Henri Lefevbre e o Direito – Por Norberto Knebel

20/01/2017

Coordenador: Marcos Catalan

Henri Lefebvre (1901-1991) foi um filósofo e sociólogo francês responsável por ser precursor em três grandes categorias dos estudos marxistas sobre a cidade e a urbanização: A crítica do cotidiano, a produção social do espaço e o direito à cidade.[1] Busco aqui brevemente introduzir esses três conceitos no sentido de identificar possibilidades teóricas no autor para as análises jurídicas das cidades.

Entre as maiores contribuições do pensamento de Lefebvre é o conceito de “sociedade burocrática de consumo dirigido” que é a maior expressão de sua crítica à vida cotidiana. Utilizando-se da dialética marxista, apoiado na obrigação pela totalidade busca identificar no cotidiano a esfera de análise para uma sociedade urbana sob o modo de produção capitalista. A cotidianidade seria o principal produto da sociedade de consumo dirigido. O conceito é a definição da sociedade promovida pela industrialização demonstrando o caráter racional dessa sociedade e os limites dessa mesma racionalidade (burocrática).

A cotidianidade é dominada pela ideologia da propriedade, da racionalidade e do Estado, possuindo representações e ideologias, divididas em um sistema de valores e a ideologia do consumo – conjuntamente da publicidade como ideologia. Sendo o consumo um elemento do imaginário social, o ato de consumir é um ato imaginário tanto quanto um ato real, sendo visualizados sob um aspecto metafórico (“a felicidade em cada bocado, em cada erosão do objeto”) e metonímico (“todo o consumo e toda a felicidade de consumir em cada objeto e em cada ato”).[2]

A teoria da produção social do espaço social indica que o espaço é moldado como reflexo das expressões do modo de produção capitalista, e a análise desse espaço será efetuada a partir da concepção da dialética tríade: (I) o espaço concebido – é ligado diretamente a produção do conhecimento e da ideologia da cidade como concepção das formas espaciais, (II) espaço percebido – são as representações materiais conectadas a percepção sensorial, o que vemos e percebemos e (III) espaço vivido é o espaço das práticas do cotidiano, o local que não é dito. Essa complexificação da visão do espaço reconduz as análises de maneira a enfrentar a reprodução da vida cotidiana sob o capitalismo.

O direito à cidade é o conceito que viria a confrontar as ideias promovidos pela sociologia positivista que reforça a ideia de um Estado planificador para promover a igualdade material das condições urbanas – como transporte e habitação. Sugere uma rejeição aos meios de planificações urbanas já evidenciados por Engels – ao opor-se às soluções burguesas para o problema da habitação. Pois politiza a produção do espaço sob o aspecto de sua própria condição de produção e reprodução estar sujeita às condições sociais capitalistas.

Disse Friedrich Engels em 1873:

É um contrassenso querer solucionar a questão da moradia e preservar as metrópoles modernas. As metrópoles modernas, contudo, somente serão eliminadas pela abolição do modo de produção capitalista e, quando esta tiver sido posta em marcha, as questões que deverão ser tratadas serão de natureza bem diferente daquela de conseguir para cada trabalhador uma casinha que lhe pertença.[3]

Também, Lefebvre aponta que mesmo se a planificação implementada pelo Estado conquistar alguns avanços nas condições materiais de existência dos habitantes, o planejamento urbano evita que as pessoas participem como sujeitos produtores do espaço. E isso passa, necessariamente, pela revalorização dos valores de uso da cidade em detrimento ao predomínio do valor de troca.

Conforme o livro I d’o Capital, o valor de uso estará vinculado às necessidades humanos, vinculado às qualidades e quantidades materiais, sendo inerentemente heterogêneo. Enquanto o valor de troca é quantitativo e homogêneo, medido pelo trabalho socialmente necessário para produção de uma mercadoria, sendo necessário a equivalência da forma mercadoria. Porém, o complexo da mercadoria na teoria do valor de Marx exige a dialética entre as duas formas de valor. O que Lefebvre faz ao sustentar a revalorização do valor de uso é abstrair o conceito da teoria marxista em forma autônoma, algo que não é necessariamente possível no aspecto da economia marxiana[4]. Portanto, não se compromete com toda a teoria da circulação mercantil.

Quando registramos à ampla mercantilização da moradia e a ampliação dos espaços privados – inclusive de segurança e controle penal, quando o direito à segurança já é alinhado à forma mercadoria-, é inevitável enxergarmos a força do valor de troca no momento da acumulação flexível do capital, mudando estruturalmente em nada a forma urbana do predomínio do valor de troca que Lefebvre identifica como o inimigo do direito à cidade.

Elementos como a função social da propriedade e o planejamento urbano das cidades têm falhado em conter as desigualdades e a segregação urbana – mesmo que sirvam como instrumento para tensionar os limites impostos pelo desenvolvimento do Capital às condições urbanas dos espoliados urbanos.[5] Para isso Lefebvre impõe que resta aos trabalhadores a promoção da mudança da sociedade urbana.

Para o Direito – seja administrativo ou privado – restam entender que a cidade e a sociedade urbana detêm formas particulares de produção e reprodução do espaço, ao passo que as tentativas de planificação e solução dos problemas relacionados à questão urbana (transporte, moradia... et cetera) sempre esbarram no desigual acesso aos bens de consumo coletivo, na sujeição às condições gerais de produção capitalista ou na ideologia do crescimento econômico. Tornando necessária uma revolução urbana promovida pelos agentes dos movimentos populares, pois ao que depender da economia política e da planificação promovida pelo Estado, conforme ensinou Lefebvre, não seremos atendidos.


Notas e Referências:

[1] Ver, principalmente: LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. Tradução: Maria Helena Rauta Ramos;  Marilena Jamur. 2ª Edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2001; LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins. 4ª ed. Paris: Éditions Anthropos, 2000; LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Tradução: Sergio Martins. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002; LEFEBVRE, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. Tradução: Alcides João de Barros. São Paulo: Atlas, 1991; LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. Tradução: Rubens Frias. 5ª Edição, 5ª reeimpressão. São Paulo: Centauro Editora, 2015; LEFEBVRE, Henri. O Pensamento Marxista e a Cidade. Tradução: Maria Idalina Furtado. 1ª Edição. Lisboa: Editora Ulisseia, 1972.

[2] LEFEBVRE (1991, p. 102)

[3] ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia. Tradução: Nélio Schneider. 1ª Edição. São Paulo: Boitempo, 2015. P. 80

[4] Teoria presente no capítulo I, ver: MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro I – O processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle.. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

[5] Ver: MELO, Tarso de. Direito e Ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural. 2ª Edição. São Paulo: Outras Expressões, Dobra Editorial, 2012.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Por Verhoeff, Bert / Anefo // Com alterações

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