Há um princípio geral da proibição do venire contra factum propium no direito natural clássico?

13/06/2018

A expressão venire contra factum propium exprime o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente[1].

As questões concernentes à existência de um princípio geral da proibição do venire contra factum propium no direito natural clássico, bem como o seu âmbito de atuação e fundamentação são controversas, o que demanda para o seu esclarecimento uma análise histórico-dogmática.

No direito romano não se concebeu a existência de um princípio geral de proibição ao comportamento contraditório por inúmeras razões.

Muitos preceitos do Digesto referendavam a sanção ao comportamento contraditório mas, também, vários excertos possibilitavam tal atitude em diversas situações que não implicassem em um suposto de fato negocial, como na permissão de retomada da propriedade pelo titular que a abandonou mas arrependeu-se posteriormente da derelictio (D. 41, 7, 5). Nessa circunstância, por exemplo, o proprietário não estava vinculado por sua primitiva vontade de renunciar.

Os romanos elaboraram sua ciência do direito partindo não de construções geométricas (axiomas como a liberdade do indivíduo ou a soberania da lei) mas sim observando o dado social natural, interrogando a natureza, tentando reencontrar a ordem que ela acolhe; objetiva, e portanto jurídica. Sua jurisprudência é voltada para o conhecimento das coisas (D.1, 1, 10, 2), é uma descrição das coisas e da natureza das coisas[2]. Para os romanos o direito é um objeto exterior ao homem, uma coisa, a mesma coisa justa (ipsa iusta res) que constitui o término do atuar justo de uma pessoa, a finalidade da virtude da justiça.

A conduta justa do homem justo (dikaios) é a justiça em mim, subjetiva, o direito (dikaion) é a justiça fora de mim, no real, a mesma coisa justa, objetiva. O direito está assim fora do homem, in re, nas coisas justas, de acordo com uma determinada proporção, o justo meio objetivo. Apenas nas relações jurídicas especificas e segundo determinações concretas, se podia aferir o que caberia a cada um (a mesma coisa justa).

Tendo o direito romano esse caráter casuístico, de busca de resolução de situações jurídicas determinadas, não cabe se falar em uma proibição ao comportamento contraditório como princípio geral e sim em seu emprego para a fundamentação do justo no caso concreto.     

Nesse diapasão, a proibição do venire contra factum propium terá lugar sobretudo como fundamento para a aplicação da exceptio doli.  A exceptio era uma derrogação dos pressupostos regulares da condenação no processo formulário romano, que o pretor, a pedido do demandado e para sua proteção, incluía na fórmula.

Com a exceptio doli reprime o demandado ao demandante uma conduta dolosa (contrária à boa-fé), seja no passado (especialmente na aquisição de um direito), seja atualmente ao persegui-lo. Portanto, só “se neste litígio não se há feito nada por parte do demandante com dolo” pode o juiz condenar o demandado[3].

A proibição da conduta contraditória como fundamento da exceptio doli se encontrava em numerosos casos de disposições negociais: na impossibilidade de recusar a aprovação da permuta de uma coisa por outra, feita pelo procurador a quem se encomendou a livre administração dos bens (D. 3, 3, 58, in fine).

Também no caso de doação em que alguém dá uma coisa para outro para que, em seu nome, seja a mesma doada a Tício, e aquele outro doa em seu próprio nome, há possibilidade de êxito na ação de furto contra o portador, mas não de revogação da doação a Tício (que recebeu a coisa, a outro título), por contrariedade ao comportamento anteriormente realizado (D. 39, 5, 25). Outro caso importante da proibição de venire contra factum propium é o da contemplação do fim do negócio. Se alguém aceita a obrigação de outro por amizade sob o entendimento com o credor de que este não a exigirá, então a exceptio doli, sob tal fundamento, impede a ação futura em contrariedade a tal conduta (D. 46, 3, 91)[4].

No século XIII, com a sistematização do direito romano efetuada pelos glosadores, é que a ideia da proibição do venire contra factum propium vai assumir foro de pretensão a se constituir em um princípio geral do direito.

A locução venire contra factum propium nulli conceditur, isto é, “a ninguém é concedido vir contra o próprio ato”, de caráter generalizante, aparece pela primeira vez nessa ocasião, na Escola de Bolonha, com o jurista Azo, cuja obra Brocardica estabelece uma coleção de brocardos interpretados a partir das fontes romanas[5].  Mesmo nessa época, contudo, era polêmica entre os glosadores a possibilidade do venire contra factum propium ser considerado um princípio geral, já que numerosos textos romanos admitiam o comportamento contraditório em direito.

