GEOPOLÍTICA E LAWFERE

18/09/2021

Coluna Por Supuesto

A Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, a Justiça e a Cidadania – ADJC – realizou seu V Encontro Nacional neste último 10 de setembro. Tive oportunidade de participar no primeiro painel do Encontro, expondo brevemente sobre algo que me parece muito oportuno, a relação entre “Geopolítica e Lawfere”. A mesa virtual contou também com a presença de duas professoras destacadíssimas e extremamente lúcidas no tratamento do tema, Carol Proner e Ana Prestes. A condução dos trabalhos coube à advogada Renata Deiró, presidente da Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher da OAB seccional Bahia.

Talvez o que mais chamou a atenção durante o processo de preparação das linhas   reflexivas desses assuntos foi o fato de que em aparência eles não se encontram interligados. Existe a tendência a acreditar que o vínculo é inexistente, quando na verdade o lawfere cumpre um papel dentro da dinâmica jurídica internacional, a geopolítica do Direito e sobretudo, na definição dos caminhos da democracia e da efetividade dos direitos.

Certamente, como ordenação normativa da realidade, o Direito e os direitos expressam a síntese de profundas contradições políticas. Os textos normativos adquirem feições e dizem o que dizem porque expõem contradições de classe, de grupos opostos dentro da estrutura social. Naturalmente, os textos projetam o resultado do confronto ou, pelo menos, seu equilíbrio. Assim, por exemplo, o artigo 170 da CF no Brasil diz que a ordem econômica é fundada na “livre iniciativa”, porém, de imediato se coloca que também tem por base, a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho e a justiça social. Uma síntese da complexidade da contradição entre o capital e o trabalho no Brasil.

Se de história jurídica se fala, então inegável que foram as ações coletivas, protagonizadas por grandes grupos humanos, as que deflagraram processos que concluíram com a ampliação dos cenários de liberdade, de novas caracterizações da igualdade, de inéditas formas e alternativas para a democracia e a cidadania social. O Constitucionalismo e o Internacionalismo contemporâneos, vocacionados à proteção dos direitos mais elementares das pessoas são o resultado dessas ações e reações contra o absolutismo, a exploração da força de trabalho e as barbáries do nazifascismo.

Entretanto, a prática jurídica e a efetividade dos direitos não dependem exclusivamente de aspirações. O Direito como fenômeno mantém um nexo com cada formação histórico-social. Nesse sentido, muito embora uma Constituição ou uma Convenção Internacional declarem um catálogo de direitos que suscite admiração e expectativas, seu cumprimento está ligado à consistência e força dos agentes que se disponham a lhes dar vida. Há, de fato, um claro condicionamento a fatores oriundos das variadas maneiras de organizar a propriedade sobre os meios de produção e à capacidade de organização e unidade dos movimentos sociais. Claramente há setores que reivindicam os direitos e outros que resistem a sua implementação. A estes elementos estruturais devem ser adicionadas a precariedade das culturas republicana e democrática e, como se fosse pouco, a ingerência dos agentes que sustentam o grande capital comercial e financeiro internacional.

Há quem diga, entretanto, que o Direito deve ser assumido como uma categoria neutra, ou quem parta de considerar - e não por ingenuidade - que os legisladores são representantes de todos e todas e o Congresso funciona como uma “caixa de ressonância das aspirações sociais”. A visão outorga uma sensação de conformismo. Ao final, isso seria o “ideal democrático”. No cenário das formas, distante da realidade, os “freios e contrapesos” seriam também, mais que suficientes para limitar os arroubos de uns e outros exercentes do poder.

Nessa perspectiva, o Judiciário e o Ministério Público, como “aplicadores do Direito” também estariam conformados por sujeitos neutrais, sempre equidistantes das partes, atrelados à conquista, em todo tempo e lugar, do valor Justiça. A esse ritmo, simplesmente, “caminharia a humanidade” e andaria o Estado. E justamente, nessa percepção, a teoria geral do direito construiria categorias e fórmulas idealizadas e a dogmática estaria condenada à tentativa infrutuosa de correr atrás de estabelecer uma espécie de “realidade paralela” e utópica. Trata-se de um ambiente simulado no qual o Direito aparece fora da história, desvinculado do social, do econômico e do político.

