Com a polarização política, o presidencialismo de coalizão parece em xeque, e o Judiciário (STF) tem figurado, cada vez mais, como engrenagem fundamental nos mecanismos de governabilidade.
Presidencialismo de coalizão. A expressão cunhada por Sérgio Abranches[1] para designar nossa forma de organização do poder é conhecida por todos, mas não corresponde ao único modelo de governabilidade da história política do Brasil. No século XIX, por exemplo, tivemos o chamado “Modelo Saquarema”, caracterizado pelo Poder Moderador, ou a “Política dos Governadores”, marcada, na Primeira República, pela não intervenção do presidente em assuntos regionais, mantendo o controle das velhas oligarquias em seus núcleos de poder. Já o presidencialismo de coalizão surge em dois momentos, ambos como parte da arquitetura político-jurídica de pesos e contrapesos que controla o poder. O primeiro desses momentos dialoga com a tardia incorporação das massas ao processo político nacional, na década de 1940. O segundo, com a redemocratização da década de 1980.
Mais que empilhar modelos de organização política do poder, contudo, o ponto que move estas reflexões pretende colaborar para a formatação de uma espécie de cartografia do constitucionalismo brasileiro – compreendido como parte da limitação do poder estatal –, a partir dos influxos institucionais entre os Poderes da República. Queremos dizer, para além do necessário estabelecimento paradigmático de seu próprio sentido, parece haver uma série de movimentos – no tempo presente – para diferentes arranjos, diante da incorporação de novos atores políticos, como tem sido mesmo o órgão de cúpula do Judiciário Brasileiro, o Supremo Tribunal Federal.
Na arquitetura do presidencialismo de coalizão, ou melhor, no esboço institucional reeditado com o processo de redemocratização do país nos Anos 1980, a presidência precisa costurar coalizões para viabilizar a governabilidade, mantendo certo equilíbrio entre os interesses nacionais e regionais, bem marcados por um Executivo nacionalizado e reformista – porque eleito pela maioria, evidentemente – e um Legislativo paroquializado e conservador – porque reflexivo da cosmovisão política regionalizada em pequenos recortes do eleitorado brasileiro.
Claro, esse arranjo, assentado nos velhos déficits republicanos do Brasil, sempre controlou a velocidade das transformações sociais projetadas através da Constituição de 1988, como bem lembra Marcos Nobre[2], com sua conhecida fórmula: a governabilidade é assentada em uma espécie de acordo político que, pauta a pauta, entrelaça as agendas legislativa e executiva. A perversão dessa espécie de solução de compromisso — moldada em uma República, paradoxalmente, com instituições pouco republicanas — é o conhecido toma-lá-dá-cá. Nesse contexto, como o tempo tem mostrado, tudo teve – ou tem – um preço.
Entre outras razões, mas sobretudo pelo esboço até aqui apresentado, muito desse ambiente, em que se negocia uma inapropriável agenda pública, termina não no Congresso e, menos ainda, no Executivo, mas no Judiciário, encarregado da última palavra. Ou seja, como não cansam de lembrar os posicionamentos críticos de nossa contemporaneidade, talvez a contingencial judicialização da política seja, também, uma espécie de extensão de nosso presidencialismo de coalizão, demarcado não apenas por um amplo catálogo multipartidário a "defender" (entre aspas mesmo) os mais variados interesses, mas, sobretudo, por uma inegável — embora muito discutida — tradição patrimonialista a nos empregar sentido[3].
Até aí, nada de novo. Os leitores e as leitoras mais atentos e atentas dirão que o que até aqui foi dito não passa da descrição dos últimos 35 anos da República. E concordamos. Mas entendemos que, como nunca, o abafado clima de polarização política tem dificultado a construção dessas pessoalizadas coalizões, não de hoje marcadas por sensíveis ranhuras na arquitetura republicana do país, fazendo do STF o privilegiado lugar de extensão da luta por hegemonia política[4], com a prerrogativa da última palavra sobre a constitucionalidade das leis.
Ou seja, nas discussões do Grupo “Teoria Crítica do Constitucionalismo” (FDV-CNPq), observamos o Judiciário – cada vez mais – como engrenagem fundamental para a governabilidade. Afinal, se o realismo jurídico corresponde à perspectiva em que o Direito é aquilo que os juízes dizem que é[5], e a autonomia das instituições corresponde à autonomia de seus atores[6], não parece desarrazoado concluir que a composição de nossa mais alta Corte Jurídica ajuda a formatar o país em temas politicamente sensíveis – como, por exemplo, a liberação de pesquisas com células-tronco, alteração de registro civil sem a necessidade de cirurgia para mudança de sexo, a impossibilidade do chamado homeschooling etc. Daí a constante preocupação (política) com a nomeação de ministros, deixando em segundo plano, na ordem do dia, o debate sobre a autonomia do Direito e o papel do Constitucionalismo na construção do Brasil.
O Judiciário é, então, um Poder político?
Entendemos que o recorte cartográfico proposto, deslocado ao interesse pelas instituições, atravessa um processo constituinte marcado pelo pacto entre diversas forças, liberais e conservadoras, em torno do mesmo projeto político-jurídico[7]. Como tais pactos, contudo, jamais anularam a disputa por hegemonia política, é possível observar a agudização dessa espécie de crise funcional[8] entre os Poderes, a partir de movimentos distintos, mas coordenados entre si, desde a redemocratização, mas, agora, ainda mais anabolizados pela polarização política.
Esses movimentos, no tempo presente, parecem convergir para além da tradicional barganha pelo controle de espaços públicos, como é próprio do presidencialismo de coalizão, e passam a mirar o arranjo institucional que determina a função dos Poderes. Na prática, isso significa que se, por um lado, o Executivo indica ministros, buscando ampliar suas bases para um eventual último estágio de disputa (política) nos Tribunais, o Legislativo – que controla o orçamento e, portanto, mais do que nunca a velocidade das transformações sociais – procura deslocar a última palavra sobre a constitucionalidade das leis para si – como fez com a Proposta de Emenda Constitucional nº 50.
Nessas tensões que parecem tanto esgarçar os diálogos institucionais, o Judiciário consolidará seu espaço em um novo paradigma de governabilidade, reconfigurando o presidencialismo de coalizão? A ver.
[1] ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão. Raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[2] NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento. Da abertura democrática ao Governo Dilma. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[3] COPELLI, Giancarlo Montagner. O presidencialismo de coalizão: um problema de Direito. Revista Eletronia Consultor Jurídico, 2020.
[4] LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy: Towards a radical democracia politics. Londres: Verso, 1985.
[5] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da CHD. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.
[6] SKOCPOL, Theda. El Estado regressa al primer plano: estratégias de análisis en la investigación actual. Zona abierta. N. 50, p. 1-42, 1995.
[7] KERSTENETZKY, Celia Lessa. O Estado de bem-estar social na idade da razão. A reinvenção do Estado Social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
[8] BOLZAN de MORAIS, Jose Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espaço-temporal dos Direitos Humanos. Col. Estado e Constituição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.
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