Igualmente no direito canônico, a outra matriz da tradição jurídica ocidental, o comportamento contraditório era tolhido apenas em hipóteses particulares, sendo a proibição do venire contra factum propium imputada mais aos valores que informavam o direito canônico do que a um princípio geral de direito[6].

No século XIV, no âmbito da Escola dos Comentadores, que se dispunham não só a descobrir o significado do direito romano mas também a aplicá-lo na prática, Bartolo de Sassoferrato procurou desenvolver um critério de validação da regra do venire.

Admissível seria a proibição ao comportamento contraditório se o factum propium tivesse sido praticado contra legem, porém não nas hipóteses de atuação secundum legem ou praeter legem. Esse critério não logrou convencimento, uma vez que, em diversas ocasiões, o direito romano admitia a proibição da contradição em atos praticados em conformidade com a lei[7] (por exemplo, na constituição do dote, D. 23, 3, 7, 3 in fine).

Na modernidade, no limiar do século XVII, surge a Escola moderna do direito natural, inaugurando o chamado jusnaturalismo moderno, que teria a sua primeira fase com a publicação da obra De Iure Belli ac Pacis, no ano de 1625, da lavra de Hugo Grotius. O jusnaturalismo moderno outorga um grande apreço pela razão, pelo indivíduo e pelo valor do consentimento na formação da sociedade e das relações sociais.

Para Jean Domat, o uso de convenções é uma decorrência natural da ordem da sociedade civil e dos liames que Deus forma entre os homens. O engajamento e a vinculação dos contratantes referem-se unicamente à avença.

Pela nova formulação teórica as convenções são os engajamentos que se formam pelo consentimento mútuo de duas ou mais pessoas que estabelecem entre eles uma lei de execução daquilo que prometeram. As convenções, assim, se realizam pelo consentimento mútuo dado e vinculação recíproca. Deste modo, a venda é realizada pelo só consentimento, ainda que a mercadoria não seja enviada ou o preço pago[8].

Nessa ordem de novas ideias a proibição do venire contra factum propium assume um papel subordinado, inserida no interior da autonomia privada do indivíduo. Este seria livre para regular o seu próprio comportamento, em tudo aquilo não fosse regrado de maneira diversa pela lei. Sendo o valor preponderante do ordenamento a garantia do livre exercício dos direitos subjetivos, entendidos como um absoluto, ao indivíduo era permitido rever seu próprio comportamento, contrariar sua conduta anterior, alterar suas posições etc.

Deste modo, o liberalismo individualista que caracterizou os séculos XVIII e XIX, primordialmente preocupado com a segurança jurídica e a igualdade formal dos contratantes, não estabeleceu foros de juridicidade para a proibição do venire contra factum propium nem para outras regras concernentes ao equilíbrio contratual material e à tutela da confiança suscitada na contraparte.  

Embora as codificações do século XIX tenham incorporado preceitos que vedam comportamentos dissonantes, principalmente oriundos do direito romano, não consagraram um princípio geral de proibição ao comportamento contraditório.

É com as transformações do século XX que o princípio do venire contra factum propium, da tutela da confiança, volta a adquirir relevância. Mitigada a certeza do direito, convertida a autonomia privada em instrumento de opressão dos indivíduos pela desigualdade das relações jurídicas materiais, mister se fazia a eclosão de um novo direito, marcado pela valorização dos princípios e das cláusulas gerais, apto a tutelar a materialidade e o equilíbrio econômico das relações contratuais privadas.

Neste contexto é que surge em 1912 a obra do Professor Erwin Riezler, da Universidade de Freiburg: Venire contra factum propium. Studiem in romischen, englischen und deutschen civilrecht[9] que estabelece com propriedade que a regra do nemo potest venire contra factum propium ao contrário, por exemplo, da contrariedade aos bons costumes, não constitui um princípio geral com justificação ético-política própria, com pretensão de validade geral, mas um postulado apto a reger determinadas situações, consoante a ponderação dos interesses em conflito[10].

Atribui esse autor a quatro situações jurídicas típicas a possibilidade de regência pelo venire contra factum propium: a) aquele em que o negócio jurídico inválido é cumprido voluntariamente, sendo de repetição difícil; b) por decisão de uma pessoa, em regra de tipo potestativo, constitui-se uma situação jurídica; c) alguém cria uma aparência jurídica na qual as pessoas confiam; d) alguém cria uma situação de risco conexa a uma relação jurídica[11].

