HC difuso ou HC coletivo? O caso das mães encarceradas & o STF

14/05/2017

Por Maurilio Casas Maia – 14/05/2017

O Processo Penal deve superar seu anacronismo e reconhecer a econômica tutela transindividual de direitos. Não obstante todos os avanços do Processo Coletivo brasileiro, a esfera processual penal ainda se ressente da ausência de consolidação do uso transindividual do Habeas Corpus[1] (HC), enquanto instrumento da efetividade de direitos constitucionalmente garantidos.

Contextualmente, um reflexo do sobredito atraso na área penal é a recente decisão monocrática proferida no HC n. 143.704-PR. O referido HC foi impetrado pela Defensoria Pública do Paraná (DP-PR) em favor coletividade formada por todas as pessoas que desejarem exercer seu direito de manifestação na cidade de Curitiba”.

Segundo relator do HC n. 143.704 no STF, min. Celso de Mello, a impetração “em favor de uma coletividade de cidadãos” marcada pela “indeterminação subjetiva dos pacientes” e por “pessoas não identificadas” (“pacientes anônimos”), repercutiria na inobservância do art. 654, § 1º, “a”, do CPP, razão pela qual o HC não poderia, sequer, ser conhecido – de acordo com a jurisprudência do STF.

- E o caso das mães encarceradas do Brasil? Estaria dentro da mesma configuração?

Com efeito, no intuito de estimular o desenvolvimento da proteção processual penal coletiva da liberdade, é preciso trazer a lume o HC coletivo n. 143.641, impetrado “Coletivo de Advogados de Direitos Humanos” (CADHu) pretendendo tutelar todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias crianças”.

A distinção entre os casos supracitados deve ser clara e indubitável para quem conhece minimamente a classificação dos direitos metaindividuais.

De plano, percebe-se que o HC n. 143.704-PR (caso das “manifestações de Curitiba”) traz o que se denomina aqui de HC difuso, porquanto destinado a tutelar “pessoas indeterminadas” – traço marcante dos direitos e interesses difusos (CDC, art. 81, p.u., I[2]) –, pessoas essas eventualmente interessadas em participar de uma manifestação democrática.

Por outro lado, o HC n. 143.641-SP é marcadamente diferente do HC n. 143.704-PR. Isso porque em relação às mães e crianças correlatas em situação de cárcere no Brasil, existe uma coletividade definível e catalogável subjugada e mantida em cárcere pelo Poder Público (relação jurídica base). Trata-se de típica “situação coletiva” (Lei n. 8.078/1990, art. 81, p.u., II[3]) – um HC coletivo em sentido estrito.

Assim, quando possível o arrolamento pelo Poder Público do agrupamento em determinada situação, tem-se coletividade tutelável via HC coletivo.

Desse modo, vetar o uso do HC tipicamente coletivo por falta de informações dos nomes das pacientes – informações essas que podem ser prestadas pelo próprio Estado –, caracterizaria indevida negativa de acesso à justiça.

No referido contexto, deve entrar em cena o uso por analogia da instrumentalização de outra ação constitucional de cunho célere: O Mandado de Segurança (Lei 12.016/2009 - LMS), cuja Lei (§ 1º, art. 6º[4]) permite o requerimento pelo Poder Judiciário da “prova oficial”, ou seja, aquela em domínio do Poder Público – regra essa invocada por analogia (art. 3º[5], CPP), face à semelhança parcial entre o HC e no MS: ambas são ações constitucionais de rito célere, em regra, demandando prova pré-constituída.

Trata-se do espírito da facilitação do acesso probatório e à justiça de mães encarceradas impossibilitadas de procurar advogado e frente à Defensoria Pública ainda não estruturada numericamente frente aos gigantes desafios.

Em verdade, trata-se do senso o qual pode também ser extraído da teoria dinâmica do ônus da prova[6] e da não imposição de certos requisitos formais inviabilizadores do acesso à Justiça[7], extraíveis também do NCPC, o qual permite que, sob requerimento, o próprio julgador requisite[8] tais informações ou as dispense.

Enfim, é necessário distinguir os casos do HC n. 143.641-SP (HC coletivo) e do HC n. 143.704-PR (HC difuso), trazendo à luz a proteção de direitos metaindividuais – estudados ainda na década de 1970 por Mauro Cappelletti –, para a área penal também. São situações diferentes sim, mas ambas coincidentemente carentes de remédios processuais efetivos para garantia e máxima concretização do texto constitucional.

Assim, neste dia das mães de 2017, espera-se que – se não for possível ao Direito Processual Penal conhecer da ampla tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos via Habeas Corpus –, que ao menos seja realizado um distinguishig entre o HC difuso das “manifestações de Curitiba” e o “HC coletivo das mães em cárcere”, para que esta última “coletividade necessitada[9] não encontre o mesmo trágico fim da negativa de acesso à econômica Justiça Penal Coletiva.

Obviamente, é imprescindível a utilização de construção analógica para a adaptação procedimental do Habeas Corpus à esfera coletiva. Entretanto, levar o Processo Penal ao século XXI é, neste momento e no caso do HC n. 143.641, uma decisão cabível única e exclusivamente ao STF.


Notas e Referências: 

[1] Sobre o tema, é importante conhecer o parecer do prof. Daniel Sarmento clicando aqui.

[2] CDC, “Art. 81. (...) Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;”

[3]CDC, “Art. 81. (...) Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: (...) II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;”

[4] Lei Federal n. 12.016/2009, “Art. 6o  (...) § 1o  No caso em que o documento necessário à prova do alegado se ache em repartição ou estabelecimento público ou em poder de autoridade que se recuse a fornecê-lo por certidão ou de terceiro, o juiz ordenará, preliminarmente, por ofício, a exibição desse documento em original ou em cópia autêntica e marcará, para o cumprimento da ordem, o prazo de 10 (dez) dias. O escrivão extrairá cópias do documento para juntá-las à segunda via da petição.”

[5] CPP, “Art. 3o  A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.”

[6] NCPC, “Art. 373. (...) § 1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à mainor facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.”

[7] NCPC, “Art. 319 (...) § 3o A petição inicial não será indeferida pelo não atendimento ao disposto no inciso II deste artigo se a obtenção de tais informações tornar impossível ou excessivamente oneroso o acesso à justiça”.

[8] NCPC, “Art. 319 (...) § 1o Caso não disponha das informações previstas no inciso II, poderá o autor, na petição inicial, requerer ao juiz diligências necessárias a sua obtenção. § 2o A petição inicial não será indeferida se, a despeito da falta de informações a que se refere o inciso II, for possível a citação do réu.”

[9] Sobre o conceito de “coletividades necessitadas” vide: BARLETTA, Fabiana Rodrigues. CASAS MAIA, Maurilio. Idosos e Planos de Saúde: Os Necessitados Constitucionais e a Tutela Coletiva Via Defensoria Pública - Reflexões sobre o conceito de Coletividade Consumidora após a ADI 3943 e o ERESP 1192577. Revista de Direito do Consumidor, v. 106, p. 201-227, Jul.-Ago.


Imagem Ilustrativa do Post: Supremo Tribunal Federal // Foto de: Leandro Neumann Ciuffo // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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