GARANTISMO, LIBERALISMO E NEOPRIVATISMO

11/06/2018

É comum ler-se que o garantismo processual é uma «corrente liberal antijudiciocrática». O adjetivo «antijudiciocrático» está aí em sentido exato: o garantismo é corrente dogmática que divisa no processo uma garantia individual das partes (CF, art. 5º, LIV), não um instrumento, uma ferramenta, um utensílio ou um método do juiz. Serve não ao Estado, mas aos cidadãos. Não à jurisdição, mas aos jurisdicionados. Protege estes daquela. Ou seja, é um contra-, não um «pró-»jurisdicional. É anti+iūdicum+κρατικός [«contra o governo dos juízes»] e, portanto, νόμοι+κρατικός [«a favor do governo das leis»]. No entanto, o adjetivo «liberal» está ali empregado com imprecisão. Afinal, o liberal é acidental no garantista e inessencial no garantismo. Nem todo garantista é liberal. Nem todo liberal é garantista. Daí por que o garantismo processual não é um liberalismo.

O liberalismo processual é a moldagem processual dos valores liberais. É a ideologia liberal feita processo. É a primazia do indivíduo e, em consequência, da liberdade das partes (que exercem suas posições processuais com irrestrita autossuficiência) sobre a autoridade do Estado-juiz (que exerce a jurisdição com absoluta neutralidade funcional). Propõe menos juiz e mais partes. Trata-se, assim, de uma teoria político-liberal do processo. Nada tem ela de jurídico-dogmática. Não constrói um sistema normativo processual a partir de textos de direito positivo vigentes. Simplesmente projeta sobre o plano microprocessual os valores que cultua no plano macrossocial (individualismo, liberdade negativa, razão, tolerância etc.). Se «o melhor governo é o que menos governa» («the government is best which governs least») [THOMAS JEFFERSON], então o melhor juiz é o que menos judica. Daí o culto ao «juiz mínimo», o «juiz inerte», o «juiz anão», o «vigilante noturno», o «guarda de trânsito», o «árbitro passivo», o «mandatário das partes». Acredita na autorregulação social pelos indivíduos à margem do Estado; acredita na autorregulação processual pelas partes à margem do Estado-juiz. Aqui e ali, a «mão invisível» faz dos vícios privados uma virtude pública: a competição entre os agentes econômicos - sem a necessidade de uma entidade coordenadora do interesse comunal - aumenta por si só a qualidade e diminui o preço dos produtos e serviços, beneficiando os consumidores; a competição entre as partes no processo - sem a necessidade de uma atividade de organização e saneamento pelo juiz - maximiza por si só o aporte de elementos de convicção aos autos, propiciando uma melhor decisão.

Tanto o liberalismo quanto o garantismo pregam, por exemplo, a impossibilidade de o juiz - de modo oficioso e unilateral - decidir fora da lei, desvincular-se dos pedidos formulados pelas partes, decidir com base em fundamento não invocado pelas partes, ignorar os argumentos invocados pelas partes, ordenar prova, prestar tutela jurisdicional, dinamizar os ônus probatórios. Não se pode esquecer, porém, que o garantismo e o liberalismo são sistemas socioculturais com premissas e bases metodológicas distintas entre si. Como já dito, o garantismo é uma teoria jurídico-dogmática: procura refundar o processo como uma instituição garantística de direito público material constitucional e, com isso, proteger os jurisdicionados contra eventuais abusos cometidos pelos exercentes da função jurisdicional. Já o liberalismo processual é um modelo político-ideológico, que projeta as suas ideias-força sobre o processo, plasmando um modelo privatista, mandevilliano e, portanto, adversarial.

Logo, o «e» que aproxima o liberalismo do garantismo não exprime «determinação». O primeiro não é «causa direta» do segundo. O segundo não «deriva» do primeiro. Na verdade, o que há entre um e outro são várias «equivalências» ou «parentescos de propostas» e, por conseguinte, uma «atração recíproca», que os sociólogos da cultura - inspirados na obra de J. W. VON GOETHE - chamam de «afinidades eletivas» [Wahlverwandschaften] (v., p. ex., LÖWY, Michael. Redenção e utopia. trad. Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 17 e ss.). Liberalismo e garantismo ocupam zonas epistemológicas distintas entre si, embora muitas vezes se reforcem, se alimentem e se estimulem reciprocamente, como autênticos «parceiros espirituais». Ou seja, entre eles há inúmeras correspondances baudelairianas, que muito se assemelham a uma «analogia», uma «homologia», um «isomorfismo estrutural».