Nos anos vindouros, fundada na obra de Riezler, a doutrina alemã se orienta no sentido de associar o venire contra factum propium ao princípio da boa-fé, vedando a prática de comportamentos contraditórios naqueles casos em que tenham produzido o efeito de suscitar a confiança legítima da contraparte. Com a obra de Hermann Eichler, Die Rechtslehre vom Vertrauen (1950), o venire ganha autonomia: já não deve ser entendido como uma proibição do dolo ou de mentira (para tanto há outros comandos jurídicos) mas sim de um reforço da segurança do tráfego naquelas situações onde o comportamento primevo suscitou a confiança legítima do contratante[12].

A noção subjacente à locução nemo potest venire contra factum propium se espraiou, a partir da doutrina alemã, pelas obras doutrinárias jurídicas de Portugal[13], Itália[14], Espanha[15], Argentina[16] e Chile[17], bem como por inúmeros arestos dos tribunais superiores. Porém, em nenhum ordenamento jurídico o princípio do nemo potest venire contra factum propium chegou a ser consagrado expressamente em lei.

No direito brasileiro igualmente, o Código Civil de 2002 não dispôs em uma norma geral expressa a proibição do comportamento contraditório. Apenas dispositivos esparsos vedaram especificamente o comportamento incoerente, sobretudo em situações negociais, em tutela da confiança da contraparte (arts. 175, 476, 491, 619 e 1146). A doutrina sobre a matéria é também escassa, com fundamentação sobretudo na expansão das aplicações do princípio da boa-fé objetiva[18].  

Discute-se muito em doutrina, no direito moderno, o que seja a natureza jurídica do princípio da proibição do venire contra factum propium. Para alguns, seria este um princípio geral do direito, para outros um princípio específico decorrente da boa-fé objetiva. Particularmente a jurisprudência[19] tende a interpretar a proibição do venire contra factum propium como um princípio geral do direito.

Princípios gerais do direito podem ser definidos, no dizer de Del Vecchio como “as supremas verdades do direito in genere, vale dizer, os elementos lógicos e éticos do direito, que, por serem racionais e humanos, são virtualmente comuns aos diversos povos[20].

Larenz assim define as características destes princípios ético-jurídicos: “Esses princípios possuem um conteúdo material de justiça; por esse motivo podem ser entendidos como manifestações e especificações especiais da ideia de Direito, tal como este se revela na ‘consciência jurídica geral’, neste estádio da evolução histórica. Enquanto ‘princípios’ não são regras imediatamente aplicáveis aos casos concretos mas ideias diretrizes, cuja transformação em regras que possibilitem uma resolução tem lugar em parte pela legislação, em parte pela jurisprudência, segundo o processo de concretização e aperfeiçoamento de princípios mais especiais mediante a formação de grupos de casos”[21].

Os princípios gerais de direito, como derivações intrínsecas da natureza das coisas, supremas razões de direito de caráter ideal e absoluto[22], tem caráter subsidiário (lei de introdução às normas do direito brasileiro - LINDB, art. 4º); a lei pode dispor de maneira diversa, em atenção a determinações particulares, a elementos empíricos e contingentes, mas, não presente o dispositivo legal expresso, recorre-se a esses princípios de razão jurídica natural, que constituem a base de toda relação humana e social.

Pela própria definição verifica-se, contudo, que a proibição do venire contra factum propium não pode ser considerado um princípio geral do direito. Ela não tem uma validade in genere, uma vez que em diversas situações jurídicas se admite a validade do comportamento contraditório (Código Civil de 2002, arts. 428, IV; 438; 791; 1969).

Não é um elemento lógico, ético e racionalmente necessário, comum aos diversos povos, uma vez que nenhum ordenamento alçou a proibição do venire como regra geral, válida para todas as circunstâncias.

Do mesmo modo não se constitui em uma especificação da ideia de direito, expressa na consciência jurídica geral porque, conforme a análise histórica acima esboçada, em diversas ocasiões, os povos houveram por bem expressar em termos jurídicos que, mediante certos requisitos, seria cabível a contradição entre o comportamento presente e o passado, como na retratação e na revogação unilateral.

