Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
Insanos
Vejo que é a insanidade dos adultos
que faz a criança sofrer.
Eu não consigo entender
por que um humano adulto é capaz
de tamanha insanidade?
A violência
é tão assustadora que,
consome o ser.
De fato,
não precisamos de muito.
Mas precisamos ser.
Ser fortes e doces,
respeitosos e cúmplices,
elegantes e generosos,
pacientes e tolerantes.
Seres da compaixão,
seres que compreendem
a paixão de viver.[1]
Que guerra é esta?
Como, em pleno século 21, pode o ser humano fazer uso das armas, das bombas, em combates aéreos, por mar, por terra.
É impactante ver as explosões devastando tudo, pouco a pouco, a destruição e a morte avançam em largas escalas, trazendo a total incoerência da guerra, com a destruição de sonhos, destruindo vidas.
Que sentido tem a guerra? Nenhum!
Pode a guerra, de algum modo, ser justificada? Não!
Norberto Bobbio, grande cientista político, autor de diversas obras, entre as quais podemos citar: “O Terceiro Ausente”[2], na qual o autor fala sobre a ‘objeção de consciência’. O que isso significa?
“Objetor de consciência é aquele que refuta incondicionalmente a guerra”[3], ou seja, o que não aceita nenhuma justificativa para a guerra. Defende Bobbio a ideia de que a “guerra é violência, e a violência é um mal absoluto”.[4]
Algumas de suas proposições deveriam ser constantes nas leituras dos que detêm poder, mas infelizmente não o são:
Primeiro: para o objetor não há guerras justas e injustas [...] Também a guerra de defesa é violência. [...]
Segundo: a guerra não é um mal menor; é pura e simplesmente um mal. Não se deve fazer o mal. [...]
E não há bem que possa ser permutado pela perda da paz, porque a paz é a própria condição para o florescimento de todos os outros valores.[...]
Terceiro: a guerra não é um mal necessário”, é possível progresso histórico através da paz. [...]
Quarto: a guerra não é um fato inevitável. Depende de nós, das nossas paixões que podemos reprimir, dos nossos interesses que podemos conciliar, dos nossos instintos que devemos corrigir e refrear.[5]
Percebemos que, na atualidade, frente a esta situação horrenda que está a ocorrer entre a Ucrânia e Rússia, é imperioso compreendermos a objeção de consciência: dizer não à guerra, em significado amplo e universal. A objeção de consciência pode ser compreendida como um chamamento do nosso melhor, nos impede, com seu imperativo, que cometamos injustiças.
Reconhecendo a fragilidade humana e de todas as espécies, bem como a fragilidade da nossa casa comum – a mãe terra – deveríamos todos ser objetores de toda e qualquer forma de violência.
Para os que defendem o Direito da Criança e do Adolescente, esta guerra provoca uma dor profunda. As notícias apontam que em torno de 500 mil crianças fugiram da Ucrânia, desde o início da ofensiva da Rússia, em 24 de fevereiro. Deste universo de crianças, muitas estão atravessando as fronteiras somente na companhia da mãe ou mesmo sozinhas, o que além de todos os perigos que enfrentam, acrescenta-se o risco do tráfico humano e toda sorte de violência e abusos. Inclusive, muitas crianças desacompanhadas de adultos parentes estão sendo colocadas em orfanatos na Polônia[6]. Algo estarrecedor.
Ao presenciarem com suas vidas o horror da guerra, o que ficará gravado nos corações, nas mentes e nos corpos de nossas crianças?
Ao ver/sentir a guerra constatam: é esse o mundo adulto? É isso que eles nos oferecem? Dor, devastidão e morte?
De fato, uma condenação que passa a ser intergeracional e nos recorda a obra “O último dia de um condenado”[7], de Victor Hugo.
A obra de Victor Hugo, em seu conjunto, assumiu lugar de destaque na história da literatura ocidental. Esta obra reflete profunda consciência social, reveladora de uma nova concepção de um mundo pós-revolucionário, assinalado pela tomada da Bastilha, ao final do século XVIII. Ardoroso defensor de causas sociais, a luta contra miséria e pela educação universal fizeram parte de seus principais combates. Porém, o primeiro de todos, o mais constante e presente em sua escrita, foi o que o conduziu contra a pena de morte, a qual designou como assassinato judicial.
Em “O último dia de um condenado”, Victor Hugo recorre à sua eloquência e se põe contrário à pena de morte, demonstrando a injustiça, a ineficácia da pena, a barbárie, os horrores e as nefastas consequências da execução pela guilhotina. O recurso utilizado pelo autor para discutir a pena de morte não é apresentado pelo viés da história desse condenado, mas sim pelo percurso desse sujeito que caminha para a guilhotina. A consciência desse sujeito que sabe que vai morrer e deixa um testemunho.