Todavia, não há aí uma «plenitude de correspondências»: a) para o liberalismo processual, o processo é coisa privada das partes, que ali duelam com autonomia individual total, sem qualquer marco regulatório fixado pela lei ou pelo juiz [laissez-faire processual]; b) por sua vez, para o garantismo processual, o processo é coisa pública para as partes (afinal, é garantia constitucional), que debatem sob uma heteronomia regulatória legal, ou seja, dentro de marcos procedimentais rígidos fixados pela lei e garantidos pelo juiz [ne-laissez-pas-faire processual]. Talvez sejam essas as differentiæ specificæ entre uma coisa e outra. 

Isso já mostra a imprecisão de BARBOSA MOREIRA ao se referir ao garantismo processual como um «neoprivatismo» (O neoprivatismo no processo civil. RePro 122, p. 9-21). Um genuíno garantista não confunde o público com o pró-estatal; por isso, divisa no processo a res publica que serve às partes e, por correlação, desserve ao Estado quando este exerce com arbítrio a função jurisdicional. Daí por que o garantismo não se reconhece na oposição diametral «privatismo vs. publicismo». O «privado» do processo é a sua funçãoprivado é sinônimo de particular, do latim particularis, adjetivo derivado de particula, diminutivo de parspartis, que significa parte; portanto, o processo cumpre a sua função «privatista» quando atende às partes, protegendo-as. Por sua vez, o «público» do processo é a sua estrutura: ele se concretiza num procedimento em contraditório, de instauração obrigatória, instituído por normas editadas pelo Poder Legislativo (daí a expressão «devido processo legal»).

Por isso, o garantismo processual não é da direita nem da esquerda. Não pertence a uma nem a outra. Não lhes é exclusivo «patrimônio» dogmático. Não é propriedade de nenhuma delas, embora possa ser apropriado por ambas. Em tese, um esquerdista pode a) apregoar ao processo uma função anti-arbitrária, b) cingir a jurisdição à aplicação não-criativa e imparcial do direito, e c) relegar a tarefa sócio-equalizadora à legislação e à administração. Seria, aliás, de todo razoável. Afinal, só ocupantes dos cargos legislativos e executivos de provimento eletivo têm legitimidade democrática; logo, só a eles cabe a esquematização discricionária de políticas igualitárias. Aos juízes - ocupantes de cargos de provimento vitalício - se reserva uma atividade técnica vinculada, já que lhes faltam a capacidade planejadora e a visão global das necessidades públicas, das travas burocráticas e das insuficiências orçamentárias. Daí por que garantismo processual e esquerdismo ideológico são plenamente compossíveis.

De toda forma, nenhum mal há no termo liberal. É preciso des-diabolizá-lo. Não se trata de uma paleo-ideologia. Tampouco de um fóssil político. O liberalismo - em suas diferentes expressões (liberalismo clássico, liberalismo social, liberalismo conservador, conservadorismo liberal, semiliberalismo etc.) - tem propostas respeitáveis para a atualidade, mormente contra os abusos das hodiernas tecnocracias estatais. Nesse sentido, o cânon liberal se reapresenta nos dias de hoje como um dado «quente e subversivo». No entanto, ideologias autoritárias - que profetizam a «grande máquina do Estado» como ultimus finis et summum bonum - trabalham com a chamada «associação inconsciente»: 1) demonizam o duo «privado-liberal», associando-o a inferioridade, desumanização, desequilíbrio, conturbação social, antiguidade ultrapassada, mesquinhez, desigualdade, competição, mentira, injustiça, egoísmo, individualismo; 2) divinizam o duo «público-social», associando-o a superioridade, humanização, equilíbrio, pacificação social, modernidade pujante, altivez, igualdade, cooperação, verdade, justiça, altruísmo, coletivismo; 3) infundem a crença de que o processo caminha «evolutivamente» de uma concepção privatista para uma concepção publicista. Um helpful example é RUI PORTANOVA, que se refere ao princípio dispositivo como «um resquício da ideologia liberal-individualista», que - segundo ele - «resiste pela falsa sedução do discurso liberal» (Princípios do processo civil. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 124). Não é de se estranhar que a ala enrageé da fé instrumentalista se ajoelhe a essa crendice juvenil: o mundo caminharia fatalmente para o fortalecimento do Estado e, como consequência, para o aumento dos poderes do juiz. Tudo como se o garantismo fosse uma «pré-história requentada» e o instrumentalismo o «fim da história». Isso não passa, porém, de um resto impertinente e laicizado de escatologia religiosa, que precisa ser expulso das razões política e jurídica. Uma irracionalidade que infesta a psique dos processualistas pela fenda sutil do inconsciente.