A proibição do venire contra factum propium se insere no âmbito da boa-fé objetiva, mais especificamente, na função de controle da boa-fé que estabelece que o contratante, no exercício do seu direito, não pode exceder os limites impostos pela boa-fé, sob pena de proceder antijuridicamente.

A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte[23].

Deste modo a proibição do comportamento contraditório tem por objetivo não a preservação da coerência por si só mas sim a tutela da confiança legitimamente despertada em outros por aquele comportamento. Em outras palavras, tutela-se a situação jurídica não em sua origem mas em seus efeitos, quando a conduta contraditória e contrária à boa-fé for suscetível de causar danos a outrem. O dano, atual ou eventual, é portanto um elemento indispensável para que se verifique essa responsabilidade pela confiança. São assim as hipóteses dos dispositivos expressos do Código Civil, onde se tutela a confiança suscitada na contraparte (arts. 175, 476, 491).

A proibição do venire contra factum propium é, deste modo, um princípio jurídico, subjacente ao âmbito de aplicação da cláusula geral de boa-fé, tem natureza normogenética, constituindo fundamento de regras, isto é, norma que está na base ou constitue a ratio de regras jurídicas. Haverá venire contra factum propium sempre que se apresentar a quebra da confiança acima descrita, houver prejuízo e o ordenamento não sancione por outra forma o comportamento contraditório.

 Como princípio jurídico no direito moderno, a proibição do venire tem uma importância estruturante porque consagra valores fundamentadores da ordem jurídica (a tutela da confiança) e tem capacidade deontológica de justificação (assegurar expectativas e direcionar condutas)[24].

Além disso ela constitui norma de otimização, compatível com vários graus de concretização, consoante condicionamentos fáticos e jurídicos, carecendo deste modo de mediação concretizadora do juiz ou do legislador. O intérprete, ao aplicar a norma que consigna o princípio, deve ter em conta o seu peso, podendo o princípio ser ou não aplicado num determinado caso concreto, sem perder, contudo, a sua validade no sistema. É o caso, por exemplo, do art. 1969 do Código Civil, onde a tutela da confiança do beneficiário do testamento neste caso cede lugar a outro valor fundante do sistema, o caráter personalíssimo daquele instrumento.

Incluída no âmbito da boa-fé objetiva, a proibição do venire contra factum propium é aplicável às situações regidas por esta, quais sejam, todos os negócios jurídicos, civis e comerciais, nas fases pré-contratual, contratual e mesmo pós-contratual (Código Civil, arts. 113 e 422).

No que concerne ao abuso do direito, na dicção legal (art. 187 do Código Civil, contrariedade à boa-fé) este deve ser entendido, em uma de suas acepções, como o exercício aparentemente regular de um direito, porém em contradição com os valores que o ordenamento, através dele, pretende realizar.

Nessa acepção, também o seu fundamento é a boa-fé objetiva, em sua função de controle, qual seja impedir ou inadmitir o exercício de um direito contrário à obrigação de correção e lealdade nas relações obrigacionais. Nesse caso o venire contra factum propium constitui um abuso do direito por violação à boa-fé.

O comportamento contraditório é abusivo, inadmissível, porque o seu exercício, examinado em conjunto com um comportamento anterior, afigura-se contrário à confiança despertada em outrem, o que revela, no âmbito normativo, contrariedade à boa-fé objetiva. Registre-se contudo, que, como exposto anteriormente, o princípio da proibição do venire contra factum propium tem uma dimensão muito mais abrangente, não podendo ser reduzido a simples modalidade de abuso do direito[25].

No direito moderno são os seguintes os pressupostos para a aplicação do princípio da proibição do venire contra factum propium: a) um factum propium, ou seja, uma conduta inicial; b) suscitar no outro a legítima confiança na conservação do sentido objetivo da conduta; c) o comportamento contraditório com a conduta inicial, violando a confiança suscitada; d) o dano, efetivo ou potencial, a partir da contradição.

Por factum propium se entende uma conduta não vinculante (que não constitui um ato ou negócio jurídico) que, torna-se vinculante apenas porque e na medida em que, despertando a confiança de outrem, atrai a incidência do princípio de proibição do comportamento contraditório e impõe ao seu praticante a conservação do seu sentido objetivo.

Não é ato jurídico no sentido tradicional; passa a produzir efeitos jurídicos por força da confiança legítima despertada em outrem (de que são exemplos o comportamento concreto de uma das partes à margem das disposições contratuais e das negociações preliminares a um contrato).

