Funcionalidade para o Trabalho e Perícias Biopsicossociais: a Nova Tabela ESC

14/05/2019

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

 

A Tabela ESC (do inglês, escape) é um instrumento baseado na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) para facilitação da abordagem biopsicossocial no âmbito trabalhista. Compreender o grau de funcionalidade no Trabalho pode ter um papel significativo no planejamento, implantação e avaliação de políticas públicas[1,2,3]. A CIF foi desenvolvida com a finalidade de ser útil para padronização da linguagem, para uso clínico, para uso estatístico e para uso em políticas sociais[2,4,5]

Como a CIF compreende mais de 1.600 categorias, alguns instrumentos paralelos vêm sendo desenvolvidos para dar celeridade ao seu uso, como é o caso da WHODAS (World Health Organization Disability Assessment Schedule), desenvolvida para facilitar a utilização da CIF e dos seus conceitos nos serviços de saúde, avaliando a funcionalidade e a incapacidade nos domínios da vida cotidiana na Atenção Primária à Saúde[6].

A Tabela ESC, da mesma forma, teve seu desenvolvimento voltado para auxiliar a aplicação prática da CIF, mas, nesse caso, especificamente para aplicação por peritos judiciais[7]. No seu processo de desenvolvimento, mais de 150 profissionais de diferentes países, incluindo membros do NetWork da Organização Mundial da Saúde, foram convidados para validar seu conteúdo, por meio do link http://hodu-cifbrasil.blogspot.com/, logo após a apresentação inicial feita durante o 3° Simpósio de Ensino da CIF, realizado na Alemanha, em 13 de abril de 2018. A tabela voltou a ser discutida em outubro do mesmo ano, durante o Encontro Anual da Família de Classificações Internacionais da Organização Mundial da Saúde, na Coreia do Sul, por meio de apresentação oral do trabalho de n° 504, publicado na página 73 do Poster Booklet do WHOFIC NetWork Annual Meeting - 2018, com o título Functioning Status and Indemnities in Brazil.

As classificações internacionais da OMS são instrumentos usados na geração de indicadores e marcadores que ajudam no conhecimento de todas as características de saúde, inclusive de suas determinantes[8]. A CIF ajuda a diferenciar o problema funcional da incapacidade laboral, permitindo uma visão mais ampla tanto aos peritos quanto aos Juízes. A incapacidade é o extremo oposto da funcionalidade, é uma experiência que não está ligada somente ao estado do corpo, mas também às atividades laborais e ao ambiente de trabalho. Portanto, não é correto definir que deficiência funcional resulta sempre na mesma incapacidade laboral[9]. São conceitos distintos, que devem estar bem claros tanto para os assistentes técnicos quanto para os peritos judiciais.

Adicionalmente, é necessário lembrar que as classificações, CID e CIF, não determinam diagnósticos, mas os codificam, ou seja, elas os transformam numa linguagem alfanumérica padronizada, sempre traduzindo processos e conclusões profissionais, não se configurando como instrumentos de avaliação, mas como instrumentos de classificação.Também é essencial ressaltar que as alterações de funcionalidade podem aparecer sem relação direta com a presença de doenças. Por isso, não existe entre as classificações uma relação de dependência, mas de complementaridade.

A CID complementa a CIF da mesma forma que a CIF complementa a CID. Para reiterar, a CIF é bem clara em seu Item 3, Propriedades da CIF, onde aparece: “na verdade, ela se aplica a todas as pessoas”. Se o raciocínio pericial partir meramente da doença, isso representará um atraso na compreensão da ação do modelo biopsicossocial da OMS. Tal modelo é multidirecional, multidimensional e integrador, o que significa que ele não é baseado na doença, nem nasce dela. A doença pode ser consequência das alterações de funcionalidade e não sempre a sua causa, especialmente por causa das relações entre o corpo e os fatores ambientais.

Do ponto de vista de fundamentação legal, temos que a Resolução CNS n° 452/2012 adota a CIF para o SUS, incluindo a Saúde Suplementar, adicionando que a CIF deve ser usada como ferramenta de planejamento de sistemas de seguridade social, de sistemas de compensação e de desenvolvimento de políticas. Paralelamente, a Lei n° 13.146/2015 cita os termos da CIF em seu artigo 2°, estabelecendo que a avaliação seja pautada no modelo biopsicossocial, de cunho multiprofissional e interdisciplinar[10].

A Tabela ESC congrega os conceitos acadêmicos e legais para subsidiar o processo técnico de quantificação, qualificação e codificação da incapacidade laboral. Ela considera a presença ou ausência de relação entre a incapacidade e as atividades profissionais, permitindo julgamento técnico para determinar se o indivíduo periciado é capaz de voltar a exercer a sua atividade laboral, se (2)não é capaz ou se (3)é capaz com restrições.

O cumprimento de normas regulamentadoras e de aspectos ergonômicos são categorizados pela CIF por meio da Tabela ESC, porém, sem influência sobre os cálculos, servindo de informações adicionais para conteúdos jurídicos importantes.

