GRANDE FESTA

12/05/2020

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

 “Triste, louca ou má. Será qualificada. Ela a quem recusar...”

(Francisco, elHombre)

Da esquina sentia-se o cheiro do caruru cozinhando. O banquete seria completo: vatapá, acarajé, abará, galinha, farofa de dendê e banana frita. A sambinha ficaria por conta dos sobrinhos de dona Zizi. A vizinhança alvoraçada com a expectativa da comemoração. Festança sem horário para acabar.

Dete organizara tudo no capricho, feliz como há muito não ousara ser. Tinha motivo  para celebrar. 

Lembrava-se bem do dia que começou a labutar, aos onze anos. Passava roupa para ajudar nas despesas da família. As queimaduras nos braços a lembravam de ser  mais cuidadosa na  tarefa. A mãe, empregada doméstica, acostumara os filhos a frequentar a igreja. Dona Vanda costumava repetir a ladainha:

-Deus não permitirá que nenhum dos meus  filhos dê prá ruim.

Dete mal acordava, vestia a farda encolhida,  tomava dois goles de café, uma nesga de pão e lá se ia cantarolando com o pequeno caderno embaixo do braço. Ser professora era o sonho. Foi obrigada a trocar a escola pelo trabalho, ceder lugar aos irmãos menores, eles também teriam  tempo contado para o colégio.

As vezes a mãe a presenteava com algum livro usado, herança das filhas das patroas. Dete encantada, lia e relia as estórias, passeava  em outros mundos, onde podia ser heroína ou vilã.

- Oh menina desligada. Vive na lua.       

Aos quinze  anos, finda a missa a mãe lhe apresentou  Lucivaldo, vinte anos mais velho que ela. Homem forte, de poucas palavras nem feio nem bonito, porteiro do Fórum, concursado.

Reparara na mocinha ajeitada e calada. Parecia ser direita.

Estranhou o sujeito carrancudo, de poucos amigos. Pressentia que o amor dalí passara longe.

Dona Vanda a alertou:

- Amor não mata fome. Casamento hoje em dia é milagre. Louvado seja  Deus!

 Na troca de alianças, Lucivaldo se comprometeu;  as contas da casa seriam  dele.  Após o casamento Dete  não trabalharia mais.  Ele também decidiu, residiriam em bairro  decente, longe do subúrbio. Ela teria que dedicar-se exclusivamente a quem a escolheu por esposa.

Poderia até estudar, depois de  limpar, cozinhar, passar e costurar para ele. 

Lucivaldo trazia no peito rancor pela mãe, ainda pequenoela  sumira na estrada com um jovem  caminhoneiro. A magoa, ele aprendeu a desafogar nas “branquinhas”.

O tempo ensinou a Dete a “criar couro forte”.  Um ano após o casamento, assistiam futebol, enquanto ele bebia. O time favorito perdeu e desatou enxurrada de xingamentos. Sem saber o que fazer tentou acalmá-lo:

-É só uma partida, sussurrou, afagando -lhe o ombro.

Em revide o estalar dos ossos seguida de dor  aguda.

- Abestalhada!  Bateu a porta, sumiu no quarto.

As lágrimas não aliviaram o choque. Dete demorou a pegar no sono. Deitada no pequeno sofá da sala tentou convencer a sí mesma:- Se não tivesse aberto a boca ele não  teria me machucado.

Na manhã seguinte preparou o café, o esperou acordar. Não  trocaram palavras. A olhou de soslaio,  o pulso estava  mal enfaixado, saiu apressado.                                                                                            

Nos fins de semana depois de algumas doses virava bicho. Ela aprendeu a aguentar porrada, chorar baixinho, não incomodar. Rezava forte, colocara na cabeça a fé salvava.

Na casa ao lado morava dona Zizi, viúva e cozinheira de mão cheia. Tornaram-se  amigas.

Com o tempo a pancadaria aconteciacom  mais  frequência. Dona Zizi aperriada com os baques e gemidos, foi à casa da vizinha. Lucivaldo rescendia a cachaça, mal a reconheceu. Ela queria dar uma palavrinha com Dete. A enxotou aos berros.  Mulher dele não tinha amizade com vagabunda. Bateu-lhe a porta na cara.

Trancada no quarto Dete apertava a bocatentando  conter  o soluço. No canto escuro da parede  imaginavaLucivaldo tombado na sala, olhos semi abertos, engasgado no  próprio vómito.

Lucivaldo invadiu o quarto:

-A próxima vez quebro a cara dessa velha. Sai daqui!

Dia seguinte, acanhada foi desculpar-se com a vizinha. Dona Zizi notou o corte no lábio inchado, nos ombros marcas roxas, doídas. Abraçou a moça, era pele e osso. Pediu que prestasse queixa. Os sobrinhos dariam um tranco em  Lucivaldo, aprenderia a respeitá-las. Conhecia bem o tipo, “valente com mulher”. Dete suplicou silêncio. O problema era o alcool. Tudo passaria, fizera promessa.                       