 No que se refere à legítima confiança na conservação do sentido objetivo da conduta esta pode ser definida como aquela expectativa que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, possa deduzir do comportamento do declarante, considerados o meio menos gravoso de cumprimento e o equilíbrio das prestações (como se deduz dos arts. 236 e 237 do Código Civil português).

É a percepção do homem médio em análise objetiva, consideradas as peculiaridades da situação engendrada. Seria pois, no dizer de Menezes Cordeiro, uma função do necessário para convencer uma pessoa normal, colocada na posição do confiante e do razoável, tendo em conta o esforço realizado pelo mesmo confiante na obtenção do fator a que se entrega[26] Obviamente, somente da análise do caso concreto pode se avaliar efetivamente o estabelecimento da confiança a ser tutelada.

É necessário da parte do receptor dos efeitos do ato uma efetiva adesão ao sentido objetivamente extraído do factum propium. Além disso é preciso que a confiança seja legítima, no sentido de que deva derivar razoavelmente do comportamento inicial. A existência de prejuízos em decorrência da contradição é um indício relevante que houve efetiva confiança no factum propium.

O comportamento contraditório com a conduta inicial, violando a confiança suscitada constitui o terceiro pressuposto da aplicação da proibição do venire contra factum propium. O que se exige é tão-somente a contradição, em sentido objetivo, independentemente de uma intenção ou propósito de contrariar.

O comportamento do emissor do ato, na hipótese, é um comportamento em princípio não vinculante, que só assume relevância jurídica no contexto situacional da quebra de confiança criada entre lesante e lesado, não em virtude da violação de um direito alheio ou de normas destinadas a proteger diretamente ex lege interesses alheios. Trata-se, na verdade, da valoração jurídica de um atuar contrário a uma obrigação de correção e lealdade suscitada pela confiança, a desconsiderar quais referências a culpa ou dolo do agente[27].

Contradição, nessa acepção, deve ser entendida como a incompatibilidade objetiva entre os dois comportamentos, ou seja, entre o sentido objetivo da conduta anterior e o resultado empírico buscado com o comportamento posterior[28]. Mister também se faz a sucessão lógico-temporal entre os dois comportamentos. A extensão do lapso temporal que separa os dois comportamentos é irrelevante, desde que seja capaz de despertar em outrem a legítima confiança, a ser rompida pelo comportamento posterior. Deste modo, comportamentos contraditórios simultâneos (que seriam resolvidos no âmbito do dolo ou da fraude) se repercutem em momentos diferenciados sobre outrem podem ensejar confiança legítima.

O último pressuposto, a existência de dano efetivo ou potencial, a partir da contradição, se justifica porque a proibição do venire contra factum propium visa primordialmente evitar que aquele que legitimamente confiou no sentido objetivo de um comportamento inicial venha a sofrer um prejuízo a partir da ruptura dessa confiança.

Nesse sentido, configura o venire uma responsabilidade pela confiança, ou seja, a tutela da confiança só tem razão de ser quando a conduta contrária à fides causar ou for suscetível de causar danos a outrem. O cumprimento do compromisso engendrado pelo comportamento concludente se impõe, nesse diapasão, como o único meio de impedir o dano que, de outro modo, resultaria da confiança gerada[29]. Não se exige um dano efetivo, o simples potencial lesivo já será suficiente para acionar a função impeditiva do venire contra factum propium, impedindo a produção de qualquer prejuízo, obstando o comportamento contraditório.

Por fim cabe falar sobre as funções do princípio no direito moderno. São duas as funções do nemo potest venire contra factum propium no direito moderno. A primeira, e mais importante, é a função impeditiva, ou seja, aquela de inadmitir o exercício do direito em violação à boa-fé e à legítima confiança suscitada. É o impedimento da conduta o escopo principal do venire. Cada um é livre para determinar-se e atuar livremente em qualquer direção, mas, uma vez realizado o ato, a pessoa não pode subtrair-se das consequências do ato, que são para ela como que vinculantes.

O venire contra factum propium traduz uma responsabilidade pela confiança e não uma responsabilidade pelo incumprimento, ou seja, a análise das consequências se situa ao nível da legítima expectativa que foi criada no declaratário no sentido de agir como agiu. Deste modo, efetuada uma declaração adequada a criar no destinatário normal a confiança de que o autor continuaria, futuramente, a prosseguir em sua conduta pregressa, a tutela jurídica que se impõe é a da manutenção da conduta com o impedimento do comportamento contraditório.