No tocante aos cálculos, a tabela está dividida em duas partes, sendo que a primeira é a qualificação e quantificação da incapacidade laboral, conforme fórmula abaixo:

 

PIL = CF + {[(SIL.3).3]+SPS+DF+(FA.2)}

                                       7

Onde,
PIL = Percentual de Incapacidade Laboral

CF = Constante de Funcionalidade

SIL = Soma dos qualificadores da CIF para incapacidade laboral

SPS = Soma dos qualificadores da CIF para o componente participação

DF = Qualificador da CIF para déficit funcional

FA = Qualificador da CIF para fatores ambientais

 

Constante de Funcionalidade é o estado esperado de um indivíduo saudável, considerando perdas naturais, que não influenciam o desempenho. Soma dos qualificadores da CIF para incapacidade laboral é a medida atribuída aos graus de dificuldade para as categorias da CIF relacionadas ao trabalho do indivíduo periciado, selecionadas pelo técnico na descrição do caso no ato pericial. Soma dos qualificadores da CIF para o componente participação é a medida atribuída aos graus de dificuldade para as categorias da CIF relacionadas ao potencial social de retorno ao trabalho do indivíduo periciado. Qualificador da CIF para déficit funcional é a medida atribuída a alterações funcionais e limitações do indivíduo periciado. Qualificador da CIF para fatores ambientais é a indicação a influência de fatores ambientais identificada no ato pericial.

A segunda parte da tabela traz a consideração sobre o tipo de nexo, que pode ser causal ou concausal. O nexo concausal pode ser dividido em preexistente, concorrente e superveniente, sendo que cada um desses ainda é subdividido em até três graus. Essa segunda parte de cálculo da Tabela ESC recomenda o percentual indenizatório[11].

Alguns métodos antigos ainda são utilizados. A tabela da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) ainda é utilizada para fins de percentual para  pagamentos de indenizações nas relações trabalhistas, mesmo sem ter sido criada para esta finalidade. Na verdade, não se sabe a origem, os métodos e as bases científicas para uso da tabela da SUSEP. Numa análise preliminar, é possível perceber que o instrumento é restrito às funções e estruturas do corpo humano e ainda, conforme  a Circular Susep 29/91, destina-se à fixação das indenizações devidas por seguradoras a seus segurados, em percentual proporcional à importância segurada.

Enfim,  a Tabela SUSEP destina-se a estabelecer um percentual fixo, sem considerar as condições peculiares de cada caso de dano decorrente do trabalho por responsabilidade civil do empregador, em face do artigo 7° e inciso XXVIII da Constituição Federal. Logo, a Tabela SUSEP, mesmo tendo alguma aplicabilidade prática, não pode ser considerada como critério para aferição de incapacidade decorrente de acidente e adoecimento relacionados ao trabalho e consequente fixação de indenizações trabalhistas.

Por outro lado, a CIF, como uma ferramenta publicada pela Organização Mundial da Saúde, figura no grupo de referência da Família de Classificações Internacionais bem como da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), e portanto dispõe da complexidade necessária e inerente ao processo de classificação para determinação do estado de funcionalidade ou incapacidade para o trabalho. Consequentemente, é uma ferramenta mais apropriada para justificação e cálculo das indenizações trabalhistas, tendo agora a Tabela ESC como uma interface de aplicação para facilitar seu uso.

 

Notas e Referências

1- Farias N, Buchalla CM. A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde da Organização Mundial da Saúde: Conceitos, Usos e Perspectivas. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(2):187-193.

2- Giovanella L et al. Saúde da família: limites e possibilidades para uma abordagem integral de atenção primária à saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. 2009; 14(3):783-794.

3- Araujo ES, Neves SFP. CIF ou CIAP: o que falta classificar na atenção básica? Acta Fisiatr. 2014; 21(1):46-48.

4- Üstun et al. Measuring Health and Disability: Manual for WHO Disability Assessment Schedule (WHODAS 2.0). Geneva: World Health Organization; 2010.

5- Üstun TB et al. Developing the World Health Organization Disability Assessment Schedule 2.0. Bulletin of the World Health Organization. 2010 Nov; 88(11): 815-823. Disponível em: http://www.who.int/bulletin/volumes/88/11/09-067231/en/. Acesso em: jan 2017.

6- Balco EM. Uso da Escala WHODAS 2.0 na Atenção Primária à Saúde: perspectivas para a prevenção de incapacidades e promoção da funcionalidade humana pela Estratégia de Saúde da Família [dissertação]. Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, 2018. 155f.

7- Cordeiro, ES. A CIF como norteadora da admissão, da inclusão e das indenizações trabalhistas. Revista Científica CIF Brasil. 2018;10(1):12-20. Disponível em  http://www.revistacifbrasil.com.br/ojs/index.php/CIFBrasil/issue/viewIssue/Décima%20edição/28

8- Francescutti C et al. Description of the person-environment interaction: methodological issues and empirical results of an Italian large-scale disability assessment study using an ICF-based protocol. BMC Public Health, v.11, n.4. 2011.

9- Penteado JM. Deficiência funcional x incapacidade laboral. LTR Suplemento Trabalhista 094/2014, página 433. Disponível em:

https://josemarcelopenteado.jusbrasil.com.br/artigos/135620467/deficiencia-funcional-x-incapacidade-laboral

10- Synman S, Von Pressentin KB, Clarke M. International Classification of Functioning, Disability and Health: Catalyst for interprofessional education and collaborative practice. J Interprof Care, v.29, n.4, p.313-9, jan. 2015. Disponível em: doi: 10.3109/13561820.2015.1004041. Acesso em: mar 2017.

11- Río MTC. Valoración medico legal del daño a la persona. Editorial Colex, 2010.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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