Em 1964, Ruth Glass cunhou o termo gentrification (traduzo aqui para “gentrificação”) ao estudar a mudança no perfil dos moradores de uma vila de trabalhadores em Londres, pois o local que abrigava operários passou a abrigar cidadãos de classe média, ou seja, a reorganização do espaço urbano deu-se a partir da remoção dos trabalhadores empobrecidos que não mais condiziam à realidade econômica do território. Essa transformação do espaço é o fenômeno da gentrificação, a retirada de moradores de uma região pela valorização/ revitalização de um território.
Podemos enxergar o processo de gentrificação como reprodução da dinâmica urbana a partir de duas perspectivas: (I) na justificativa da produção, o deslocamento da força de trabalho e a depreciação inerente do capital fixo – baseado na teoria marxista da tendência à queda da taxa de lucro – e, (II) nos hábitos de consumo. O primeiro é baseado na oferta (produção de capital e abrigo da força de trabalho); o segundo é a verificação da demanda (os hábitos de consumo dos gentrificadores). Esclareço que não são análises excludentes, mas sim coexistentes, entretanto, cada visão modula no processo analisado qual fator é mais determinante ao caso. Poderia o conhecedor da obra de Karl Marx indicar que uma analisa a produção (livro I) e outra a circulação (livro II e III) do Capital[1].
No aspecto produtivo (I) verificamos que as terras precarizadas nos países em desenvolvimento – moradia de trabalhadores – passaram de abrigo ao exército de reserva da força de trabalho para reservas de extração de renda, fenômeno justificado na financeirização global da moradia. Isso indica que até mesmo as mais defasadas zonas de uma cidade estão suscetíveis a gentrificação, pois o mercado possui a capacidade de revalorizar locais, implementar valor de troca e extrair renda[2]. O estudo da gentrificação levando em conta o aspecto do consumo (II) aponta que as transformações realizadas pela classe média nesses locais sendo revalorizados, provém da necessidade dessa em expor seu estilo de vida, individualizando-se em relação aos padrões das classes acima e abaixo dela[3]. Portanto, essa visão da gentrificação verifica os hábitos de consumo nas incorporações estéticas e culturais, e é nessa segunda prioridade que vamos visualizar o fenômeno da privatização da segurança materialmente – no consumo de tecnologias de vigilância e controle.
Um breve e famoso exemplo da relação entre consumo e gentrificação: a divulgação do cinema, da música e da literatura norte americana nos apresentou ao longo dos anos 80 e 90 do século passado um bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, como o marco da população negra e das tendências populares consagradas na cultura hip-hop. Hoje, é a representação maior da cultura hipster – postura de jovens considerada indescritível, porém contabilizável economicamente: composta de jovens de classe média, amplos consumidores. O processo que executou esse câmbio da população do bairro é chamado de gentrificação. Um bairro historicamente notado popular, agora é canteiro de obras da especulação imobiliária, dos bares descolados e pizzarias elegantes, onde morar se tornou dos mais caros privilégios[4].
Dentre as possibilidades do consumo, a proposta desta coluna em uma questão é a gentrificação da segurança, a securização urbana ou o consumo de segurança privada. A constante violência urbana constrói o cenário no qual o espaço urbano socialmente construído irá adotar medidas em prol da segurança. Neil Smith irá dizer que a gentrificação é um processo de movimento nas cidades em direção ao Capital, não às pessoas. Assim, entende que a reestruturação urbana calcada no deslocamento de habitantes em face de suas condições econômicas nada mais é que um projeto neoliberal ao fim de contemplar as vontades do capitalismo de gerar lucro. Portanto, a afirmação “vende-se segurança” é o resultado esperado às cidades entregues ao desenvolvimento da sociedade de consumo criada pelo modo de produção capitalista[5].