A confiança só é eficazmente tutelada na hipótese de se obstar o comportamento que se dirigia à ruptura. Por exemplo, atua em contradição a autarquia que comunica aos contribuintes que poderiam obter a quitação do débito previdenciário por valor inferior ao devido, conforme previa medida provisória, desde que efetuassem o pagamento da guia encaminhada junto ao comunicado e desistissem expressa e irrevogavelmente dos recursos administrativos e/ou ações judiciais que tivessem por objeto o débito e que, posteriormente, notifica os mesmos contribuintes que houvera erro no cálculo dos valores informados e que, por via de consequência, aqueles que já houvessem pago a guia anteriormente expedida deveriam procurar o órgão para a integralização do pagamento. Caberá aos contribuintes lesados, nessa hipótese, para a efetiva tutela da sua legítima confiança, postular a convalidação do ato emanado pelo comunicado, com a consequente extinção do crédito tributário[30].

Todavia, nem sempre é possível obstaculizar o comportamento contraditório. Existem casos em que o ordenamento não impede o comportamento contraditório em atenção a valores mais relevantes igualmente protegidos pelo direito. É o caso da ruptura das negociações preliminares de um contrato sem um motivo justificado. O ordenamento veda o estabelecimento de uma relação contratual contra a vontade do contratante (princípio da liberdade de contratar) mas impõe a reparação dos danos causados pela ruptura imotivada.

Outra função do venire contra factum propium é a reparatória, com o ressarcimento do dano sofrido. Nessa hipótese, subsidiária, como acima demonstrado, o venire é a causa da ilegitimidade do comportamento danoso. A configuração de um venire contra factum propium serve de título à reparação, independentemente de prova de culpa. Não se precisará demonstrar a negligência, imperícia ou imprudência ou qualquer outro estado subjetivo daquele que praticou o venire contra factum propium. Basta que se verifiquem os pressupostos do ato, e a violação à boa-fé e à tutela de confiança daí derivarão automaticamente, dando ensejo ao dever de indenizar.

Concluindo, podemos dizer que um princípio jurídico da proibição do venire contra factum propium tal como exposto acima, com essas características, esses pressupostos e essas funções não poderia ter surgido no direito natural clássico.

O direito natural clássico, assim como descrito anteriormente, não é rigorosamente individual; não supõe para o indivíduo somente um ativo, só vantagens; meu direito, isso que me deve ser dado, isso que eu mereço, não é "subjetivo", não se refere somente a um indivíduo, implica necessariamente em uma relação entre indivíduos. É o resultado de uma repartição. Na dicção de Aristóteles o direito apenas é um atributo da minha pessoa, não é exclusivamente meu, na medida em que é primordialmente o bem de outrem: "considera-se que a justiça, e somente ela entre todas as formas de excelência moral, é o ´bem dos outros´; de fato, ela se relaciona com o próximo, pois faz o que é vantajoso para os outros, quer se trate de um governante, quer se trate de um companheiro da comunidade"[31]

O direito - o justo de cada um - emerge de uma repartição concreta, é, afinal, uma proporção (justa, um igual [ison] ou analagon, termo gramaticalmente neutro). Essa igualdade expressa, consoante a matemática grega, cosmovisão integrada da totalidade, não a constatação de uma simples equivalência de fato entre quantidades, mas revela a harmonia, o valor do justo, uma certa ordem que se discerne no caso mesmo e que se acha em conexão, em última instância, com a ordem geral do mundo que é a matéria da justiça geral. Como tal a proibição do venire contra factum propium como direito subjetivo do agente e vinculado intrinsecamente à sua conduta, sendo o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente, só poderia ter surgido com essa configuração no direito moderno. 

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[1] CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no direito civil. v. II. Coimbra: Almedina, 1984, p. 742.

[2] VILLEY, Michel. Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universitaire. Paris: Dalloz, 1969, p. 243.

[3]WACKE, Andreas. La exceptio doli em el derecho romano clásico y la Verwirkung en el derecho alemán moderno. In: PARICIO, Javier. Derecho romano de obligaciones: homenaje al Professor José Luis Murga Gener. Madri: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 1994, p. 978.

[4]WACKE, Andreas. op. cit. p. 989

[5]RIEZLER, Erwin. Venire contra factum propium. Studiem in romischen, englischen und deutschen civilrecht. Leipzig: Verlag von Duncker & Humblot, 1912, p. 44.

