HENRI LEFEBVRE E O DIREITO III - SOCIEDADE BUROCRÁTICA DE CONSUMO DIRIGIDO

14/09/2018

 Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A partir do estabelecimento do caráter utópico do “direito à cidade” - que requer, fundamentalmente, uma dupla revolução, tanto da vida cotidiana da sociedade como da gestão das cidades - e do fundamento teórico marcado pela produção social do espaço na dialética tridimensional, trago um importante conceito para o entendimento de Lefebvre sobre isso que ele entende como “vida cotidiana”, que marca o pensamento do autor ao apontar a construção social da modernidade urbana e suas consequentes alienações, justificando a obrigação de transformar a sociedade não só pelas estruturas de gestão e planificação, mas dos meios do viver.

Tal conceito se apresenta no obra “A vida cotidiana do mundo moderno” lançada em 1968, dentro dos esboços do pensador acerca da recente e em andamento urbanização da sociedade, em que o trabalho industrial  sob o modo de produção fordista chegava ao seu auge de massificação mercantil, que despertou uma curiosidade sobre o cotidiano - que viria a revelar uma riqueza conceitual - que o autor chama de exploração do cotidiano a partir da filosofia. Dessa forma, o despertar teórico assinalado é o da complexidade acerca daquilo que é cotidiano, para além de uma análise da repetição, mas sim de como se formas homogeneidades e resistências.

A crítica da vida cotidiana é, portanto, a análise de conceitos que apreciam um conjunto social de estratégias de conhecimento e ação, foge de uma análise mecânica dos movimentos, pois mais que descritiva, é a habilidade de caracterizar a sociedade que vivemos - aquela que é motor da cotidianidade, ou como aponta Lefebvre “descobrir a profundeza sob a trivialidade, atingir o extraordinário do ordinário”. A partir disso, o sujeito revolucionário é justamente aquele responsável por recriar, do ponto de vista cultural, o estilo - reorganizando os fragmentos da sociedade após a metamorfose do cotidiano capitalista.

Assim, o autor entende que o cotidiano industrial deixou de ser construído por sujeito - do ponto de vista de sua subjetividade possível - para se tornar um objeto. E sob esse paradigma, o autor clama pela nomeação da sociedade industrial como “sociedade burocrática do consumo dirigido”, porque é um nome que informa a racionalidade do momento, ao mesmo tempo que infere seus limites ao apontar a burocracia, também o objeto de planificação social que é o consumo - planejado na forma dirigida.

Por esse ponto de vista, também, o autor aponta como essa sociedade, de forma dialética, já contém em si sua própria crítica, pois seu funcionamento é eivado de contradições - já que o objetivo dessa sociedade é a satisfação, a necessidade (equiparada ao valor de uso) é comparável a um vazio, que o consumo e o consumidor ocupam. As necessidades acabam pautadas do pela satisfação e pela insatisfação, manipuladas por um jogo que altera substancialmente o valor dessas motivações. Essa lógica de satisfação generalizada que enseja em uma saturação das necessidades - já que não consegue promover um fim fora dela mesma. Algo que Lefebvre compreende como um “mal-estar” burguês.

A economia política capitalista sugere relações sociais constitutivas que subordinam uma classe sobre a outra, mas que o autor não compreende como a estratégia tão somente do crescimento econômico, mas sim de um equilíbrio de crescimento - o desenvolvimento - que é fundamentalmente o motor da urbanização, que dá sentido à industrialização, cria os significados. Um dos dispositivos dessa estrutura é a obsolescência transformada em técnica para tornar o cotidiano rentável, que para o autor também é uma obsolescência da necessidade, já que a manipulação dos objetos em torno de uma efemeridade de suas necessidades reflete justamente o vazio que se encontra o próprio conceito de necessidade e de consumidor.

Portanto, o que Lefebvre indica é que a lógica industrial criou valores calcados em finalidade, organização e eficiência, se considerando racional, porém, o que a vida cotidiana aponta é o contrário: a sociedade é tomada por racionalismo limitado e um irracionalismo fomentados pelo economicismo e o tecnicismo - “técnicos” de um lado enquanto alienantes e vazios de outro. Por isso, é preciso uma reapropriação do ser humano de seus próprios desejos, que está evidente sob as contradições da lógica de consumo que destrói o passado, condiciona-se em satisfação volátil e o tédio. É o caráter decepcionante do consumo, sustentado pela ideologia propagada na publicidade - a satisfação do consumidor e a existência imaginária desses objetos satisfatórios.

Como ponto de partida de uma reflexão, aponto para a possibilidade de assimilação dessa proposta de Lefebvre possamos compreender de forma diferente e crítica alguns fundamentos para as normas de direito do consumidor, como aquelas atreladas à escola da escolha racional que indicam um comportamento na formação de decisão do consumidor - tal qual o Direito que busca estimular ou coibir certas práticas. Mesmo que a partir desses estudos seja possível apontar importantes assimetrias de informação entre fornecedor e consumidor, condicionando a tomadas de decisões equivocadas - sob o ponto de vista do desejo - em Lefebvre podemos dar um passo atrás para dar dois a frente, ao compreender a condição de irracionalidade e o verdadeiro vazio que se encontra o sujeito - justamente por ser consumidor.

            Sob o contexto crítico de Lefebvre, o consumo e as decisões do consumidor estão sempre sob significantes irracionais. Portanto, não há práticas devidamente racionais na prática do consumo, mas sim pretensamente racionais baseadas em fundamentos imaginários de satisfação. Ou seja, por exemplo, o consumo de um produto dito saudável, nada tem a ver com a necessidade de saúde do consumidor, mas sim com um imaginário em que a saúde é satisfatória. Há, na verdade, um agravante inconciliável da condição de vulnerabilidade, tão candente ao Direito do Consumidor.

 

Notas e Referências

BONFIGLI, Fiammetta; KNEBEL, Norberto Milton Paiva. O Direito à Cidade enquanto prática jurídica no neoliberalismo. In: XXVI Congresso Nacional do Conpedi, 2017. São Luís – MA. Anais do GT Direito Urbanístico, Cidade e Alteridade. Florianópolis, 2017. Disponível em: https://www.conpedi.org.br/publicacoes/27ixgmd9/m4wql6h3

LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. Tradução: Alcides João de Barros. São Paulo: Editora Ática, 1991.

 

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