A criação de instrumentos com intuito de trazer segurança – como o Direito Penal e a segurança privada – são mecanismos simbólicos capazes de apontar os bens jurídicos tutelados pela sociedade, “quem” e “o quê” protegemos. A pequena oferta de segurança é contraposta por uma enorme demanda da sociedade por ela, porém, como em todos os casos que ficamos reféns dos ditames da oferta, a segurança ganha alto preço. Quem consegue contemplar seu custo costuma expor em sua cara: é a Arquitetura do Medo – que faz o medo alimentar e legitimar o consumo de segurança, frente a inevitabilidade da violência – ao menos assim é propagado –, a sensação de segurança vira uma mercadoria[6]. Imagine aqui algum daqueles anúncios de construtoras oferecendo imóveis em algum condomínio fechado, filmado, com segurança 24h e portas bem iluminadas.
As práticas urbanas contemporâneas seguem duas formas antidemocráticas em razão da violência, segundo o geógrafo Lucas Melgaço: (I) A criação de espaços exclusivos e (II) a informatização do cotidiano para fins de segurança. A primeira vincula-se necessariamente à lógica da privatização dos espaços públicos, pois o espaço coletivo não é seguro, devendo ser reduzido. São divididas na arquitetura anti-indesejáveis (mendigos, prostitutas, bêbados...) e nos condomínios fechados. A segunda está na constante veiculação das imagens e sons das cercanias, como as “câmeras de segurança”, que propõe um contínuo controle dos locais, sob o custo da ausência total de privacidade[7].
O consumo de tais práticas criará um novo status social: Quem mora em imóvel dotado dessas características será percebido como sujeito de camada social digna de proteção – mais que isso, capaz de proteger-se. A privatização da segurança indica uma estratificação da sociedade, pois é permitido a alguns a administração da segurança. Portanto, as cidades apresentam uma evidência material da gentrificação: Quando a região é economicamente valorizada ao remover pobres e criar espaço para a classe média ela importará em uma mudança não só nos sujeitos que transitam, mas na forma que os imóveis serão protegidos.
A gentrificação contemporânea, se fotografada, é a exposição do complexo da mercadoria da segurança: muros, grades, cercas elétricas, guardas armados, sensores de calor e presença, alarmes, câmeras de alta resolução, eclusas, senhas, biometrias...
Notas e Referências:
[1] Verificar os seguintes textos: SMITH, Neil. Desenvolvimento Desigual: Natureza, Capital e Produção do Espaço. Tradução: Eduardo de Almeida Navarro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.; LEY, David. Artists, Aestheticisation and the field of gentrification. Urban Studies, v. 40, n. 12, 2003.
[2] Ver: ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
[3] Ver: LEY, David. The New Middle Class and the Remaking of the Central City. Oxford: Oxford UP, 1996.
[4] Ilustrado pela série de fotos da revista Wired sobre a gentrificação do Brooklyn: https://www.wired.com/2015/09/photos-brooklyn-hipsters/
[5] Ver textos: SMITH, Neil. Toward a theory of gentrification a back to the city movement by capital, not people, Journal of the American Planning Association, n. 45, v. 4, p. 538-548, 2007. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/01944367908977002; SMITH, Neil. New globalism, new urbanism: gentrification as global urban strategy, Antipode, v. 34. n. 3, 2002.
[6] Sobre a transformação da segurança em mercadoria, indico ver: FELETTI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da força de trabalho e a transformação do direito social à segurança em mercadoria. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2014.
[7] Ver: MELGAÇO, Lucas de Melo. Securização urbana da psicoesfera do medo à tecnoesfera da segurança. 2010. 276 p. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo, 2010.. .
Imagem Ilustrativa do Post: banner during 16th Street Plaza DIY Festival, San Francisco’s Mission, June 2014 // Foto de: Cindy Milstein // Sem alterações
Disponível em: https://cbmilstein.wordpress.com/2014/06/30/free-city-radio-interview-on-anti-gentrification-struggles-in-the-bay-area