Dona Zizi a contra gosto acatou.  Depois do ocorrido, ao topar com o covarde, cuspia no chão e mudava de calçada. Lucivaldo não reagia, talvez por “consideração” aos  sobrinhos musculosos da idosa.

Boatos corriam. A maioria da vizinhança se compadecia dapobre  mas ninguém abria a boca. Em Dete crescia umasombra  no coração.

Quando lhe deslocou o ombro justificou no hospital; fora assaltada. Da vez que ele lhe deu  um soco e perdeu boa parte da audição;  inventou acidente de bicicleta. Buscava sempre novo pronto atendimento, assim escondia a violência sofrida. Engravidara um vez mas por “queda” perdeu o bebê.

Nenhuma criança merecia nascer naquele martírio.

Passou a usar vestidos compridos, camisas de manga. Ocultavam hematomas. Na hora das pancadas, a todo custo protegia o rosto. Quando ele estava “ possuído”, ela se fantasiavainvisível.

Imagens surgiam com mais frequência na hora das surras.Bastariamduas gotas de veneno na bebida do desgramado. O fim estaria alcançado. Passada a porrada a culpa a chacoalhava. Aterrorizada rogava perdão aos céus.

Não procurava ajuda, carregava seu tormento. O peso da aliança aniquilara as forças, a vergonha liquidara a coragem.

Não tinha para onde ir. A mãe falecida, quanto aos irmãos carregavam o fardo da miséria. A rua é o que restaria. Ancorada em orações sobrevivia refém do medo.

.....

O final do campeonato chegara. No sábado, Lucivaldocomprou  ingresso do jogo. Vestido com a camisa do time e bandeira na mão, saiu de casa. Tomaria um esquente no boteco. Depois da partida celebraria a vitória certa. Não teria hora para voltar.

Ela torcia para o time ganhar, assim, ele chegaria cansado, bêbado, quem sabe contente. A comida o esperaria na geladeira. Com sorte, apagaria. Mas se o time perdesse, o pior lhe aguardava. No quarto, acendeu vela, orou com fervor e se entregou ao sono.                                                                                                        

O time não cantou vitória, o placar: três a zero. A cada gol, geladas desciam raivosas.  À noite,  Lucivaldo saiu azedo e zonzo  do estádio.

 Próximo da arena dois jovens festejavam o campeonato. 

...                                                                                                            

No estacionamento Angelo vibrava com a vitória do timão. Comprara um pequenino uniforme, mimo envolto em papel vermelho. A esposa estava grávida, o primeiro filho do casal. Saiu atrasado da loja se encontrariam na pizzaria.

....

Lucivaldo  avistou  os rapazes com a camisa da equipe adversária.                                                                                                   

-  Time de merda!

- É com a gente?  Perguntou o mais forte  dos dois.

- Cambada de veado! Destilou a ira .

- Cala a boca. Cê não aguenta um tapa.

- Não tenho medo de marica. 

Um dos rapazes empurrou Lucivaldo, tombou flácido  ao  chão.

- Sai. Bêbado!

- Te arrebento...gaguejou.

Conseguiu levantar-se amparando-se ao poste. Um dos jovens acalmou o amigo.

-Deixa prálá,  vamos nessa.

Lucivaldocontinuou  gesticulando ao vento.

Do outro lado da avenida avistou uma moça brincando com o estandarte  do time inimigo. Coração em cólera, cerrou os punhos,  acabaria com a vadia.

Ao atravessar a pista “vadia” foi a última palavra  que balbuciou antes de ser atingido pela caminhonete desgovernada de  Angelo.

....                                                                                                                 

Dete, acordou surpresa, passavam das oito horas. Esperava encontrar Lucivaldo escornado na sala. O celular alertou, devia comparecer ao Instituto Médico Legal reconhecer um corpo ou o que restara dele.                                                          

No necrotério Dete sentiu-se leve, abençoada quase feliz. Mal conseguia esconder o sorriso,  Lucivaldo   transformara-se  em boneco de cera; amassado, pisoteado, estraçalhado e esquecido por alguma criança travessa. Intacta, no defunto, restara apenas a aliança que insistia em   reluzir no dedo.

Enquanto recebia os pêsames, libertava-se da algema dourada que lhe aprisionara tanto tempo.

Dias depois compareceu a repartição do finado. Ao informarem do direito a pensão não conteve as  lágrimas. Seus pedidos, finalmente  atendidos. Celebraria a vida e a liberdade em grande festa. 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Cocktails // Foto de: Yvette Chew // Sem alterações

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