Por Périsson Otávio Rodrigues – 05/06/2016
Há muito se tem observado o mais completo padecimento social e inversão de valores. Talvez por necessidade de autoafirmação e aceitação social diante dos demais, engendrada por meio de uma engrenagem social de consumo, dá-se valor e se endeusa imbecilmente o supérfluo, o “possuir algo”, o palpável, a matéria. Esquece-se das reais importâncias, daquelas que de fato são dignas de ambição, o que implica, e implicará, cedo ou tarde – e isso é certo –, em sociedades devoradas pela loucura da busca pela grandeza e onipotência.
Estamos, todos, anestesiados pela cobiça, porquanto a mensagem subliminar que incisiva e diuturnamente nos é enviada é a de que precisamos consumir (bens e o próprio planeta) para sermos felizes – quando, no entanto, há inúmeros “maus consumidores” que, sem que se possa objetar, vivenciam a felicidade e o real significado da vida na sua real plenitude.
O Guardião jamais se submeteu a quaisquer relações com instituições bancárias. Nunca teve conta bancária e não se submete à loucura hodierna que nos é (im)posta. Jamais declarou imposto sobre sua renda – até mesmo por que renda não há; seu cadastro de pessoa física está vencido desde muito e a última vez que votou foi na década de 80.
Para o sistema financeiro e de consumo, aos olhos do Estado estrangulador, portanto, ele não existe há mais de trinta anos.
Porém, esse mesmo sistema pretende lhe suprimir a forma de expressão de vida por meio de ordem judicial.
Aclara-se.
Tornou-se notícia o caso envolvendo o Guardião - mais conhecido com Vilmar da Caverna – que, conforme a Promotoria de Justiça da Temática da Serra do Tabuleiro (MP/SC), viveria “clandestinamente” na região conhecida como “Camping do Maço” – ou “Vale da Utopia” –, no local compreendido entre a Praia de Cima e a Prainha da Guarda do Embaú, município de Palhoça/SC, lugar de beleza e tranquilidade inigualável procurado por amantes da natureza e hippies que buscam experiências com os cogumelos psicodélicos do Vale da Utopia.
Em suas razões (termo Circunstanciado n. 0900039-32.2016.8.24.0045 – SIG MP SIG/MP n. 08.2016.00056106-7), o órgão ministerial sustenta que a “exploração” direita do Guardião (seu auto-sustento, portanto), seria nociva ao meio ambiente em razão de o local estar inserido no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, área de preservação permanente (APP).
Historia, ainda, que as características da “edificação” do Guardião demonstrariam a “extrema” nocividade e precariedade em relação ao ambiente, a saber: “a residência está alocada embaixo de uma grande pedra e é feita de madeira, vidro e lona. No local, não existe abastecimento de água ou fornecimento de energia elétrica e é composto, ainda, por uma cozinha externa, com fogão a lenha, e horta” (relatório da Polícia Ambiental).
Além disso, não existiria o tratamento de esgoto ou encaminhamento adequado dos efluentes líquidos e resíduos sólidos, caracterizando, a conduta do seu Vilmar, ao fim, como crime ambiental.
Pesa contra ele, ainda, a Ação Civil Pública 0900040-17.2016.8.24.0045 movida ao alicerce de idênticos fundamentos.
O Guardião é figura conhecida na região. É editor do jornal chamado Espinheira-Santa, de distribuição gratuita e sem fins lucrativos na localidade em que reside. Participa da rádio comunitária. É ferrenho defensor do parque da Serra do Tabuleiro, atuante na proteção da Baleira-Franca e combatente do preconceito e violência contra os indígenas. Palestrante em escolas e faculdades, tem gosto em falar sobre a natureza e sua experiência de vida. Por vezes, trabalha em bioconstruções de moradias ecologicamente corretas, o que lhe traz algum rendimento, muito embora não tenha gosto pela subserviência à moeda.