Assim, é fácil esquecer que o Estado e o Direito são manifestações de poder, e de poder de classe. O difícil que acreditar que isso seja real ou seja minimamente científico. Por isso a análise da efetividade dos direitos supõe a leitura do “momento constituinte” e do momento posterior, é dizer, do momento da consignação do projeto jurídico e daquele no qual fica claro quem abandona o projeto e quem está por ele. As conjunturas são decisivas e nelas se expressa quem tem uma atitude contemplativa e quem está disposto à transformação da realidade para efetivar os textos normativos. Essas ações estão ligadas ao alcance reais dos direitos fundamentais.

Há que estar atentos porque o Direito, nessa complexidade, quando as contradições se tornam mais visíveis, pode ser instrumentalizado e aparecer como mecanismo de controle, frequentemente traído por uma interpretação e aplicação acomodadas, que justifica conservadorismos e que ao final desconhece as reais intenções de avanço social de uma Constituição. Em tais condições essa Constituição, na prática, passa a ser desobedecida, desvalorizada e agredida.

O lawfere é exatamente isso, o uso do Direito, quando as contradições atingem tal grau de intensidade em favor da efetivação dos direitos, que somente desconhecendo suas formas mais legítimas se busca impedir esse processo de afirmação das melhores intenções jurídicas. O lawfere é uma necessidade política de um segmento privilegiado atrelado á tese de que só em seu favor existem direitos e o próprio Direito.

Seu uso tático, como bem tem sido apontado em escritos no Brasil e fora dele – cumpre destacar a valiosa contribuição dos professores Rafael Valim, Cristiano Zanin e Valeska Teixeira - se destina aos objetivos estratégicos de reduzir à incapacidade a um “inimigo”, tentando sempre minar e obstaculizar sua ação. As práticas, em seu conjunto, implicam a mudança das regras constitucionais e legais, a reprodução de um ambiente hostil de perseguição jurídica constante, convertida em show midiático, e ao final, o retrocesso que só favorece a redução da democracia, dos direitos políticos, das liberdades e dos direitos sociais. 

Veja-se que o mecanismo do lawfere supõe a construção do inimigo. A tática parte do gerenciamento criterioso de uma escolha a dedo do ou dos alvos.  O “corrupto”, o “narcotraficante”, o “terrorista”, são denominações usadas para identificar ante a opinião do público o sujeito. É sintomático que as três caracterizações se encontrem em disputa, constituindo conceitos difusos, que cabem em momentos diversos, susceptíveis de visões e critérios pouco consistentes. Mas, quem em são consciência estaria contra a corrupção, o tráfico de drogas e o terrorismo. No caso, é claro que ninguém é contra, mas a questão é quem é o alvo. O uso conveniente do Direito, sua manipulação pode ser extremamente violenta.  

Quem é o narcotraficante na Colômbia? O camponês cultivador de folha de coca ou aquele que lucra e se esconde, financiando campanhas - em alguns casos, a sua própria - com o resultado final da operação? No debate alimentado desde o desconhecimento e a falsidade, cabe tudo, e quem pode se exonera e quem não pode recebe o peso da perseguição. O debate reducionista e simplista conduzido pelas redes sociais, individualiza, salva seletivamente a uns e culpabiliza a outros. A guerra jurídico conceptual instalada busca definir quem é o terrorista e então, em algum momento este é “confundido inocentemente”, com a liderança social que reivindica direitos. Tudo ao sabor de uma legislação que pode ser cada vez menos precisa e que se presta aos devaneios de uma interpretação para o absurdo.  

O Brasil hoje não está sozinho como cenário de lawfwre, Argentina, Ecuador, Colômbia, ficam do lado como realidades a serem também interpretadas. Adquire-se uma dimensão não apenas local, mas regional, atrelada aos interesses de contenção de projetos de governos em curso ou que podem entrar em curso, dirigidos à efetividade de direitos.  

O lawfere é sem dúvida, uma tática para alterar a correlação de forças políticas, em benefício dos projetos mais conservadores, e por supuesto, há que estar atento a suas manifestações mais grotescas.

Saudações à ADJC pelo seu V Encontro Nacional e que em boa hora chamou à reflexão sobre tema tão interessante e de tamanha importância.      

 

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