grande parte, são inconsistentes, exclusivamente subjetivas, com investigações vagas e rasas na produção do seus sentidos, ou seja, não há preocupação em proporcionar a interpretação por meio da fundamentação, ou alguma sofisticação técnica, que justifique os componentes da decisão e demonstre uma aproximação do sujeito/intérprete ao/aos objeto/fatos no, e pelo processo.

Para Gadamer, em seu estudo sobre hermenêutica, a aplicação e a compreensão constituem um processo unitário e incindível, logo, a investigação é um elemento que permite ao intérprete/aplicador construir a interpretação na medida que este encontra-se imerso aos fatos no, e pelo processo. A construção da interpretação jurídica é a construção da própria decisão judicial, e para isto, os elementos da hermenêutica filosófica são essências (tradição, espiral hermenêutico, dialética construtiva). Assim, decisões judiciais também tem um papel de estabilizar os conflitos sociais e a própria interpretação jurídica, logo, na prática jurisprudencial, tais decisões devem criar uma narrativa, em que o juiz/intérprete, exerça seu papel hermenêutico de investigação, reconstrução e descobrimentos dos sentidos a partir da factibilidade dos casos sub judice.

Consequentemente, após a construção da decisão, sua eficácia social é auferida por críticas, que também necessitam investigação e interpretação na, e pela linguagem, isto é, o intérprete precisa estar dentro do cenário dos fatos para compreender o contexto interpretativo, seja por quem constrói o primeiro fato social (juiz/Estado ou filme), seja por quem recebe este fato e o interpreta (sociedade e público espectador). Logo, o cuidado na interpretação, e a crítica, como atribuição de valor, seja positivo ou negativo, precisa desvelar os sentidos do objeto por meio da imersão do intérprete na obra, ou no texto. Como alguém pode criticar uma decisão judicial sem lê-la ou conhecer a seu respeito, ou da mesma forma, criticar um filme sem procurar entendê-lo, dentro de seu contexto, ou mesmo, sem assisti-lo?

Nesta premissa, a interpretação é por vezes desconstituída de uma profunda compreensão, tornando-se a crítica pela crítica, sem agregar qualquer valor, e desse modo é esvaziada do conteúdo do objeto e torna-se uma exteriorização da subjetividade dos intérpretes tangenciando a superfície. Tal interpretação é extremamente nociva no contexto jurídico, pois, provoca reações a partir das reações, e não a partir do objeto original, que se perde nas próprias opiniões emitidas. Entretanto, o que para o cinema, gera efeitos negativos somente em perspectivas econômicas e artísticas (um filme mal recepcionado pelo público), no direito, causa sérios problemas sociais, com descredibilidade no Poder Judiciário e reações dentro deste, como respostas imediatistas e choque de forças estruturais, o que fere a segurança jurídica, a coerência e integridade do ordenamento.

O filme de D. Aronofsky é usado aqui como alegoria, pela forma com que transmite sua mensagem, ou seja, uma obra que exige a imersão interpretativa para alcançar seus sentidos, o que vai na contramão das práticas vivenciadas recentemente. Tal experiência serve para causar reflexões em como interpretamos e porque devemos conhecer e compreender para poder criticar, seja a interpretação no processo feita pelo magistrado (decisões judiciais), seja a interpretação do processo feita pela sociedade (publicidade e repercussão das decisões judiciais), nas palavras de Gadamer, é preciso deixar o texto (ou obra) nos dizer algo. 

REFERÊNCIAS: 

GADAMER, Hans-Georg. A Atualidade do Belo: A Arte como Jogo, Símbolo e Festa. Tradução de Celeste Aida Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. 

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 3. ed. Tradução por Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997. 

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. 2. ed. Tradução por Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002. 

HEIDEGGER, Martin Ser e Tempo. Tradução revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback; Posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2006.

[1] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 3. ed. Tradução por Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.

[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 3. ed. Tradução por Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.

[3] HEIDEGGER, Martin Ser e Tempo. Tradução revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback; Posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2006.

[4] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. 2. ed. Tradução por Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002.

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