Com quase sessenta anos de idade e detentor de invejável vitalidade e saúde física, externa seu pensamento por meio de fala mansa (para não atrapalhar o som da floresta, diz). Com os pés praticamente sempre descalços, sobe e desce o vale todos os dias (e o caminho para chegar na caverna em que reside não é nada fácil). O trajeto se inicia na Praia de Cima, na Pinheira. Após, ¼ de hora de subidas, desvios, declives e singulares percalços próprios do local, alcança sua caverna – e a vista do Vale da Utopia recompensa.
Grãos diversos e ervas fazem parte de seu cardápio diário. Toma banho de riacho despido de qualquer auxílio cosmético para manter a integridade natural do local. Orienta os que ali vão acampar a que o mesmo façam.
Apaixonado por leitura, possui inúmeras obras, dedicando-se mais efetivamente ao estudo da espiritualidade e história.
Segundo o paranaense Wilson Rio Apa, senhor de seus 91 anos de idade que largou a vida na cidade para navegar pelo mundo e escrever, a área em que seu Vilmar reside lhe pertenceria. Anarquista e um dos idealizadores do Vale, salienta que a aquisição da área se deu com o objetivo de fundar uma sociedade alternativa, embora seu libertário ideal não tenha sido efetivamente operacionalizado.
De acordo com o quase centenário Wilson – que não se opõe à ocupação –, Vilmar é quem deveria cobrar do governo por sua capacidade de preservação.
Sequestram-lhe, subvertendo a ordem natural das coisas, entretanto, a própria identidade e livre expressão de vida.
Muitos são os relatos de quem vive na região acerca da retirada de areia do Sertão do Campo, do aparecimento de loteamentos clandestinos e da falta de saneamento básico.
O botânico Raulino Reitz, na década de 60, já alertava acerca do desenfreado movimento de edificações nas cidades balneárias da região e consequente extermínio da vegetação nativa.
O que se observa, na atualidade, é a existência de planos diretores dos municípios locais que projetam para a região um caótico desenvolvimento construtivo cujo degenerativo resultado prático se conhece como a palma da mão.
Muito embora o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/2001, garanta a gestão democrática direta da política urbana por meio da participação da população nas questões relativas à execução e acompanhamento de planos diretores, inúmeras são as reclamações de locais quanto a sua não consulta sobre o plano diretor dos municípios.
Enquanto isso, em meio ao caos político instalado, o que se observa no Senado Federal é a sorrateira aprovação da PEC 65/2012 cujo teor estabelece e admite que simplória apresentação de EIA (Estudo de Impacto Ambiental) pelo próprio empreendedor se torna suficiente para evitar o embargo da obra – prova unilateralmente produzida por quem interessa e de acordo com seu interesse (pois!) em irretorquível violação constitucional e ambiental, tornando sem efeito os princípios de Direito Ambiental da Prevenção e Precaução.
Para erigir algo ou alguém ao papel de opositor, sua postura contra hegemônica (a do opositor) é suficientemente determinante. Assim como o é a materialização de um imaginário libertário alçado pelo desapego no que toca ao “poder ter”.
Agora, quando conglomerados econômicos, matreiros, buscam, ardilosamente, o implemento de suntuosos empreendimentos imobiliários, cujo reflexo do ponto de vista ambiental é caótico e grotesco, a história é outra, bem outra, pois que nesses casos vale a máxima liberal francesa segundo a qual laissez faire, laissez aller, laissez passer.
É chegado o momento de aceitarmos que as cidades são insalubres e que a “evolução” tem deixado o homem cada vez menos humano, demasiado menos humano, em invertida paráfrase de meu amigo Nietzsche.
A coesão estatal, por vezes, é uma fábula nem tão longínqua; e o corpo social uniforme que se pretende, um desejo totalitário!
. Périsson Otávio Rodrigues é Advogado, membro da Comissão de Ciências Criminais e Segurança Pública da OAB/SC, Subseção de Balneário Camboriú/SC. Secretário Geral da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC, Subseção de Balneário Camboriú/SC. Co-fundador e Secretário Geral da ACAD (Associação Catarinense de Advogados pela Democracia. Abolicionista e anarquista. Graduado em Direito pela UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí.
Imagem Ilustrativa do Post: Guarda do Embaú - SC // Foto de: Gus Valentim // Sem alterações
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