O nome do sujeito condenado, o crime cometido e o processo penal, não são apresentados e nem tão pouco, examinados. Chega-se ao final da leitura e esses elementos não nos são revelados, tem-se uma conclusão: a pena de morte é horrível, mesmo quando não se sabe o crime, seus nomes ou o contexto que fora cometido. Pior, quando esta foi cogitada de ser abolida por conta de quatro nobres que poderiam sofrer tal punição e que, não lhes sendo imputada, expõe à sua contradição: desumana, porque ausente de humanidade; ilegal, ainda que autorizada pelo Estado; injusta, porque nada acrescenta à Justiça, antes, a diminui.
Marie, uma das personagens da obra, é a filha do condenado. Sua presença, em um primeiro momento, poderia representar um mínimo de dignidade ao condenado, entretanto, é confirmadora do mais alto grau de uma outra condenação: a filha que não mais o reconhece, ela já o apagou da memória e, consequentemente, o condenado recebe nova condenação: a perda da condição de pai e que, também, sucede outra pena: a de ser condenado a não mais ouvir a palavra “papai”.
A pena de morte como aquela promovedora de orfandades, explicito no trecho: “Quem te amará? Todas as crianças da tua idade terão pais, menos tu”[8]. Neste contexto, é rico o momento em que Victor Hugo fala da pena de morte como algo que extrapola a pessoa do condenado: “Que crime cometi e que crime estou fazendo a sociedade cometer!”[9]
O resgate desta obra de Victor Hugo no contexto da absurda guerra, tem o seu porquê no fato de que as milhares de mortes que estão ocorrendo, ou mesmo a separação das crianças de seus núcleos familiares, das suas casas, da sua história, implicará numa condenação social destas crianças e adolescentes. A insana e injustificável guerra nos coloca frente a milhares de Marie(s), crianças condenadas por erros, pela ganância de adultos e por suas barbáries.
No entanto, não podemos nos deixar consumir pela tristeza, que é gigante. É preciso que a esperança e ações façam com que a paz seja restabelecida, que as feridas sejam curadas. E entoemos com o poema:
Abraço humanitário
Somos cidadãos do mundo
Peregrinos em busca de um teto,
de um lar,
de amigos,
de paz.
A extração e o expurgo de nossas raízes
é um aborto social.
Aniquila,
massacra,
mata.
Temos o direito
a um local,
a uma pátria
Que garanta a vivência de nossa dignidade.
Não somos mercadorias,
Não somos um nada que possa ser descartado.
Somos seres roubados...
Temos o direito de sermos acolhidos
Temos o direito
A um abraço humanitário![10]
Notas e Referências
BOBBIO, Norberto. O terceiro ausente. Tradução Daniela B. Versiani. Baueri/SP: Manole, 2009.
HUGO, Victor. O último dia de um condenado. Tradução Joana Canêdo. 6. Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2018.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Partitura em poemas. Florianópolis: Emais Editora, 2018.
Site: https://news.un.org/pt/story/2022/03/1781922?utm_source=ONU+News+-+Newsletter&utm_campaign=4c9ad77404-EMAIL_CAMPAIGN_2022_03_08_01_00&utm_medium=email&utm_term=0_98793f891c-4c9ad77404-107855437. Acesso em: 7 mar. 2022.
[1] VERONESE, Josiane Rose Petry. Partitura em poemas. Florianópolis: Emais Editora, 2018. p. 144.
[2] BOBBIO, Norberto. O terceiro ausente. Tradução Daniela B. Versiani. Baueri/SP: Manole, 2009.
[3] Idem, p. 175.
[4] Idem, p. 177.
[5] Idem, p. 177 – 178, recorramos à advertência de Bobbio: “A nova situação é aquela determinada pela espantosa corrida dos armamentos atômicos. A situação é nova porque, pela primeira vez na história, a guerra total pode levar à aniquilação da vida na Terra, isto é, da própria história do homem.” (p. 178).
[6] Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/03/1781922?utm_source=ONU+News+-+Newsletter&utm_campaign=4c9ad77404-EMAIL_CAMPAIGN_2022_03_08_01_00&utm_medium=email&utm_term=0_98793f891c-4c9ad77404-107855437. Acesso em: 7 mar. 2022. Segundo comunicado da diretora-executiva do Unicef, Catherine Russell e pelo chefe do Acnur, Fillipo Grandi, o número total de refugiados já ultrapassa 1,5 milhão.
[7] HUGO, Victor. O último dia de um condenado. Tradução Joana Canêdo. 6. Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2018.
[8] Idem, p. 102.
[9] Idem, p. 103.
[10]VERONESE, Josiane Rose Petry. Partitura em poemas. Florianópolis: Emais Editora, 2018, p. 91.
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