De todo modo, ver Liberalismo no Garantismo é tão precipitado quanto ver, por exemplo, a Social-Democracia na Escola Mineira do Processo Democrático. As reciprocam affinitatem entre ambas são patentes. Nalguns de seus autores, sobretudo naqueles com posição teórico-política à la Habermas, o modelo proposto é um «plasmado processual» de topoi social-democratas (comparticipação, policentrismo, parceria Estado-sociedade, igualdade material, horizontalidade, democracia etc.). A afinidade eletiva é tamanha que - bem ao gosto social-democrata - o modelo vende a si como uma «superação», «sublimação», «alternativa» ou «terceira via» à «desgastada» luta entre o liberalismo (processual) e o socialismo (processual). Isso não significa, porém, que todo o Processualismo Democrático - que tem dentro de si vários matizes - seja «secretário» de um ideário centro-esquerdista. Mesmo porque a social-democracia, «hoje, é uma ideologia que, conforme o engenho de quem a concebe, se ajusta com maior ou menor êxito ao perfil que se lhe quer dar» (REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito de ideologias. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 20). Da mesma forma, o Instrumentalismo Processual não é produto imediato de ideologias fatalistas estatólatras, embora - não raro - renda préstimos ao Fascismo Processual (cujo juiz-Duce faz do processo instrumento para a libido dominandi do Estado) e ao Socialismo Processual (em que o processo é usado como ferramenta promotora de justiça social pelo juiz-Robin-Hood). Igualmente, uma «atração não-causal» - sob o clima romântico da eficiência - enlaça o Gerencialismo Processual [Case Management] ao Social-Liberalismo ou Liberalismo Moderno.

Na verdade, só haverá algo intrinsecamente «liberal» no garantismo se o termo se relacionar a liberdade. Processo é garantia de liberdade. Mais: é garantia de liberdade dos jurisdicionados contra a jurisdição. Ora, o fenômeno constitucional consiste na constrição jurídica do poder, que se dá em dois planos: a) no plano horizontal, trisseca-se o poder nas funções legislativa [rectius: jurislativa], administrativa e jurisdicional, que se controlam reciprocamente; b) no plano vertical, aos cidadãos se imputam posições jurídicas ativas, cujo exercício basta a evitar, mitigar ou eliminar os efeitos nocivos do arbítrio estatal. A essas posições se dá o nome de garantias de liberdade, garantias liberais ou simplesmente garantias. Portanto: b.1) se oponível ao arbítrio jurislativo, é garantia «liberal» contrajurislativa (ex.: garantia do controle de constitucionalidade); b.2) se oponível ao arbítrio administrativo, garantia «liberal» contra-administrativa (ex.: garantia da licitação); b.3) se oponível ao arbítrio jurisdicional, garantia «liberal» contrajurisdicional (ex.: garantia do juiz natural). A cada função corresponde uma garantia, que a controla. Com isso se republicaniza o poder, conferindo-lhe contrastabilidade. Nesse sentido, o processo - como garantia «liberal» contrajurisdicional - integra o rol dos direitos e garantias fundamentais de primeira dimensão ou geração (as chamadas «liberdades civis e políticas»).

Assim sendo, confunde planos quem diz que o processo como garantia é sempre uma apologia ideológico-liberal. Não se trata necessariamente de exercício deliberado de credo direitista. Um supra-, não- ou anti-liberal não descai em liberalismos se faz a defesa intransigente do habeas corpus, do mandado de segurança, da advocacia, do contraditório, da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição, do juiz natural, da motivação, da reclamação às ouvidorias de justiça e de tantas outras garantias individuais que refreiam o arbítrio jurisdicional. Aliás, é interessante ver setores da esquerda invocarem ontem a «opinião pública» contra os seus adversários e hoje as «garantias liberais» em prol dos seus partidários. Oxalá estejam maduros para essas garantias como conquistas civilizatórias, não como meras peças de uma «superestrutura jurídica burguesa».

Como se vê, o insight garantista não é liberal nem neoprivatista (embora nada de desonroso haja nisso). Aliás, o objetivo dessas adjetivações é tão somente lançar pechas sobre o garantismo, envolvê-lo em preconceitos e, assim, blindar-lhe a compreensão correta. Elas não passam de respingos da peleja entre o front instrumentalista e a resistance garantista. Nada de «bacteriologicamente neutro» há nelas, pois. Por isso, num campo de frouxidão conceitual e de analfabetismo teórico-político como o processualismo brasileiro, dar o sentido certo às palavras é sempre uma tarefa urgente.

 

Imagem Ilustrativa do Post: MASP - São Paulo - Brasil // Foto de: David Xavier de Carvalho // Sem alterações

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