[6] CORDEIRO, Antonio Menezes. op. cit. p. 743.

[7] DÍEZ-PICAZO, Luís. La doctrina de los proprios actos – um estudio crítico sobre la jurisprudencia del Tribunal Supremo. Barcelona: Bosch, 1963, p. 47.

[8] DOMAT, Jean. Oeuvres complètes de J. Domat. T. 1. Paris: Firmin Didot & Charles Béchet, 1828, p. 121/125.

[9] RIEZLER, Erwin. Venire contra factum propium. Studiem in romischen, englischen und deutschen civilrecht. Leipzig : Verlag von Duncker & Humblot, 1912.

[10] CORDEIRO, Antonio Menezes. op. cit. p. 743-744.

[11] CORDEIRO, Antonio Menezes. op. cit. p. 744.

[12] CORDEIRO, Antonio Menezes. Tratado de direito civil português. Parte Geral. Tomo I. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 252.

[13] CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no direito civil. v. II. Coimbra: Almedina, 1984; CORDEIRO, Antonio Menezes. Tratado de direito civil português. Parte Geral. Tomo I. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2000; MACHADO, João Baptista. Tutela da confiança e “venire contra factum propium”. In: Obra dispersa. v. I. Braga: Scientia Ivurídica, 1991, pp. 345-423.

[14] SCALESE, Giancarlo. Diritto dei trattati e dovere di coerenza nella condotta. Nemo potest venire contra factum propium. Napoli: Editoriale Scientifica, 2000.

[15] DÍEZ-PICAZO, Luís. La doctrina de los proprios actos – um estudio crítico sobre la jurisprudencia del Tribunal Supremo. Barcelona: Bosch, 1963; PUIG BRUTAU, José. Estudios de derecho comparado: la doctrina de los actos proprios. Barcelona: Ediciones Ariel, 1951.

[16] BORDA, Alejandro. La teoria de los proprios actos. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1993; LÓPEZ MESA, Marcelo J. La doctrina de los actos propios em la jurisprudencia: la utilidad de las normas abiertas, el ocaso del legalismo y la nueva dimensión del juez. Buenos Aires: Depalma, 1997

[17] ESCOBAR, Maria Fernanda Ekdahl. La doctrina de los actos propios: el deber juridico de no contrariar conductas propias pasadas. Santiago de Chile: Editorial Juridica de Chile, 1989

[18] POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá, 2001; MUNIZ, Francisco José Ferreira. O princípio geral da boa-fé como regra de comportamento contratual. In: Textos de Direito Civil. Curitiba: Juruá, 1998; MIRANDA, José Gustavo Souza. A proteção da confiança nas relações obrigacionais. In: Revista de informação legislativa, v.38, n.153, p.131-149, jan./mar. 2002; MONTEIRO, Flávio Melo. Débito previdenciário pago conforme dados fornecidos pelo fisco: a proibição de venire contra factum propium. In: Revista dialética de direito tributário, n.92, p.12-19, maio 2003; veja-se, sobretudo, a obra mais completa sobre a matéria: SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela de confiança e venire contra factum propium. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

[19] Entre nós, por exemplo, STJ, REsp  47015/SP, Rel. Min. Adhemar Maciel, julgado em 16.10.1997.

[20] DEL VECCHIO, Giorgio. Princípios gerais do direito. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 12.

[21] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1989, p. 511.

[22] DEL VECCHIO, Giorgio. op. cit., p. 75

[23] MOTA, Mauricio. A pós-eficácia das obrigações. In: TEPEDINO, Gustavo. Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 199.

[24] MACHADO, João Baptista. Tutela da confiança e “venire contra factum propium”. In: Obra dispersa. Vol. I. Braga: Scientia Ivurídica, 1991, p. 346.

[25] MACHADO, João Baptista. op. cit. p. 385.

[26] CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no direito civil. v. II, op. cit., p. 758/759.

[27] MACHADO, João Baptista. op. cit. p. 379

[28] DÍEZ-PICAZO, Luís. op. cit., p. 230

[29] MACHADO, João Baptista. op. cit. p. 365/367.

[30]MONTEIRO, Flávio Melo. Débito previdenciário pago conforme dados fornecidos pelo fisco: a proibição de venire contra factum propium. In: Revista dialética de direito tributário, n.92, p.12-19, maio 2003.

[31] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: UNB, 2001, p. 93.

 

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